Por quê algumas crianças escrevem as letras espelhadas

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Autor: Valéria Barbosa de Resende,

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG / Faculdade de Educação / Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita-CEALE,

A escrita espelhada pode ser caracterizada por dois tipos de ocorrências: as rotações de letras e a mudança da posição da letra no interior da palavra. Nas rotações, as letras são rodadas sobre o próprio eixo; temos, por exemplo, as inversões das letras: p e q, b e d, u e n. A mudança de posição ocorre quando uma letra tem sua localização modificada dentro da palavra; por exemplo, a criança escreve anso para anos, ou coraçoa para coração. A escrita espelhada é uma ocorrência comum e frequente nos primeiros anos de escolarização e não pode ser considerada como indício de distúrbios e patologias.

Antes da contribuição de vários estudos linguísticos que se ocuparam dessas ocorrências, apresentando explicações que subvertem a lógica do erro, vigorou na Pedagogia uma perspectiva organicista, pois o espelhamento de letras era entendido como um problema de natureza neuropsicomotora e de domínio espacial, cuja explicação estava relacionada ao conflito entre hemisférios direito e esquerdo do cérebro, falhas na percepção visual, na lateralidade, no esquema corporal ou em noções espaço-temporais.

No Brasil, o trabalho de Cacilda Cuba dos Santos, na década de 1970, seguiu essa tendência de análise, apontando erros típicos que podem ocorrer tanto na escrita quanto na leitura: confusão entre letras simétricas (p/q; n/u; d/b), inversão da ordem das letras dentro de uma sílaba (pal/pla). Disseminou-se a crença, tanto no meio clínico quanto no meio escolar, de que as inversões de letras poderiam ser indícios definidores da dislexia. Com base na perspectiva psicogenética piagetiana, pode-se explicar a escrita espelhada a partir de outros argumentos, que vão além dos aspectos visoespaciais, e romper com uma explicação de caráter patológico. A referência está calcada nos aspectos próprios do desenvolvimento cognitivo infantil, na construção da noção de realidade, mais especificamente, a noção de permanência e de invariância do objeto. Uma das principais descobertas da criança é a compreensão de que os objetos podem ter uma existência independente e que eles possuem propriedades invariáveis.

Assim, a partir do desenvolvimento dessa capacidade, uma criança pode reconhecer seus pais, bem como outras pessoas que lhe são familiares, independentemente da posição em que se encontrem. No caso da escrita, a situação é bem diferente, ou seja, a posição da letra determina sua identidade, e esse aspecto precisa ser observado; por exemplo, quando o círculo estiver voltado para baixo e para a esquerda, será a letra “d”; quando estiver voltado para baixo e para a direita, será a letra “b”; quando o círculo estiver voltado para a direita e para cima, é a letra “p”; e, por fim, se estiver voltado para a esquerda, será a letra “q”, ou seja, a letra não é um objeto que pode modificar de posição e se manter como ‘invariante’.

Conhecer as convenções da escrita e suas arbitrariedades é um primeiro passo para solucionar os problemas que envolvem a escrita espelhada. A criança precisa ser orientada sobre a necessidade de se levar em consideração a posição das letras, tomando como referência o espaço gráfico, isto é, as margens do papel, a direção (da esquerda para direita) e o sentido (de cima para baixo) da escrita. É importante mostrar para a criança que, além de sua permanência como traço gráfico e sua convencionalidade, as letras também podem até mudar de som em razão da posição que passam a ocupar; por exemplo, a letra R no início da palavra, como em ROMA (som forte), e a letra R entre duas vogais, como em BARATA (som fraco).

A criança também precisa compreender que, se é invertido o PAL pelo PLA, ocorre mudança sonora na leitura da palavra. Estudos recentes mostram que quanto mais a sílaba se distancia do padrão CV (consoante vogal), mais chances tem o aprendiz de trocar a ordem das letras - mas essas ocorrências estão num padrão de normalidade comum na fase inicial da escrita e tendem a desaparecer no tempo de consolidação das aprendizagens.

Verbetes associados: Dislexia, Estrutura Silábica, Grafema, Ortografia, Sílaba, Sílaba canônica

Referências bibliográficas:
AJURIAGUERRA, J. A dislexia em questão: dificuldades e fracassos na aprendizagem da língua escrita. Porto Alegre:Artes Médicas, 1984.
PIAGET, J. A construção do real na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
CUBA, C. C. Dislexia específica de evolução. São Paulo: Sarvier, 1975.
ZORZI, J. L. Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita: questões clínicas e educacionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.

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É comum nos primeiros registros escritos observarmos as crianças escrevendo letras, números e palavras de trás para frente (veja o vídeo no final deste post). Por que isto acontece? Em primeiro lugar, trata-se de um fato comum no processo de aprendizagem da linguagem escrita porque nas primeiras tentativas a criança ainda não sabe todas as regularidades. Por exemplo: em nossa cultura se lê e se escreve da esquerda para a direita, ao contrário de outras culturas como a árabe e a hebraica que escrevem da direita para a esquerda, ou ainda os chineses, que escrevem de cima para baixo.

Também é necessário compreender que a criança em fase de alfabetização está adquirindo a noção de direita e esquerda e as áreas cerebrais responsáveis por noções visoespaciais estão em processo de maturação. Jogos e brincadeiras que envolvam principalmente o corpo são de grande importância para a alfabetização porque a criança primeiro precisa construir estas noções em seu próprio corpo. 

De qualquer forma, nesses primeiros passos no caminho da alfabetização, é frequente os pais ficarem angustiados ao observarem estas escritas espelhadas acompanhadas também de falta de letras ou mistura de letras e números. O ideal é deixar seus filhos fazerem suas tentativas, pois as crianças, conforme pesquisas realizadas por Emília Ferreiro e Ana Teberosky (pesquisadoras reconhecidas internacionalmente por seus trabalhos sobre alfabetização), começam a construir a língua escrita muito antes de entrarem no ensino formal.

De acordo com Zorzi (2000):

“Por muito tempo e, de modo bastante insistente, temos sido levados a ver, nos erros e enganos que as crianças fazem ao escrever, indícios de distúrbios e patologias. Os espelhamentos de letras são um exemplo típico desta maneira, até mesmo parcial e distorcida, de compreendermos o que é a aprendizagem.”

As crianças podem, a princípio, além da escrita espelhada, escrever “formiga” com poucas letras e “boi” com muitas. É comum  justificarem que formiga é pequena, logo precisa de poucas letras, exemplo: CFAO. Já o boi é grande, então precisa de muitas letras: JAJNSHSJAKOV. Em outros casos, elas utilizam as letras do próprio nome em ordem diferente para muitas palavras. Mais adiante passam por outra fase e então escrevem uma letra para cada vez que pronunciam um som.

E assim a criança segue gradualmente em sua investigação, até atingir a escrita convencional.

Não existe criança que não sabe nada sobre a escrita. O que acontece é que a criança pensa sobre a escrita formulando hipóteses sobre ela, para compreender o que a mesma significa. Isto não quer dizer que ela não precisa de um mediador para aprender a ler e escrever. A ação de um mediador é imprescindível para fazer com que a hipótese da criança entre em conflito e assim proporcione o seu avanço.

Feuerstein (1980 apud Beyer, 1996, p. 75) diz:

Por meio do conceito da experiência da aprendizagem mediada (EAM) nós nos referimos à forma como os estímulos emitidos pelo meio são transformados por um agente ‘mediador’, usualmente um pai, um irmão ou outra pessoa do círculo da criança. Este agente mediador, motivado por suas intenções, cultura e envolvimento emocional, seleciona e organiza o mundo dos estímulos para a criança. O mediador seleciona os estímulos que são mais apropriados e então os filtra e organiza; ele determina o surgimento ou desaparecimento de certos estímulos e ignora outros. Através desse processo de mediação, a estrutura cognitiva da criança é afetada.

Mas, muitas vezes, quando se ouve dizer que uma criança de 5 anos está lendo e escrevendo, logo vem aquela preocupação: será que meu filho de 6 anos tem problemas? Neste caso é melhor agir com bom senso, respeitando o ritmo de cada um. A escola deve ser parceira dos pais, dizendo-lhes quando percebe algo que mereça mais atenção.

Zorzi (2000) também comenta:

Estamos, como adultos, fortemente contaminados com noções rígidas de “certo” e “errado”: se a criança está agindo ou pensando da mesma forma que nós, então ela sabe, ela está certa, está aprendendo. Caso contrário, se ela assimila, ou entende uma situação de uma maneira distinta da nossa, que não está de acordo com nossas concepções e crenças, então ela está errada. Não está aprendendo. E, se não está aprendendo, então deve ter dificuldades, problemas, e assim por diante.

Há uma preocupação exagerada para que se leia cada vez mais cedo. O mais sensato é baixar a ansiedade, acompanhar o desenvolvimento da criança, confiar na escola do seu filho e proporcionar um ambiente rico em leitura e escrita, regado com muita paciência e persistência.

No mais é curtir e guardar estas primeiras tentativas de escrita com o mesmo valor dado às primeiras palavras e os primeiros passos.

Olhem que LINDO vídeo eu recebi!!! Ilustra exatamente o tema abordado.  Artur aos 4 anos e 5 meses escreveu seu nome assim: 

P.S.
 A escrita espelhada é comum até a idade de 7-8 anos. Se, entretanto, mesmo recebendo estímulo e ensino adequados, ainda assim ela estiver apresentando, além da escrita espelhada, dificuldade na aprendizagem da leitura e escrita, considero prudente uma avaliação psicopedagógica.

REFERÊNCIAS

BEYER, Hugo Otto. O fazer psicopedagógico: a abordagem de Reuven Feuerstein a partir de Piaget e Vygotsky. Porto Alegre: Mediação, 1996.

ZORZI, Jaime Luiz. As inversões de letras na escrita o “fantasma” do espelhamento. 2000. Disponível em < //www.filologia.org.br/soletras/15sup/As%20invers%C3%B5es%20de%20letras%20na%20escrita-%20o%20’fantasma’%20do%20espelhamento.pdf>. Acesso em 11 fevereiro 2011.

 OBRAS CONSULTADAS

FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

MACEDO, Lino de; NORIMAR, Ana Lúcia Sícoli Petty, PASSOS, Norimar Christe.  Os jogos e o lúdico na aprendizagem escolar.  Porto Alegre: Artmed, 2005.

ZORZI, Jaime Luiz. Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita: questões clínicas e educacionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.

Clique no link abaixo para ter acesso a uma apostila com sugestões de atividades lúdicas para intervenção da escrita espelhada.

  • Escrita Espelhada: atividades para intervenção

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About Solange Moll

Especialista em Psicopedagogia Clinica e Institucional. Psicomotricista Relacional. Formação em Avaliação Dinâmica do Potencial de Aprendizagem e em PEI (Programa de Enriquecimento Instrumental) pelo CDCP (Centro de Desenvolvimento Cognitivo do Paraná) Centro de Treinamento Autorizado pelo Hadassah Wizo-Canada Reserach Institute e pelo ICELP - The Internacional Center for the Enhancement of Learning Potential, Jerusalém - Israel. Experiência em alfabetização e dificuldades de aprendizagem. Apaixonada por desenvolver jogos lúdicos e compartilhar com vocês <3

O que significa uma criança escrever espelhado?

A escrita espelhada costuma aparecer entre os quatro e os sete anos de idade. Esse período da vida coincide com o momento em que as crianças desenvolvem o predomínio de um hemisfério do cérebro, o que acontece entre os três e os cinco anos de idade. Isso determina a lateralidade.

O que significa escrever de forma espelhada?

A escrita espelhada pode ser caracterizada por dois tipos de ocorrências: as rotações de letras e a mudança da posição da letra no interior da palavra. Nas rotações, as letras são rodadas sobre o próprio eixo; temos, por exemplo, as inversões das letras: p e q, b e d, u e n.

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