Em media quantos negros são espancados por dia

Um adolescente negro com idade entre 15 e 19 anos, morto por arma de fogo, é o perfil de vítima mais comum entre as 34.918 mortes violentas de crianças e jovens no Brasil nos últimos cinco anos. Do total de mortes violentas nessa faixa etária, 80% das vítimas são pessoas negras.

O levantamento, divulgado hoje, é do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) a partir de boletins de ocorrência registrados em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal entre 2016 e 2020.

O estudo mostra que as mortes violentas se concentram principalmente na adolescência: 31 mil do total das vítimas têm entre 15 e 19 anos. Deste total, 25.592 (ou 80%) são pessoas negras.

Ampliando a análise para crianças a partir de 10 anos, a maioria das vítimas é do sexo masculino (91%) e alvo de armas de fogo (83%) em casos de homicídio doloso, feminicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes em decorrência de intervenção policial.

Segundo o estudo, cerca de 90% das mortes violentas são homicídios dolosos.

No caso dos meninos, conforme a idade avança, aumenta a proporção de mortos pela polícia, chegando a 16% dos casos de mortes violentas entre 10 e 19 anos em 2020.

São Paulo é o estado que mais registra casos do tipo na proporção de mortes violentas. Em 44,4% dos registros, os meninos de 10 a 19 anos morreram em decorrência de intervenção policial.

Embora negros sejam 53% da população brasileira, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a proporção de jovens negros com mortes violentas segue a alta tendência nacional para qualquer idade.

O último Atlas da Violência, também produzido pelo Fórum, em parceria com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), aponta que negros são 75,7% das vítimas de homicídios no Brasil.

'Hipervigilantismo' de meninos negros

Para Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o contexto social que atinge principalmente meninos negros vem do "histórico colonial" do Brasil.

Pacheco avalia que a sociedade é "hipervigilante" em relação a meninos negros, o que colabora para a alta vitimização desse grupo.

"Tanto a segurança pública quanto a segurança privada utilizam diversos estereótipos racistas para justificar sua lógica de funcionamento. Enquanto essa lógica e esse imaginário racista não forem desfeitos, esses meninos continuarão tendo maior risco de serem assassinados", afirma.

O pesquisador cita recentes casos de práticas racistas, como a denúncia de um código para identificar pessoas "simples" e negras em uma loja da Zara em Fortaleza, além dos registros de violência policial.

Temos uma sociedade voltada para marginalizar, matar e prender esses meninos, tirá-los das nossas vistas, tanto pelo que eles são quanto pelos seus traços culturais. Isso acaba reverberando para jovens que não são negros, mas estão inseridos dentro desse contexto e dessa cultura
Dennis Pacheco, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Dados são 'ponta do iceberg', diz Unicef

O estudo "Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil" coletou as informações a partir de solicitações feitas aos estados via LAI (Lei de Acesso à Informação).

Mas as respostas não obedeceram a um padrão de preenchimento e o cenário pode ser pior. Por exemplo, sete estados não apresentaram dados relacionados a 2016, enquanto alguns estados não apresentaram informações relativas a outros anos ou somente de um ou dois anos solicitados.

Das 27 unidades federativas, só há dados para os cinco anos analisados (2016 a 2020) para 16 delas.

A pesquisa também encontrou problemas de preenchimento incompleto ou informações insuficientes no momento do registro de ocorrência. Houve estados que entregaram dados referentes somente à faixa etária das vítimas, não à idade exata —o que dificulta a análise.

O campo raça/cor não foi preenchido em 30% dos casos anuais enviados aos pesquisadores. E, em mais de 90% dos registros, não há informações sobre local da morte, fundamental para traçar padrão de vítimas e agressores.

Para Danilo Moura, oficial de Monitoramento e Avaliação do Unicef no Brasil, o alto número de adolescentes mortos é a "ponta de um iceberg".

"Além dos mortos, temos aqueles que foram agredidos, ameaçados e vivem em um contexto de violência permanente. A morte é o ponto mais grave, mas todo o fenômeno é preocupante. É uma sociedade e um sistema em que a violência prevalece. Quando atinge mais meninos negros é resultado de um racismo estrutural", avalia.

Um relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, grupo de estudos sobre violência nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco, reuniu dados que demonstram como a população negra é a principal vítima da violência no país.

Os negros (pretos e pardos) são 75% dos mortos pela polícia. Entre as vítimas de feminicídio, 61% são mulheres negras. Enquanto a taxa geral de homicídios no Brasil é de 28 pessoas a cada 100 mil habitantes, entre os homens negros de 19 a 24 anos esse número sobe para mais de 200.

"Meninos negros das periferias aprendem a ter medo da polícia desde pequenos. Sabem que podem ser alvos de abordagens injustificadas, revistas humilhantes, prisões ilegais, agressões verbais, flagrantes falsos e algumas vezes espancamentos e morte", descreve o relatório.

"Em fevereiro de 2020, o vídeo de uma abordagem policial a um jovem de 16 anos no bairro de Paripe, em Salvador, obrigou o próprio governador, Rui Costa, a condenar publicamente a ação policial. As imagens mostram que o PM dá murros e chutes no rapaz, que usava cabelo no estilo black power, afirmando: "Você pra mim é um ladrão. Você é vagabundo! Olha essa desgraça desse cabelo. Tire aí (o chapéu), vá! Essa desgraça aqui. Você é o quê? Você é trabalhador, é, viado?'", narra o texto.

Para os analistas, as operações policiais violentas em áreas onde predominam populações negras e as abordagens ao "elemento suspeito cor padrão" são difundidas e interpretadas por parte da sociedade como ações de combate ao crime e não como política pública altamente racializada.

"A construção histórica de um estereótipo racializado que configura o 'criminoso' guarda conexão com a ideia das classes perigosas do início do século passado e com o projeto civilizatório eugênico de embranquecimento do país e de eliminação física do outro", afirma o relatório.

A Rede de Observatórios da Segurança é um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) lançado em 28 de maio de 2019 sob coordenação geral da cientista social Silvia Ramos. Entre 1º de junho de 2019 e 31 de maio deste ano, os pesquisadores analisaram notícias divulgadas pela imprensa e informações difundidas pelas redes sociais em busca de relatos sobre violência e segurança pública nesses cinco Estados. Dos 12.559 registros, apenas 50 se referiam ao racismo ou à injúria racial. O relatório faz crítica à imprensa por raramente registrar a cor das vítimas.

"O racismo é o motor do funcionamento pleno das instituições herdadas de um país escravista, de uma elite colonial, e essas instituições agem conferindo desvantagens e privilégios a partir da raça", afirma o texto. O relatório também analisa outros temas relacionados à criminalidade e segurança pública, como violência contra mulheres e operações policiais.

"O número assombroso de operações e patrulhamentos nos estados traduz uma abordagem da segurança pública em que políticas de prevenção, inteligência e investigação foram virtualmente abandonadas em favor de práticas de policiamento repressivo nas ruas, onde impera a lógica do flagrante. A produtividade policial é aferida pelo número de prisões e apreensões de drogas", diz o relatório.

Citando livro do antropólogo e especialista em segurança Luiz Eduardo Soares, o texto afirma que "esse sistema orienta o policial para as operações nas favelas e periferias, onde os policiais batem suas metas prendendo diariamente jovens negros portando ou comercializando pequenas quantidades de drogas no varejo. Assim se desenvolve uma onerosa e inútil estratégia de guerra às drogas, que na prática é uma guerra contra as periferias, e que enche as prisões de pequenos vendedores do tráfico, fortalecendo as facções".

Analisando mais de 7.000 textos, a Rede constatou que a palavra "investigação" aparece apenas 373 vezes e "inteligência", só 25 vezes.

Feminicídio

A violência contra a mulher foi outro tema abordado pelo relatório da Rede. "Ao todo foram computados 1.408 casos dessa natureza nos cinco estados monitorados. Estes casos distribuem-se entre tentativas de feminicídio/agressões físicas, feminicídios, violência sexual/estupros, homicídios, agressões verbais, tortura, sequestros, balas perdidas, cárcere privado, ameaças/coação, tentativas de homicídio e outros. Juntos, feminicídios e tentativas de feminicídio correspondem a 68,8% deste total — 454 e 516, respectivamente", relata a Rede.

"As informações disponíveis sobre a motivação de todos os casos de violência contra mulher, nos cinco estados, mostram 319 casos motivados por brigas, 123 por término de relacionamentos, 68 por ciúmes e 28 por crime de ódio - aquele praticado contra uma pessoa por ela pertencer à determinada etnia, cor, origem, orientação sexual e, neste caso, identidade de gênero. A maior parte dessas agressões é praticada por pessoas próximas: 466 casos por companheiros e ex-companheiros, 152 por namorados e ex-namorados, e 68 por outros familiares", segue o texto.

Segundo o relatório, um "caso de feminicídio barbaramente emblemático ocorreu em maio de 2019, no bairro do Cajá, em São Lourenço da Mata, Pernambuco. Débora Maria Sales da Silva, de cinco meses, foi espancada até a morte pelo seu pai, Augusto Silva da Cruz. A mãe da vítima, que também sofria violência pelo companheiro, contou que o marido não aceitava o fato de a criança ser menina. O Conselho Tutelar local já havia recebido denúncias de agressão e maus-tratos contra a criança.