O que são pessoas em situação de rua

Conforme o relatório do primeiro Encontro Nacional Sobre População em Situação de Rua, organizado e realizado em 2005 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome por meio da Secretaria Nacional de Assistência Social, a caracterização da população em situação de rua ficou definida como: grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta, vínculos interrompidos ou fragilizados e falta de habitação convencional regular, sendo compelido a utilizar a rua como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou de forma permanente.

Pode-se afirmar que o surgimento da população em situação de rua é um dos reflexos da exclusão social, que a cada dia atinge e prejudica uma quantidade maior de pessoas que não se enquadram no atual modelo econômico, o qual exige do trabalhador uma qualificação profissional, embora essa seja inacessível à maioria da população.

É inegável que a cada ano mais indivíduos utilizam as ruas como moradia, fato desencadeado em decorrência de vários fatores: ausência de vínculos familiares, desemprego, violência, perda da autoestima, alcoolismo, uso de drogas, doença mental, entre outros fatores.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome realizou entre os anos de 2007 e 2008 uma pesquisa em 71 cidades brasileiras com população superior a 300 mil habitantes, abrangendo as capitais (exceto São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre). Segundo essa pesquisa, cujos dados foram divulgados em 2008, há 31.922 indivíduos que utilizam as ruas como moradia, no entanto, esses números são bem maiores, pois cidades importantes não se incluíram na pesquisa.

Os municípios brasileiros que possuem mais moradores em situação de rua são: Rio de Janeiro (4.585), Salvador (3.289), Curitiba (2.776), Brasília (1.734), Fortaleza (1.701), São José dos Campos (1.633), Campinas (1.027), Santos (713), Nova Iguaçu (649), Juiz de Fora (607) e Goiânia (563).

Entre a população em referência predominam as pessoas do sexo masculino (82%), com idade entre 25 e 44 anos (53%) e que nunca estudaram ou não concluíram o ensino fundamental (63,5%). Em relação à cor, 39,1% são pardos, 27,9% negros, 29,5% brancos, 1,3% indígenas, 1% amarelo oriental e 1,2% de cor não identificada.

A ineficácia dessas políticas públicas fez com que, historicamente, se destacasse o trabalho das Organizações Não Governamentais (ONGs) e das Instituições Religiosas. No geral, essas instituições atuam na distribuição de alimentos, roupas e cobertores. Outro trabalho de assistência são os abrigos temporários e os albergues que, de um modo geral, são considerados insuficientes para beneficiar toda essa população.

Tais políticas, cujo objetivo é amparar as pessoas que delas necessitam, são insuficientes e geralmente não atacam a causa do problema, apenas tentam suprir as necessidades básicas de sobrevivência, como também não estão baseadas em um efetivo conhecimento acerca das demandas que norteiam esse contingente populacional.

Portanto, esse desinteresse do Estado pelas pessoas que se encontram na referida situação influencia diretamente no comportamento da sociedade, sendo que os moradores de rua são tratados ora com compaixão, ora com repressão, preconceito, indiferença e violência.

Por Wagner de Cerqueira e Francisco Graduado em Geografia

Equipe Brasil Escola

Crédito: Jorge Araujo/Fotos Publicas

Já há algum tempo o uso da linguagem e as questões semânticas deixaram de ser tratadas como temas perpendiculares no cotidiano do intérprete e assumiram um papel de suma importância na sua atividade.

Em sua clássica obra Investigações filosóficas, o alemão Ludwig Wittgenstein desenvolveu o conceito de jogos de linguagem (language games), que compreende a ideia de que o significado das palavras não deve ser compreendido como algo fixo e delimitado, como uma propriedade que emana do enunciado linguístico, e sim como algo que as expressões linguísticas exercem em um contexto determinado e com objetivos específicos. Assim, para o filósofo alemão, o significado pode variar dependendo do contexto em que a palavra é inserida e do propósito desse uso[1].

A partir da ideia de jogos de linguagem formulada por Wittgenstein, é possível perceber que a linguagem e a carga semântica de cada palavra possuem um papel de destaque no contexto social; além de retratarem o nível de (in)evolução em que determinada sociedade está inserida, pela utilização desta ou daquela palavra, a linguagem e as questões semânticas utilizadas variam de acordo com as condições de tempo, local e cultura, devendo a hermenêutica do Direito das Pessoas em Situação de Rua ser reconstruída a partir das experiências geradas pelo próprio desenvolvimento deste ramo jurídico, ainda pouco explorado em terras brasileiras.

Em termos conceituais, as pessoas em situação de rua podem ser definidas como o grupo populacional heterogêneo, detentor de características comuns – pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e inexistência de moradia regular – que se utiliza de logradouros públicos, áreas degradadas, espaços urbanos vazios ou unidades de acolhimento institucional como local temporário ou permanente para sua moradia e sobrevivência.[2] Trata-se do conceito normativo definido pelo artigo 1º, parágrafo único da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto 7.053/2009).

A heterogeneidade da população de rua se verifica em razão da diversidade existente no seio deste grupo vulnerável. A diversidade é causal – afinal, são múltiplos os motivos que levam as pessoas a viver em situação de rua – e ainda pessoal, inexistindo um “perfil de pessoa em situação de rua” no Brasil.

A heterogeneidade deve ser encarada a partir de duas perspectivas: objetiva e subjetiva. A heterogeneidade objetiva materializa a pluralidade de ideias, opiniões e experiências de vida de cada uma das pessoas que compõem a população em situação de rua, e a sua compreensão enriquece inclusive os estudos, debates e até mesmo o desenvolvimento das políticas públicas para o grupo vulnerável.

Por sua vez, a heterogeneidade subjetiva exprime a realidade de que, além de a população de rua ser um grupo heterogêneo, cada pessoa em situação de rua possui sua própria história de vida, devendo cada caso ser tratado in concreto pelo Estado e levando em consideração as particularidades da pessoa em situação de rua[3].

Diversos são os fatores que contribuem para este círculo vicioso de marginalização, sendo possível citar:

i) a vertiginosa desqualificação[4] que recai sobre esta parcela da população, vista “não como um grupo que se encontra em risco, mas como um grupo que oferece risco[5]”;

ii) a ampla indiferença por parte dos Poderes públicos, especialmente na formulação e implementação de políticas públicas específicas para esta camada social;

iii) a vasta heterogeneidade interna deste grupo, que reúne homens, mulheres, idosos, crianças, deficientes, egressos do sistema prisional, indígenas, refugiados, entre outros grupos vulneráveis;

iv) a complexidade do processo que leva à situação de rua, dificultando sobremodo o tratamento e a reversão desta espécie de vulnerabilidade. Trata-se, como se vê, de uma vulnerabilidade multiplexa. Não por outro motivo, Tatiane Campelo da Silva Palhares adverte que: “são múltiplas as causas de se ir para as ruas, como são múltiplas as realidades da população em situação de rua[6]”.

O segundo traço característico das pessoas em situação de rua é a extrema pobreza. Este é, sem sombra de dúvida, um dos principais fatores que levam indivíduos e até mesmo famílias a viver nas ruas, não sendo necessário um esforço hercúleo por parte do leitor para perceber a forte associação entre “estar na rua” e ser “extremamente pobre”.

Não por outro motivo, a Corte Interamericana reconhece que: “estar em situação de rua é estar vulnerável, indefeso e em uma situação de alto risco, vulnerabilidade, em meio a uma situação humilhante de miséria e em um estado de padecimento equivalente a uma morte espiritual[7]”.

Em sentido análogo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao realizar visita in loco no Brasil em 2018, destacou a pobreza como algo que “afeta diferentes populações que estão em situação de vulnerabilidade no Brasil, especialmente pessoas que não gozam de seu direito à moradia nos termos previstos pelos parâmetros internacionais de direitos humanos[8]”.

Diante das conclusões da Corte IDH e da própria CIDH, parece-nos evidente que o estado de miserabilidade vivenciado pela população de rua acaba por atingir, de maneira direta e frontal, o mínimo existencial de cada um dos membros deste grupo vulnerável[9], colocando-os, inclusive, como potenciais vítimas de ódio e preconceito por motivos aporofóbicos[10].

O legislador brasileiro ainda destacou a fragilidade ou até mesmo a interrupção dos vínculos familiares como um terceiro sinal característico das pessoas em situação de rua. Com o advento da Constituição Federal de 1988, o instituto da família foi inserido em um processo de filtragem constitucional[11], passando a ser interpretado à luz da nova Carta, em especial do princípio da dignidade da pessoa humana.

A família passou a ser encarada como um projeto eudemonista[12], no qual os indivíduos que nela estão inseridos buscam, a todo momento, a concretização do seu direito à felicidade (right to the pursuit of happiness)[13].

Assim, a falta de vínculos familiares ou a insuficiência destes colabora – e muito – não apenas para o início da situação de vulnerabilidade vivenciada na rua, mas também para a sua perpetuação.

A família, que no dito popular brasileiro “é a base de tudo”, ocupa também no Direito das Pessoas em Situação de Rua um papel de centralidade; afinal, quanto menor o esfacelamento dos laços familiares, maior será a chance de determinada pessoa em situação de rua superar a sua condição de vulnerabilidade.

O último traço característico do conceito de pessoas em situação de rua é a utilização de logradouros públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.

Cuida-se de uma característica autoevidente deste grupo vulnerável, e que inclusive remete à origem do termo “em situação de rua[14]”, aludindo à ausência de moradia convencional por parte de seus integrantes. A condição desumana em que vive a população de rua brasileira foi verificada in loco pela CIDH no ano de 2018, momento em que o referido órgão da OEA demonstrou preocupação com: “a situação de exclusão social em que vive a população em situação de rua e sem teto, que sofre os impactos da estigmatização de suas lutas nos centros urbanos ao mesmo tempo em que lidam com políticas públicas insuficientes para atender suas demandas[15]”.

Diante do atual estado de coisas do Direito das Pessoas em Situação de Rua no Brasil, no qual é cristalina a ausência de recursos financeiros suficientes e a inexistência de um modelo de combate integral, célere e efetivo à situação de rua, a permanência em logradouros públicos e áreas degradadas não devem servir para demonizar quem a pratica.

Embora a sua situação de vida esteja longe de concretizar o direito à moradia adequada nos parâmetros protetivos exigidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), muitos são os casos em que as pessoas permanecem em situação de rua, seja por ineficiência do Estado em suas políticas públicas, seja mesmo por uma escolha de vida própria, que deve ser respeitada.

A partir desta constatação, entendemos que a rua deve, em alguma medida, passar por um processo de ressignificação, sendo encarada também como um locus de construção de identidades e servindo como palco de encontros para diálogos e deliberações – seja de forma temporária, para aqueles que almejam sair das ruas, seja com um caráter de maior habitualidade, para as pessoas que desejarem permanecer nas ruas.

Não estamos aqui propondo uma romantização das ruas, mas tão somente chamando a atenção para um dado inegável: o período nas ruas faz parte da história de vida dos membros do grupo vulnerável em estudo.

Assim, a situação de rua não deve ser compreendida apenas de forma usual, como algo negativo e pejorativo, mas também, e ainda que subsidiariamente, como um espaço de fraternidade, no qual se propõe uma releitura do espaço “rua” como espécie de catalisador de direitos, possibilitando novas formas de proteção e concretização de direitos às pessoas em situação de rua até a superveniência de uma melhor situação – se estas pessoas assim o desejarem.

Avançando na gramática do Direito das Pessoas em Situação de Rua, é necessário enfrentar algumas expressões que devem ser alijadas do nosso cotidiano no trato do tema, por motivos de impropriedade técnica ou por conta da carga pejorativa e estigmatizante que carregam.

Uma nomenclatura que deve ser tida como inapropriada à luz da Política Nacional das Pessoas em Situação de Rua é a expressão “morador de rua”; afinal, a expressão “em situação”, utilizada pelo Decreto 7.503/2009, indica  a natureza de algo que deve ser temporário, evitando uma espécie de qualificação do indivíduo, ao passo que “morador de” passa uma impressão de definitividade[16].

Infelizmente, não são raros os casos em que veículos de comunicação e até mesmo os tribunais superiores brasileiros[17] utilizam o termo “morador de rua” para se referir às “pessoas em situação de rua”.

Conforme salientamos no início deste tópico, é necessário respeitar a escolha – desde que livre e desembaraçada – do indivíduo em permanecer nas ruas.

No entanto, estas situações são exceções quando comparadas ao número de pessoas em situação de rua que gostariam de voltar a viver em uma moradia adequada e com a segurança que um lar oferece.

O ethos da Política Nacional das Pessoas em Situação de Rua é claro ao materializar o caráter temporário e transitório da situação de rua[18], devendo o Estado, por meio de políticas públicas, empreender esforços em prol do fortalecimento da autonomia da população de rua e buscando reinserir os membros deste grupo vulnerável no seio de suas famílias ou em um local que concretize o direito humano à moradia adequada.

Tendo isso em vista, utilizar a expressão “morador de rua” para se referir às pessoas em situação de rua é de uma impropriedade técnica sem tamanho, já que se estaria – se assim fosse adequado – interpretando a exceção como regra e a regra como exceção, já que grande parcela das pessoas em situação de rua não “mora na rua”, mas “está em situação de rua” por um período de suas vidas até que consiga transcender a situação de vulnerabilidade.

Outra expressão utilizada no cotidiano brasileiro e que merece ser alvo de uma reflexão é a palavra “mendigo”. Segundo o dicionário Aurélio, mendigo é “aquele que pede esmolas, que vive da caridade alheia”. Primeiramente, é necessário ressaltar que nem toda pessoa em situação de rua pede esmolas ou vive de caridade alheia. Boa parte encontra-se inserida no mercado formal ou informal de trabalho, mesmo estando concomitantemente em situação de rua[19].

Além disso, a própria expressão “mendigo”, por si só, possui uma carga semântica preconceituosa e estigmatizante[20], sendo inclusive um dos alicerces da fase da criminalização do Direito das Pessoas em Situação de Rua, período histórico no qual se criminalizavam as pessoas em situação de rua pela sua simples condição existencial.

Lembramos ao leitor que a contravenção penal de mendicância existiu por mais de quatro décadas na história recente do Estado brasileiro e que ainda existem infrações criminalizando os atos de mendicância em determinado contexto, como ocorre no caso do artigo 247, inciso IV, do Código Penal (crime de abandono intelectual) ou ainda na famigerada contravenção penal de vadiagem (art. 59 do Decreto Lei 3.688/1941).

Assim, a utilização da palavra “mendigo” para se referir às pessoas em situação de rua possui dois pecados originários: a) nem toda e qualquer pessoa em situação de rua pede esmolas ou vive da caridade alheia; b) a expressão possui uma carga semântica preconceituosa e estigmatizadora, materializando a perniciosa fase da criminalização do Direito das Pessoas em Situação de Rua. A expressão “pedinte” também carece dos mesmos defeitos mencionados.

Infelizmente, e por incrível que possa parecer, muitas pessoas utilizam a expressão “maloqueiro”, que, segundo o dicionário Aurélio, significa “menor que vagueia pelas ruas, ger. em grupo, pedindo dinheiro, praticando pequenos furtos, especialmente aqueles que pernoitam em malocas”, para se referir às crianças e adolescentes em situação de rua. Os pecados originais dessa expressão são exatamente os mesmos da expressão “mendigo”.

Neste ponto, recomendamos a adoção na íntegra do conceito adotado pelo artigo 1º, §2º da recente Resolução nº 40/2020 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, no qual: “Consideram-se crianças e adolescentes em situação de rua os sujeitos em desenvolvimento com direitos violados, que utilizam logradouros públicos e/ou áreas degradadas como espaço de moradia ou sobrevivência, de forma permanente e/ou intermitente, em situação de vulnerabilidade e/ou risco pessoal e social pelo rompimento ou fragilidade do cuidado e dos vínculos familiares e comunitários, prioritariamente em situação de pobreza e/ou pobreza extrema, com dificuldade de acesso e/ou permanência nas políticas públicas, sendo caracterizados por sua heterogeneidade, como gênero, orientação sexual, identidade de gênero, diversidade étnico-racial, religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade, de posição política, deficiência, entre outros”.

Outra nomenclatura inapropriada utilizada pelo mainstream para se referir às pessoas em situação de rua é a expressão “espoliados urbanos”. Logo de início é possível perceber que tal expressão retrata uma falsa premissa, qual seja, reconhecer a existência de pessoas em situação de rua tão somente em ambientes urbanos.

É verdade que a situação de rua é um fenômeno tipicamente urbano, conforme veremos em um próximo texto desta coluna. Todavia, não existem fatores que impeçam a existência de pessoas em situação de rua também em ambientes rurais[21].

Mais textos sobre este importante grupo vulnerável serão abordados ao longo desta coluna.

Até a próxima!

[1] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones filosóficas. México: UNAM, 1988.

[2] Segundo Rodrigues: “(…) considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”. RODRIGUES, Samuel. A voz da rua. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; ALMEIDA, Gregório Assagra de; et al. (org.). Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 22.

[3] Sobre a importância da heterogeneidade no processo de descortinamento do véu do preconceito colocado sobre as pessoas em situação de rua, é a lição de Bruno Rodrigues Leite: “Em primeiro lugar, definir a população em situação de rua como grupo populacional heterogêneo é passo importante para a formulação e efetivação de políticas públicas, pois desmistifica a ideia segundo a qual a dependência química, a escolha por sub-viver nas ruas e a prática de pequenos delitos são as principais e únicas características comuns a esses indivíduos”. LEITE, Bruno Rodrigues. A condição da população em situação de rua. Curitiba: CRV, 2020, p. 30.

[4] “[O] processo de ocultação simultânea da violência social e das populações que dela são vítimas se instala em três etapas, que se sucedem. A primeira é a da elaboração de um discurso ideológico da desqualificação, onde é construída uma imagem demonizada do ‘outro’, associada a problemas de desordem, insegurança, epidemias e criminalidade, servindo de legitimação a uma ruptura do contrato social. A segunda é a desvinculação, que expressa a rejeição, pela sociedade, dos indivíduos ‘desqualificados’ ou afastados dos processos produtivos reconhecidos. A desvinculação se reflete em baixa auto-estima e tende a implicar isolamento social e psíquico. A terceira, que radicaliza as precedentes, é a eliminação e pode se dar tanto pelo extermínio, quanto pela esterilização, pelo genocídio cultural, ou mesmo pela deportação”. BURSZYTIN, Marcel. Da pobreza à miséria, da miséria à exclusão: o caso das populações de rua. In: BURSZYTIN, Marcel (org.). No meio da rua: nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2003, p. 39.

[5] WANDERLEY JR., Bruno; SILVA, Carla Ribeiro Volpini. As pessoas em situação de rua e o sistema interamericano de direitos humanos: importante instrumento em prol da dignidade humana. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; ALMEIDA, Gregório Assagra de; et al. (org.). Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 67.

[6] PALHARES, Tatiane Campelo da Silva. Direitos fundamentais das pessoas em situação de rua. São Paulo: JH Mizuno, 2020, p. 112.

[7] Corte IDH, Caso Villagrán Morales e outros vs. Guatemala (Caso dos Meninos de Rua), Reparação e Custas. Julgado em 26 de maio de 2001, § 33.

[8] CIDH, Observações preliminares da visita in loco da CIDH ao Brasil. 2018, p. 17. Disponível em: <oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf>.

[9] Sobre o tema, ver a obra clássica de TORRES, Ricardo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. Especificamente sobre esse tema em cotejo com o Direito das Pessoas em Situação de Rua: GARCIA, Emerson. Pessoas em situação de rua e direitos prestacionais. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 19, jan./jun. 2012, pp. 311–340.

[10] A expressão “aporofobia” denota o medo, rejeição ou aversão aos pobres. Sobre o tema: CORTINA, Adela. Aporofobia: a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Corta Corrente, 2020.

[11] Acerca do tema, ver SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editora, 1999.

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, pp. 248–249.

[13] “O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana”. STF, RE 477.554 AgR, Relator: Ministro Celso de Mello, julgado em 16/8/2011, DJe 25/08/2011.

[14] Sobre a expressão “em situação de rua”, parcela da doutrina propõe uma classificação entre: a) pessoas que estão na rua; b) pessoas que são da rua e; c) pessoas que ficam na rua. Segundo esta classificação, as pessoas que “ficam na rua” possuem um alto grau de precariedade em sua vida, seja em razão de uma situação de desemprego, saúde precária, ou de longos deslocamentos durante a busca por emprego e por atendimento de saúde, fazendo com que estas pessoas passem a noite em rodoviárias, albergues ou locais públicos que possuem movimento e fluxo de pessoas, a fim de não correr perigo. Já as pessoas que “estão na rua” seriam aquelas que não se sentem ameaçadas enquanto estão nas ruas e, em razão disso, passam a estabelecer relações com outras pessoas que estão em situação de rua, formulando estratégias de sobrevivência – por exemplo, a venda de produtos nos semáforos ou o exercício das profissões de guardador de carro ou de catador de lixo. Por fim, as pessoas “que são da rua” seriam aqueles indivíduos que já se encontram em situação de rua por um período considerável e, em razão de tal fato, acabam sofrendo um processo de debilitação física e mental, geralmente causado pelo uso de álcool e drogas. Trouxemos a classificação apenas a título de curiosidade, já que os autores deste curso não a adotam como linha base para o desenvolvimento deste capítulo. Para um aprofundamento sobre o tema, ver: VIEIRA, M. da C.; BEZERRA, E. M. R.; ROSA, C. M. M. (Orgs.). População de rua: quem é? Como vive? Como é vista? São Paulo: Hucitec, 1994.

[15] CIDH, Observações preliminares da visita in loco da CIDH ao Brasil. 2018, p. 17. Disponível em: <oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf>.

[16] Concordando com nossa posição, é a lição de Renan Vinicius Sotto Mayor, Natan Aquilar Duek e Thales Arcoverde Treiger: “Nesse âmbito, o primeiro delineamento teórico necessário é a utilização da terminologia ‘população em situação de rua’, em oposição à utilização da expressão ‘morador de rua’, que naturaliza uma situação de absoluta vulnerabilidade e violência: a rua como um local de moradia. Assim, terminologia em situação de rua’ resolve parcialmente a problemática, na medida em que estabeleceria em comum, para esta população, a permanência (momentânea/temporária) nas ruas, ou seja, nos espaços públicos, ocasionada por um conjunto complexo de adversidades”. MAYOR, Renan Vinicius Sotto; DUEK, Natan Aquilar; TREIGER, Thales Arcoverde. Invisíveis e reais: A atuação da Defensoria Pública da União para a inclusão de pessoas em situação de rua no censo demográfico. In: SIMÕES, Lucas Diz; MORAIS, Flávia Marcelle Torres Ferreira de; FRANCISQUINI, Diego Escobar. (org.). Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, pp. 299–300.

[17] No âmbito do Supremo Tribunal Federal: HC 97177, relator: min. Cezar Peluso, Segunda Turma, julgado em 08/09/2009 e RE 634643 AgR, relator: min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 26/06/2012. No Superior Tribunal de Justiça: HC 585.640/SP, relator: min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 08/09/2020; AgRg no HC 587.053/SC, relator: min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 04/08/2020; AgRg no HC 564.293/GO, relator: min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 28/04/2020; RHC 115.903/MS, relatora: min. Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 03/09/2019, entre outros. Utilizando a expressão “pessoa em situação de rua”, adotada pela Política Nacional das Pessoas em Situação de Rua e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos: STJ, AgInt no RHC 111.573/SP, relator: min. Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 05/11/2019. No Supremo Tribunal Federal: HC 178.773-MC, relator: min. Edson Fachin, julgado em 28/11/2019; HC 122.245, relator: min. Luiz Fux, julgado em 08/08/2014; ACO 3359-MC, relator: min. Marco Aurélio, julgado em 20/03/2020 e ARE 1.007.791, relator: min. Luiz Fux, julgado em 05/12/2017.

[18] Não reconhecendo a temporariedade da condição de estar em situação de rua, LEITE, Bruno Rodrigues. A população em situação de rua e o mandado de segurança. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.

[19] Segundo a última Pesquisa Nacional sobre a População de Rua, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) nos anos de 2007 e 2008, das 31.922 pessoas em situação de rua entrevistadas pelo MDS, 70,9% exercem algum trabalho ou atividade remunerada e apenas 15,7% pedem contribuição a outrem como principal forma de subsistência. Há, inclusive, uma classificação dos adolescentes em situação de rua à luz do seu trabalho, desenvolvida pela doutrina estrangeira com base em informações da Organização das Nações Unidas. Segundo esta classificação, consideram-se: a) meninos(as) em situação extraordinária: todos aqueles meninos e meninas em situação de rua que trabalham no setor informal da economia; b) meninos(as) de rua: todos aqueles meninos e meninas destituídos de todo e qualquer vínculo familiar e que trabalham na rua; c) meninos(as) na rua: todos aqueles meninos e meninas que ainda conservam vínculos familiares e habitam e trabalham na rua. Maiores informações sobre cada uma dessas classificações podem ser encontradas em: INEGI (Instituto Nacional de Estatística e Geografia). Módulo de trabajo infantil 2007: encuesta nacional de ocupación y empleo 2007: documento metodológico, México, INEGI, 2007, p. 5; Consejo de Derechos Humanos de las Naciones Unidas, Informe de la Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos sobre la protección y promoción de los derechos humanos de los niños que viven y/o trabajan en la calle, A/HRC/19/35, Nova York, 11 jan. 2012, § 8; GARCIA, Juan Martín Perez, La infancia callejera: apuntes para reflexionar el fenomeno. Revista Española de Educación Comparada, n. 9, Espanha, 2003, p. 168.

[20] A utilização de termos estigmatizantes e pejorativos para se referir às pessoas em situação de rua também ocorreu em países desenvolvidos como Estados Unidos da América e França, conforme bem explica Isabella Viegas Moraes Sarmento: “O próprio marco mundial que objetivou tratativas mais humanitárias com o grupo engendrou-se apenas nos anos 90, onde, em primeiro lugar, as nomenclaturas destinadas a populações vulneráveis modificaram-se. Anteriormente ao marco, a população de rua era chamada de clochard – termo discriminatório que faz analogia à personagem folclórico, marginal e bêbado. Após o marco, os termos e citações foram modificadas para SDF – sans domicile fixe (sem domicílio fixo) e Homeless (sem casa), obrigando os governos e imprensa franceses e americanos a adotar imediatamente tais nomenclaturas”. SARMENTO, Isabella Viegas Moraes. A ineficácia das políticas públicas destinadas à população de rua. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 43.

[21] Parcela da doutrina utiliza a expressão “refugiados urbanos” para se referir às pessoas em situação de rua. A utilização de tal expressão não me parece adequada; afinal, nem toda pessoa em situação de rua está necessariamente em local ou ambiente urbano. Outrossim, a utilização da expressão “refugiados urbanos” para se referir às pessoas em situação de rua também ocasiona uma confusão entre conceitos de grupos vulneráveis distintos, uma vez que toda a legislação e os tratados internacionais que tratam do tema dos migrantes, refugiados e apátridas utilizam a expressão “refugiado” na sua perspectiva clássica, qual seja, para se referir àquele que busca refúgio em país que não seja o seu de origem. Sobre a utilização da expressão do termo “refugiados urbanos” para se referir às pessoas em situação de rua, ver LESCHER, Auro Danny; BEDOIAN, Graziela. Refugiados urbanos: rematriamento de crianças e adolescentes em situação de rua. São Paulo: Peirópolis, 2017.

Thimotie Aragon Heemann – Bacharel em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP). Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, atualmente na Comarca de Santo Antônio do Sudoeste/PR. Colaborador no Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado do Paraná (CAOPJDH). Colaborador do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial (NUPIER) do Ministério Público do Estado do Paraná. Colaborador no Centro de Apoio Operacional às Promotorias Cíveis, Fundações e com Atuação no Terceiro Setor (CAOPCFT) Palestrante. Professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos do Curso CEI, da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR) e da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Autor de livros e artigos jurídicos

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