De acordo com o texto, como se explica a quitação da dívida alemã ter demorado tanto tempo


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As características da guerra

Para a época em que ocorreu, a Grande Guerra teve uma duração incomum. Inicialmente, os países envolvidos esperavam uma guerra de movimento, rápida, na qual as tropas se deslocam e conquistam outro território. No entanto, nenhuma potência conseguiu vantagem suficiente para sobrepor-se à outra e vencer o conflito. Assim, passou a prevalecer uma guerra de posição, em que o objetivo era não perder terreno e buscar a conquista, pouco a pouco, dos territórios do inimigo, o que tornou as trincheiras a marca registrada da Primeira Guerra Mundial.

Em termos de extensão, a amplitude do conflito também merece destaque. Pela primeira vez, todos os grandes países da Europa entravam em guerra ao mesmo tempo. O conflito foi resultado do sistema de "paz armada", que juntava o armamentismo com alianças que se estendiam pelos continentes com base em interesses comuns entre os governantes dos países. A África foi envolvida na Grande Guerra, pois a maior parte do seu território era composta de colônias europeias. Na Ásia, o governo japonês viu mais vantagens em participar do conflito do que se manter neutro e declarou guerra à Alemanha, interessado nas bases alemãs na China. Os chineses, por sua vez, entraram na guerra, pelo menos nominalmente, para não se inferiorizarem diante do Japão. O Império Turco Otomano foi arrastado para a guerra ao lado da Áustria e da Alemanha.

Em termos de intensidade, a Primeira Guerra Mundial pode ser considerada a primeira experiência de "guerra total", aquela que exige que todos os habitantes de um país e todas as suas forças se voltem para sustentar as tropas com recursos materiais e humanos. Como os Estados envolvidos no conflito passaram a dirigir a economia para o esforço nacional de guerra, atingir a economia e a produção do inimigo passou a ser uma estratégia. O resultado foi um elevado número de mortes de civis. O conflito também impulsionou o avanço tecnológico bélico e utilizou recursos psicológicos: bombardeava-se a população civil nas cidades distantes dos fronts para abater o moral dos adversários. Essa prática seria tristemente comum nas guerras do século XX.

LEGENDA: Ruínas da cidade de Ypres, na Bélgica, destruída pelos alemães durante a Primeira Guerra Mundial.

FONTE: Print Collector/GettyImages

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Boxe complementar:

Construindo conceitos

Guerra Total

Atualmente, os noticiários de televisão e os jornais impressos trazem informações sobre diversos conflitos armados no mundo. Nas imagens, vemos cidades bombardeadas, miséria, evasão de refugiados, populações aterrorizadas e centenas de perdas humanas. Esse tipo de guerra é uma experiência predominantemente contemporânea, impondo-se desde o início do século XX, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Até o século XIX, os conflitos armados entre as nações eram travados, na maioria das vezes, por razões específicas, em geral, envolvendo a disputa de um território. Um corpo militar profissional e devidamente treinado enfrentava o inimigo em campos de batalha distantes das áreas urbanas. O conflito terminava com a rendição de um dos exércitos, cujos chefes militares aceitavam a derrota, em virtude da destruição de seu poderio bélico e da superioridade do oponente.

Na medida do possível, a população civil observava a guerra a distância, recebendo notícias pelos mais diferentes meios, como pelos parentes e amigos militares envolvidos no conflito ou pela imprensa escrita.

A partir da Primeira Guerra Mundial esse quadro efetivou novos contornos. Os objetivos da guerra não se limitavam a derrotar o exército inimigo, mas em aniquilar a nação oponente em conflito. Os contingentes militares foram expandidos, graças à convocação obrigatória da população civil e propagandas nacionalistas que incentivavam o alistamento voluntário. As cidades tornaram-se alvo prioritário, visto que a nação oponente, e não apenas o seu corpo militar, era considerada inimiga.

Essa guerra sem fronteiras envolvia toda a economia das nações em conflito, direcionando os setores produtivos e a pesquisa tecnológica para a fabricação de armas, munições, uniformes, equipamentos e instrumentos de guerra, como blindados, aviões e bombas. Muitas fábricas foram adaptadas para a nova produção, trabalhadores foram treinados e um novo contingente populacional foi convocado para trabalhar nas linhas de produção e participar do esforço de guerra: as mulheres.

O historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) analisou essas transformações no seu livro Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991), publicado em 1994, caracterizando a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais como um único grande conflito que marcou a "Era da Guerra Total", entre 1914 e 1945. A destruição sem precedentes do continente europeu e a morte de mais de 50 milhões de pessoas durante os anos do conflito foram resultado da expansão capitalista dos países em conflito. Segundo Hobsbawm, a Primeira Guerra foi travada como um tudo ou nada:

[...] essa guerra, ao contrário das anteriores, tipicamente travadas em torno de objetivos específicos e limitados, travava-se por metas ilimitadas. Na Era dos Impérios a política e a economia se haviam fundido. A rivalidade política internacional se modelava no crescimento e competição econômicos, mas o traço característico disso era precisamente não ter limites. [...] Mais concretamente, para os dois principais oponentes, Alemanha e Grã-Bretanha, o céu tinha de ser o limite, pois a Alemanha queria uma política e posição marítima globais como as que então ocupava a Grã-Bretanha, com o consequente relegamento de uma já declinante Grã-Bretanha a um status inferior.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 37.

Boa parte das guerras travadas durante os séculos XX e XXI se assemelharam à guerra total travada pelas potências mundiais no início do século passado. Foram conflitos extremamente violentos, capazes de destruir países e cidades inteiras, exterminar elevados contingentes populacionais e envolver um esforço de guerra impressionante, que levava os países envolvidos ao esgotamento econômico.

Assim, a noção de guerra total se mantém no horizonte dos conflitos entre os povos, indicando que sua destruição ultrapassa com frequência os agentes militares envolvidos nas decisões tomadas.

Agora, faça o que se pede:

- Em dupla, façam uma busca em alguns sites de notícias e procurem informações sobre conflitos internacionais em curso. Selecionem um desses conflitos e desenvolvam uma pesquisa mais aprofundada sobre as origens e as razões do conflito, os países envolvidos, os territórios e regiões que sofreram algum tipo de ataque. Organizem essas informações num painel e apresentem para a classe.

LEGENDA: Pôster de recrutamento da Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial, no qual se lê: "Se eu falhar, ele morre". Produzido por Arthur McCoy em 1918.

FONTE: The Granger Collection/Glow Images

Fim do complemento.

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Os tratados de paz: sementes de uma nova guerra

Com o fim das operações militares, os vitoriosos reuniram-se em 1919 no Palácio de Versalhes, nos arredores de Paris, para as decisões do pós-guerra. O encontro foi dirigido pelo presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, e os chanceleres David Lloyd George (1863-1945), da Inglaterra, e Georges Clemenceau (1841-1929), da França.

O presidente estadunidense propôs um plano que foi inviabilizado por diversos acordos paralelos e, principalmente, por pressão da França e da Inglaterra. As conversações resultaram no Tratado de Versalhes, que considerou a Alemanha culpada pela guerra e criou uma série de determinações que visavam enfraquecê-la e desmilitarizá-la.

Esse tratado estabeleceu a devolução da Alsácia-Lorena à França e o acesso da Polônia ao mar por uma faixa de terra que atravessava a Alemanha e desembocava no porto livre de Dantzig, o "corredor polonês". O governo da Alemanha perdeu todas as suas colônias ultramarinas e parte de seu território europeu. Perdeu também a artilharia e a aviação; passou a ter um exército limitado a 100 mil homens e ficou proibido de construir navios de guerra. Foi ainda obrigado a indenizar as potências aliadas pelos danos causados, em um total aproximado de 30 bilhões de dólares, valor que foi renegociado na década de 1920 até ser extinto em 1932. O Tratado de Versalhes também oficializou a criação da Liga das Nações, um fórum internacional que pretendia garantir a paz mundial. Essa pretensão, porém, não se concretizou, pois a liga não contou no início com a participação dos governos da Alemanha e da Rússia nem do próprio país que a idealizara e que se transformara na maior potência mundial: os Estados Unidos. Por discordar de muitas das decisões de Versalhes, o governo estadunidense preferiu assinar um acordo de paz com o governo alemão em separado.

Também em 1919, o Império Austro-Húngaro foi desmembrado pelo Tratado de Saint Germain. O governo da Áustria perdeu a saída para o mar e foi obrigado a reconhecer a independência da Polônia, da Tchecoslováquia e da Hungria e a criação do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (que, em 1929, adotaria o nome de Iugoslávia), perdendo, assim, a maior parte de seu território. Com a Hungria foi assinado o Tratado de Trianon e com a Bulgária, o Tratado de Neuilly.

LEGENDA: Uma grande multidão estava presente no Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes, França, durante a assinatura do tratado de paz, em 28 de junho de 1919.

FONTE: Lt. M. S. Lentz/Corbis/Latinstock

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Desse modo, os tratados assinados entre 1919 e 1921 selaram a desintegração territorial dos impérios Austro-Húngaro e Turco Otomano (Tratado de Sèvres, depois reformado pelo Tratado de Lausanne). Quanto ao Império Alemão, seria extinto por uma revolução em novembro de 1918.

Os tratados que puseram fim à guerra determinaram também o início da consolidação da independência de novos Estados, cujas soberanias foram ratificadas pelas populações envolvidas por meio de plebiscitos. Tais países, quase todos situados na península Balcânica e constituídos de etnias eslavas, passaram a integrar as novas áreas de atuação dos interesses das potências vencedoras.

Somado ao fato de que essas potências conseguiram manter praticamente intactas suas possessões na África e na Ásia, verificou-se, na década de 1920, o fortalecimento da supremacia econômica e financeira dos Estados Unidos, seguidos de perto pela Inglaterra e França. Vinte anos mais tarde, essa supremacia seria contestada pelo revanchismo alemão, que não havia morrido em Versalhes nem nos acordos posteriores.

LEGENDA: Nesta caricatura de E. Schilling, de 1919, as determinações de Versalhes são representadas como um fardo pesado para o povo alemão.

FONTE: Reprodução/Coleção particular

As novas nações europeias

LEGENDA: Adaptado de: BARRACLOUGH, Geoffrey. Atlas da história do mundo. São Paulo: Times Books/Folha de S.Paulo, 1995. p. 240-241.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Atividades

Retome

1. No início do século XX, a Inglaterra era a maior potência capitalista. Contudo, sua hegemonia vinha sendo abalada pelo crescimento econômico de dois países concorrentes. Identifique-os e explique o crescimento desses dois países.

2. A passagem do século XIX para o século XX foi marcada pela formação de dois poderosos blocos militares na Europa.

a) quais eram esses blocos?

b) que países europeus compunham cada uma dessas alianças militares e que interesses as motivavam?

3. Uma questão central na geopolítica da Europa no início do século XX foi o conflito nos Bálcãs. Explique-a.

4. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) teve duas fases: a primeira foi caracterizada pelo deslocamento de tropas; e a segunda, pela guerra de trincheiras.

a) qual é a relação da primeira fase do conflito com o Plano Schlieffen, colocado em prática pelos alemães?

b) Consulte o infográfico Trincheiras da morte nas páginas 22 e 23 e, com base nele, descreva a guerra de trincheiras.

c) Releia as condições impostas à Alemanha ao final da Primeira Guerra e indique por que elas não favoreciam a concretização de um clima de paz na Europa.

Pratique

5. Leia o trecho a seguir.

Temos como certo que a guerra moderna envolve todos os cidadãos e mobiliza a maioria; é travada com armamentos que exigem um desvio de toda a economia para a sua produção, e são usados em quantidades inimagináveis; produz indizível destruição e domina e transforma absolutamente a vida dos países nela envolvidos. Contudo, todos esses fenômenos pertencem apenas às guerras do século XX. Na verdade, houve guerras tragicamente destrutivas antes, e mesmo guerras que anteciparam os esforços totais da guerra moderna, como na França durante a Revolução. Até hoje, a Guerra Civil de 1861-5 continua sendo o conflito mais sangrento da história dos EUA: matou tantos homens quanto todas as guerras posteriores do país juntas, incluindo as duas mundiais, a da Coreia e a do Vietnã. Apesar disso, antes do século XX, guerras envolvendo toda a sociedade eram excepcionais. [...].

O monstro da guerra total do século XX não nasceu já do seu tamanho. Contudo, de 1914 em diante, as guerras foram inquestionavelmente guerras de massa. Mesmo na Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha mobilizou 12,5% de seus homens para as Forças Armadas, a Alemanha 15,4%, e a França quase 17%. [...]

Podemos observar de passagem que um tal nível de mobilização de massa, durante anos, não pode ser mantido, a não ser por uma economia industrializada de alta produtividade e - ou alternativamente - em grande parte nas mãos de setores não combatentes da população. As economias agrárias tradicionais não podem em geral mobilizar uma proporção tão grande de sua força de trabalho, a não ser sazonalmente, pelo menos na zona temperada, pois há momentos no ano agrícola em que todos os braços são necessários (por exemplo, para a colheita). Mesmo em sociedades industriais, uma tão grande mobilização de mão de obra impõe enormes tensões à força de trabalho, motivo pelo qual as guerras de massa fortaleceram o poder do trabalhismo organizado e produziram uma revolução no emprego de mulheres fora do lar: temporariamente na Primeira Guerra Mundial, permanentemente na Segunda.

Também neste caso, as guerras do século XX foram guerras de massa, no sentido de que usaram, e destruíram, quantidades até então inconcebíveis de produtos durante a luta. [...]

Mas a produção também exigia organização e administração - mesmo sendo seu objetivo a destruição racionalizada de vidas humanas de maneira mais eficiente, como nos campos de extermínio alemães. Falando em termos mais gerais, a guerra total era o maior empreendimento até então conhecido do homem, e tinha de ser conscientemente organizado e administrado.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 51-52.

Agora, faça o que se pede.

a) A Primeira Guerra Mundial foi a primeira "guerra total" da História. Em que aspecto ela se diferenciou das guerras anteriores?

b) Basta uma guerra produzir muitos mortos e envolver muitos países para que ela seja classificada como uma "guerra total"?

c) Por que a "guerra total" é característica das sociedades altamente industrializadas?

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d) Se a "guerra total" consome uma quantidade inimaginável de recursos e produz um número imenso de mortes e mutilados, a quem ela interessa? Justifique a sua resposta.

6. Observe a imagem a seguir. Depois, resolva a atividade proposta.

LEGENDA: Litografia produzida na França entre 1914 e 1918 na qual se lê: "Os alsacianos e lorenos são franceses!"

FONTE: J. Cussac/Biblioteca do Congresso, Washington, Estados Unidos

a) Qual era a situação das regiões da Alsácia-Lorena no período em que a gravura foi publicada?

b) Quais atrativos possuía a Alsácia-Lorena que justificassem as disputas por seus territórios? Pesquise em enciclopédias, livros ou sites.

c) Na gravura, a Alsácia-Lorena é corporificada como uma mulher. Descreva-a, atentando para suas vestimentas, expressão facial, atitude e postura corporal.

d) A gravura dá alguma pista do que ocasionou o aprisionamento da Alsácia-Lorena? Explique.

e) Observe o mapa a seguir no qual estão identificados os dialetos falados na região da Alsácia-Lorena no século XIX. Com base nele, podemos afirmar que os habitantes da região apresentavam identidade inquestionavelmente francesa? Por quê?

Dialetos na região da Alsácia-Lorena no século XIX

FONTE: Fonte: ATLAS Wenker Digital (DiWA). Disponível em: www.diwa.info. Acesso em: 29 abr. 2016.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

7. No romance As aventuras do bom soldado Švejk, publicado originalmente no início da década de 1920, o escritor tcheco Jaroslav Hašek (1883-1923) escreve a seguinte passagem:

- Então eles mataram nosso Ferdinand - disse a empregada ao senhor Švejk, que abandonara havia alguns anos o serviço militar por ter sido declarado definitivamente idiota por uma junta médica do exército e vivia da venda de cães, monstruosos vira-latas para os quais inventava falsas genealogias.

Afora esta ocupação, sofria de reumatismo e, naquele exato momento, estava massageando os joelhos com uma pedra de cânfora.

- De qual Ferdinand está falando, senhora Müllerová? - perguntou Švejk, sem parar de massagear os joelhos [...]

- Meu caro senhor, estou me referindo ao arquiduque Ferdinand, o de Konopiště, aquele homem gordo e piedoso.

- Virgem santa! - exclamou Švejk. - Que história! E onde o arquiduque foi morto?

- Levou um tiro de revólver em Sarajevo quando passeava de automóvel com a arquiduquesa, senhor.

- Então vejamos, senhora Müllerová... No automóvel... Bem, um senhor como ele pode se permitir tal luxo, mas não seria capaz de imaginar que um passeio desses acabaria mal. E ainda por cima em Sarajevo, que fica na Bósnia, senhora Müllerová! Deve ter sido coisa dos turcos. Não deveríamos ter lhes tomado, em hipótese alguma, a Bósnia-Herzegovina. Ora, ora. [...]

HAŠEK, Jaroslav. As aventuras do bom soldado Švejk. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014. p. 15.

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a) O diálogo entre o personagem Švejk e sua empregada na abertura do romance de Hašek refere-se a um importante acontecimento que marcou a história do século XX. Identifique o acontecimento e explique seus desdobramentos políticos.

b) O acontecimento narrado foi provocado pelos turcos, como sugere o protagonista? Explique.

c) A hipótese do envolvimento turco no conflito é coerente com o cenário político vivido pela Europa no início do século XX? Justifique.

8. Analise a tabela abaixo e faça o que se pede adiante.


Gastos militares da Alemanha, Áustria-Hungria, Grã-Bretanha, Rússia, Itália e França
Ano Valor (milhões de libras)
1880 132
1890 158
1900 205
1910 288
1914 397

Apud HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). 7.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 479.

a) O que a tabela mostra?

b) O que os países cujos gastos militares são avaliados pela tabela no período de 1880-1914 têm em comum?

c) Em que período da tabela o investimento no setor militar foi maior?

d) O gráfico abaixo mostra os níveis relativos de industrialização dos países europeus entre 1750 e 1900. que relação é possível estabelecer entre ele e a tabela anterior?

Níveis relativos de industrialização (1750-1900)

FONTE: Fonte: BAIROCH, Paul. International Industrialization Levels from 1750 to 1980. Journal of European Economic History (JEEH) 11, 1982, p. 269.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

e) Com base nos dados da tabela, elabore, com suas palavras, um pequeno texto sobre a "paz armada", que antecedeu a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

9. Observe com atenção a imagem abaixo e leia o texto que a acompanha. A seguir, com base nas fontes, responda: de que maneira a Primeira Guerra Mundial transformou a vida da humanidade no Ocidente?

LEGENDA: Mulheres trabalham em fábrica de munições, propriedade do Estado, na Inglaterra. Foto de julho de 1917.

FONTE: Horace Nicholls/Acervo do Museu Imperial da Guerra, Londres.

A Primeira Guerra Mundial matou mais de oito milhões de soldados e 6,5 milhões de civis. Ainda que impressionantes, esses números são bem inferiores aos do segundo conflito mundial, que vitimou quase 50 milhões de pessoas e contou com um dos maiores genocídios da História e com um de seus maiores vilões, Adolf Hitler. Não é de se estranhar, portanto, que a Segunda Guerra receba mais atenção da cultura popular [...]. Mas essa disparidade é injusta: a guerra iniciada em 1914 mudou o mundo para sempre - e pavimentou o caminho para a que veio depois.

Nada semelhante havia acontecido antes. A explosão de uma guerra com aquelas proporções foi algo chocante. "Para os que cresceram antes de 1914, o contraste foi tão impressionante que muitos [...] se recusaram a ver qualquer continuidade com o passado. 'Paz' significava 'antes de 1914': depois disso veio algo que não mais merecia esse nome", escreveu o historiador britânico Eric Hobsbawm no livro Era dos extremos. Para ele, o conflito representa o fim do que ainda se ensina no Brasil como "Era Contemporânea" (iniciada com a Revolução Francesa), e marca o nascimento de um novo período histórico: o "Curto Século 20", que acabou com o fim da União Soviética em 1991.

100 anos da Primeira Guerra. Disponível em: http://guiadoestudante.abril.com.br/100-anos-primeira-guerra-mundial/mudanca.html. Acesso em: 25 abr. 2016.

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Analise uma fonte primária

10. Observe a imagem a seguir. Trata-se de um pôster britânico, divulgado logo após o final da Primeira Guerra Mundial. No topo, lemos "Uma vez alemão, sempre alemão". Na base, "Lembre-se: cada alemão empregado significa um britânico ocioso; cada artigo alemão vendido significa um artigo britânico encalhado". No centro, a cruz de uma cova estampa o nome da enfermeira Edith Cavell, fuzilada pelos alemães e considerada internacionalmente uma heroína da Primeira Guerra.

LEGENDA: Pôster divulgado na Inglaterra pela British Empire Union após o término da Primeira Guerra Mundial, que propagava o antigermanismo.

FONTE: The Bridgeman Art Library/Keystone Brasil

a) Ao final da guerra, qual era a imagem do povo alemão disseminada pelos seus adversários? Elabore sua resposta utilizando elementos do pôster.

b) Relacione o pôster acima ao acirramento da concorrência entre as potências industrializadas europeias no século XX.

c) O pôster pode ser visto como uma antecipação do espírito que nortearia a assinatura do Tratado de Versalhes? Explique.

Articule passado e presente

11. A notícia a seguir foi publicada em outubro de 2010, na revista História Viva e trata da quitação da dívida imposta à Alemanha pelo Tratado de Versalhes em 1919. Leia a matéria e responda às questões que a acompanham.

Como todos sabem, a Primeira Guerra Mundial terminou em 1918. Mas não para a Alemanha. Só no dia 3 deste mês o país quitou a dívida que contraiu após assinar o Tratado de Versalhes, acordo imposto em 1919 pelas nações vencedoras que determinou o pagamento de uma quantia para reparação dos danos causados pelos germânicos durante o conflito.

Entre outras coisas, o acordo obrigava a Alemanha a abrir mão de uma série de territórios conquistados nas décadas anteriores à Grande Guerra e a pagar aos Aliados uma indenização de 269 bilhões de marcos, valor equivalente a 96 toneladas de ouro. Essas imposições levaram o país à falência na década de 1920 e criaram o cenário ideal para a ascensão do partido de Hitler. Para muitos historiadores, não haveria nazismo se não fosse a miséria dos germânicos no pós-Primeira Guerra.

Segundo o jornal alemão Der Spiegel, o pagamento dessa dívida foi interrompido durante os anos do nazismo e renegociado várias vezes durante o último século. A última proposta de parcelamento do débito foi elaborada logo após a queda do Muro de Berlim, quando o país recém-unificado concordou em pagar um montante equivalente a 125 milhões de euros em prestações anuais. A primeira foi cobrada em 3 de outubro de 1990 e só agora, 92 anos após o fim da Primeira Guerra, os germânicos se livraram da dívida centenária.

ALEMANHA quita dívida da Primeira Guerra. História Viva. Disponível em: www2.uol.com.br/historiaviva/noticias/alemanha_quita_divida_da_primeira_ guerra.html. Acesso em: 18 fev. 2016.

a) De acordo com o texto, como se explica a quitação da dívida alemã ter demorado tanto tempo?

b) A punição imposta à Alemanha após a Primeira Guerra teve que resultados para a Europa?

c) Hoje a Alemanha é a maior credora da Grécia, país que integra a União Europeia e que atravessa profunda recessão. O governo alemão tem se mostrado bastante resistente diante das tentativas do governo grego em negociar sua dívida. Considerando os desdobramentos da assinatura do Tratado de Versalhes, você acha que o governo da Alemanha deveria negociar a dívida grega ou deve ser inflexível e cobrar do governo da Grécia o que ele deve? Justifique.



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De acordo com o texto, como se explica a quitação da dívida alemã ter demorado tanto tempo
De acordo com o texto, como se explica a quitação da dívida alemã ter demorado tanto tempo
De acordo com o texto, como se explica a quitação da dívida alemã ter demorado tanto tempo
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De acordo com o texto, como se explica a quitação da dívida alemã ter demorado tanto tempo


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2. O socialismo e as guerras

O século XX foi marcado por dois eventos considerados fundamentais para o entendimento das relações político-ideológicas, sociais e econômicas entre os povos: a Primeira Guerra Mundial e a queda da União Soviética e do socialismo no Leste europeu.

Ao fim da Segunda Guerra, que durou de 1939 a 1945, o mundo foi praticamente dividido em dois blocos de países: um deles, sob influência dos Estados Unidos; o outro, sob liderança da União Soviética. Durante cerca de 50 anos, as duas superpotências entraram em confronto sempre de forma indireta (apoiando os respectivos aliados em conflitos locais) e mantiveram o mundo sob a tensão de uma guerra nuclear que parecia iminente. Esse período ficou conhecido como Guerra Fria, cujo fim, em 1989, deu início a uma nova ordem internacional.

Todos esses eventos geraram muitos fatos a serem narrados e analisados. A seleção, a escolha do que se vai ou não estudar e considerar importante, e como se dará a abordagem, tornaram-se questões ainda mais complexas.

Multiplicaram-se também os focos de interesse com base nos quais essa seleção é feita. Assim, ficou mais fácil conhecer outros lados da história que é contada e analisada.

LEGENDA: Na foto de 1937, bonde elétrico na rua Liberdade, cidade de São Paulo, disputando espaço com o gado.

FONTE: Claude Lévi-Strauss/Acervo Instituto Moreira Salles

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3. A História em múltiplos focos

O surgimento de um espaço para a versão dos derrotados, antes raramente ou quase nunca considerada, é uma mudança historiográfica que não pode ser atribuída a um único autor ou tendência nem a um momento exato. Mas a Segunda Guerra Mundial contribuiu para essa perspectiva dos fatos.

No século XX, as descolonizações na África e na Ásia, bem como o fim do poder absoluto dos conquistadores europeus, também colaboraram para mudar a forma de escrever e explicar a História. Afinal, os povos que se constituem como nações soberanas têm a necessidade de relembrar o período em que foram dominados para dar um sentido ao processo de libertação e de construção nacional. Estimulavam a revisão do passado, com estudiosos adotando novas posturas e atitudes diante dos outros e de si mesmos.

Em diversos países, e particularmente no Brasil, vários grupos oprimidos passaram a buscar, a escrever e a valorizar suas histórias: os negros nas sociedades (aberta ou veladamente) racistas, as mulheres nas sociedades patriarcais e machistas, os trabalhadores, as minorias étnicas, os homens e as mulheres com diferentes orientações sexuais, etc.

Desse modo, várias transformações na maneira de compreender a História como ciência exigiram que ela fosse construída e ensinada de novas formas. Em termos políticos, a emergência das reivindicações de operários, trabalhadores rurais, negros e mulheres, entre outros sujeitos históricos, propiciou novos focos para se conhecer o passado. Isso também contribuiu para a valorização de diferentes fontes de informação.

Se até o início do século XX reinava a produção histórica que explicava o desenvolvimento das nações por meio daqueles que detinham o poder, no período posterior isso mudou. Surgiram novas interpretações que passaram a valorizar os que eram subalternos, como os escravizados e os marginalizados. Assim, o cotidiano e a trajetória desses grupos, seus hábitos, suas crenças e seus posicionamentos ideológicos passaram a ser estudados pelos historiadores. Criavam-se, desse modo, elementos para que a humanidade fosse compreendida de forma mais complexa e abrangente.

LEGENDA: A queda do Muro de Berlim, que ocorreu graças à mobilização popular, é um marco divisor entre o período da Guerra Fria e o da nova ordem internacional. Na foto, populares celebram o fim da Guerra Fria em 10 de novembro de 1989.

FONTE: Thomas Kienzle/Associated Press/Glow Images

LEGENDA: Manifestação pró-candidatura de Natércia da Cunha Silveira em 1933, ano em que as mulheres conquistaram o direito de voto para a Assembleia Nacional Constituinte.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

LEGENDA: Manifestantes saem às ruas para exigir eleições diretas após 20 anos de ditadura militar no Brasil. Comício realizado em São Paulo, em janeiro de 1984.

FONTE: Carlos Fenerich/Editora Abril

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CAPÍTULO 1: Um mundo em guerra (1914-1918)

LEGENDA: Bandeiras nacionais são os símbolos mais significativos para expressar o sentimento nacionalista baseado na territorialidade. Na foto, bandeiras dos países europeus membros da União Europeia, hasteadas na sede da organização, em Luxemburgo. Foto de 2015.

FONTE: Alita Bobrov/Alamy/Latinstock

O nacionalismo é um importante fator presente na Primeira Guerra Mundial, tanto em suas origens como nos acordos assinados para que o conflito chegasse ao fim. Esse sentimento é expresso por pessoas que se identificam com o território onde nasceram ou com tradições, hábitos e idiomas herdados de seus antepassados. Será que esse sentimento tem alimentado, até hoje, a rivalidade entre diferentes países?

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1. Marcas da guerra

Neste capítulo, o nosso foco é a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que mobilizou mais de 60 milhões de combatentes. Foi chamada de Grande Guerra até 1939, quando outro conflito de proporções ainda maiores fez com que ela passasse a ser chamada de Primeira Guerra Mundial. Para vários historiadores, esse conflito representou o começo efetivo do século XX.

Cerca de 9 milhões de pessoas morreram e 20 milhões foram feridas. Os sobreviventes tiveram de lidar com o luto, a fome, os ferimentos e as doenças. Os efeitos demográficos dessas mortes acompanharam a Europa por várias décadas.

Ainda hoje, em algumas regiões que foram palco de confrontos, há áreas de acesso proibido ou impróprias para plantação. Existem também áreas em que a vegetação não cresce por causa da contaminação do solo e dos lençóis freáticos provocada pelo uso de armas químicas. Granadas, bombas e minas não detonadas ainda são encontradas em determinadas regiões.

Diante desse quadro, ficam as seguintes reflexões:

- O conflito entre as nações que se enfrentaram referia-se a interesses de suas populações ou apenas de alguns de seus grupos sociais e políticos?

- As riquezas provenientes do domínio colonial eram concentradas nas mãos de poucos. O ônus do conflito armado que se originou pelas disputas coloniais foi pago apenas por seus beneficiários ou por toda a população?

LEGENDA: Soldados caminham em campo devastado na Bélgica. Foto de agosto de 1917.

FONTE: PhotographeAmateur/adoc-photos/Album/Latinstock

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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2. A política de alianças

No final do século XIX, boa parte do mundo era dominada pelas potências europeias, sobretudo pela Inglaterra. Entretanto, a hegemonia inglesa começava a enfrentar problemas, pois alemães e estadunidenses estavam à sua frente na produção de ferro e aço, matérias-primas fundamentais para a indústria.

Nos Estados Unidos, as indústrias química, elétrica e automobilística se desenvolviam consideravelmente. Na Alemanha, a indústria bélica prosperava com o programa naval de 1900, que visava conquistar um império colonial tardio, despertando a rivalidade britânica.

A Inglaterra era responsável por mais da metade do total de capitais investidos em várias partes do mundo e constituía o maior império colonial. Era também uma das maiores potências militares do início do século XX. Contudo, sua hegemonia era ameaçada por outros países imperialistas que exigiam a redivisão colonial, sobretudo na África e na Ásia.

A derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) acarretou a perda da região da Alsácia-Lorena para a Alemanha, o que despertou um espírito de revanche entre os franceses. Em contrapartida, a Alemanha, desde sua unificação, fundamentou sua política externa no isolamento da França, criando um sistema internacional de alianças político-militares que cerceassem o revanchismo francês.

Em 1873, o chanceler alemão Otto von Bismarck (1815-1898) instaurou a Liga dos Três Imperadores, da qual faziam parte a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Rússia. Entretanto, as divergências entre a Rússia e a Áustria com relação à região dos Bálcãs, originadas do apoio russo às minorias eslavas da região, que almejavam a independência, acabaram com essa aliança em 1878. Em 1882, o Reich (império) alemão aliou-se ao Império Austro-Húngaro e à Itália para formar a Tríplice Aliança.

A França conseguiu sair do isolamento em 1894, ao firmar um pacto militar com a Rússia. Em 1904, a Inglaterra se aproximou da França, formando o bloco Entente Cordiale, que ligava os interesses comuns dos dois países no plano internacional. A partir de então, as hostilidades foram esquecidas para que os dois países enfrentassem um inimigo comum: a Alemanha. A adesão da Rússia à Entente Cordiale originou a Tríplice Entente. Assim, passavam a existir na Europa dois blocos antagônicos: a Tríplice Aliança e a Tríplice Entente, que aceleraram a corrida armamentista.

A posição da Itália diante dos blocos era dúbia. Embora fizesse parte da Tríplice Aliança, cultivava sérios conflitos com o Império Austro-Húngaro e chegou a assinar acordos secretos de não agressão com a Rússia e com a França, países da Tríplice Entente.

A política de alianças: preparação para a guerra (começo do século XX)

LEGENDA: A expansão territorial alemã colocou em xeque os domínios herdados no século XIX - daí as crescentes tensões entre as potências que rivalizaram na Primeira Guerra Mundial.

FONTE: Adaptado de: CAMERA, Augusto; FABIETTI, Renato. Elementi di storia XX secolo. Bologna: Zanichelli, 1999. v. 3, p. 1169.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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3. A questão balcânica

Situada no sudeste da Europa, a região dos Bálcãs engloba países como a Albânia, a Bulgária, a Grécia, entre outros (veja o mapa a seguir). Em fins do século XIX, com o enfraquecimento e desmembramento do Império Turco Otomano, uma intensa disputa entre as grandes potências por seus territórios ganhou força. A intervenção imperialista internacional na região, polarizada pela Tríplice Entente e pela Tríplice Aliança, e as lutas nacionalistas dos diversos povos que faziam parte do Império Turco Otomano originaram sérias crises locais e internacionais.

Pretendendo controlar a região do mar Negro ao mar Egeu, passando pelos Bálcãs, o governo da Rússia defendia o pan-eslavismo (união dos povos eslavos) e a independência das minorias nacionais. Sua intenção era unificar os povos eslavos balcânicos, garantindo sua influência sobre as novas nações. Mas a Rússia teve de enfrentar resistência dos governos do Império Austro-Húngaro, protetor do Império Turco, e da Alemanha, que projetava construir a estrada de ferro Berlim-Bagdá, barrando a descida russa pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos, pertencentes ao Império Turco. Tal projeto da estrada pela Alemanha abriria acesso às áreas petrolíferas do golfo Pérsico, região de hegemonia inglesa.

O ideal de unificação eslava, encabeçado pela Sérvia e que resultaria na Grande Sérvia, tornou-se mais distante quando as regiões da Bósnia e da Herzegovina foram tomadas do domínio turco e anexadas à Áustria-Hungria, em 1908. Desse modo, os sérvios tinham agora de lutar contra os impérios Turco e Austro-Húngaro para conquistar a unidade. Nos anos seguintes, essa situação provocou agitações nacionalistas na região, promovidas pela Sérvia com apoio russo.

Povos balcânicos e vizinhos

LEGENDA: Os povos eslavos pertencem originariamente ao grupo indo-europeu: russos, ucranianos, sérvios, croatas, eslovenos, tchecos, eslovacos, morávios e poloneses, entre outros. A fixação de vários grupos eslavos e de outros povos na região balcânica, favorecendo a diversidade de nacionalidades e de lutas autonomistas, contribuiu para transformá-la em foco de disputas entre as potências, ocasionando o estopim da Primeira Guerra Mundial.

FONTE: Adaptado de: ATLAS da história do mundo. São Paulo: Folha de S.Paulo, 1995. p. 210.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Atentado em Sarajevo

Em 1914, o arquiduque Francisco Ferdinando (1863-1914), herdeiro do trono austro-húngaro, viajou a Sarajevo, capital da Bósnia, com o objetivo de acompanhar manobras militares e afirmar a força da monarquia austro-húngara. Contudo, Francisco Ferdinando foi assassinado por terroristas bósnios em 28 de junho de 1914, num atentado planejado pela organização secreta sérvia Mão Negra, contrária ao domínio austríaco. Em represália, o governo austríaco deu um ultimato à Sérvia, com uma série de exigências que feriam a soberania do país. Os sérvios não aceitaram as exigências.

Em resposta, o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia em meados de 1914. Imediatamente, a Rússia pronunciou-se a favor da Sérvia e, a partir de então, o sistema de alianças foi ativado, resultando na entrada da Alemanha, França e Inglaterra (além da Rússia) no conflito, que se generalizou.

LEGENDA: O arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa Sophie, em Sarajevo, em 28 de junho de 1914, momentos antes de serem assassinados.

FONTE: Time Life Pictures/GettyImages

4. O desenvolvimento do conflito

No esforço de guerra, todos os cidadãos das nações envolvidas no conflito em idade de combate foram recrutados para participar tanto do exército quanto da produção industrial, principalmente de armamentos. Tanques de guerra, encouraçados, submarinos, obuses de grosso calibre e a aviação, entre outras inovações tecnológicas da época, eram artefatos bélicos com um poder de destruição até então inimaginável.

Glossário:

obus: arma de artilharia que dispara projéteis explosivos em trajetórias curvas.

Fim do glossário.

De forma sintética, pode-se dizer que o conflito teve duas fases: em 1914, houve a guerra de movimento e, de 1915 em diante, a guerra de trincheiras ou de posição (observe o mapa da página 22). A primeira fase estava relacionada ao Plano Schlieffen. Esse plano previa a mobilização de boa parte do exército alemão para invadir o território francês, pela Bélgica e pela Alsácia-Lorena, e render Paris ao final de seis semanas. Alcançado tal objetivo, os alemães acreditavam que estariam livres para enfrentar os russos, direcionando suas tropas para o ataque e a invasão daquele país.

A invasão da Bélgica violou a neutralidade desse país e serviu de pretexto para a Inglaterra declarar guerra à Alemanha. Mesmo assim, a marcha dos exércitos alemães em direção a Paris surpreendeu as tropas francesas. Do lado leste, uma ofensiva russa inesperada, ainda em 1914, obrigou as forças alemãs a se dividirem, deslocando tropas para a região da Prússia Oriental. A França, beneficiando-se do apoio inglês, conteve o fulminante ataque alemão na Batalha do Marne, em setembro do mesmo ano.

Com o fracasso da guerra de movimento, teve início a guerra de posição ou de trincheiras, na qual os soldados combatiam dentro de trincheiras, valas escavadas no chão (ver infográfico nas páginas 20 e 21. Outras potências entraram no conflito, colocando-se ao lado da Tríplice Entente (França, Inglaterra e Rússia): Japão (1914), Itália (1915), Romênia (1916) e Grécia (1917). Ao lado das potências centrais (Alemanha e Áustria-Hungria) colocaram-se o Império Turco Otomano (1914) e a Bulgária (1915).

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Enquanto na frente ocidental a guerra entrava na fase das trincheiras, na frente oriental ocorria uma sequência de vitórias alemãs, como na Batalha de Tannenberg, na qual 100 mil russos foram aprisionados. Em 1916, em Verdun, frustrou-se nova ofensiva alemã contra a França. Ali, por 9 meses, combateram cerca de 2 milhões de soldados dos dois lados, dos quais 976 mil morreram, sem que houvesse avanço ou recuo na frente de batalha.

O ano de 1917, ao contrário, foi marcado por acontecimentos decisivos para a guerra. As contínuas derrotas russas aceleraram a queda da autocracia czarista, culminando nas revoluções de 1917, que resultaram na instauração do regime socialista. Com a ascensão do novo governo, concluiu-se o Tratado de Brest-Litovski, de 1918, que oficializava a saída dos russos da guerra.

Também em 1917, a Alemanha intensificou o bloqueio marítimo à Inglaterra, objetivando deter seus movimentos e interromper seu abastecimento. Até então, os Estados Unidos se mantinham neutros, embora fornecessem alimentos e armas aos países da Entente. Sentindo-se ameaçados pela agressividade marítima alemã, usaram como pretexto o afundamento do transatlântico Lusitânia, que resultou na morte de dezenas de passageiros estadunidenses, para declarar guerra contra as potências centrais.

A entrada dos Estados Unidos na guerra, em 1917, com seu imenso potencial industrial e humano, reforçou o bloco liderado pela Inglaterra e pela França, que passou a obter sucessivas vitórias contra os alemães a partir de 1918. Movimentos populares na Alemanha e a rendição em massa de soldados alemães aceleraram o desmoronamento do Segundo Reich alemão e do Império Austro-Húngaro.

A derrota das potências centrais diante da superioridade econômico-militar dos Aliados, como eram denominados os integrantes da Entente, acarretou a renúncia do kaiser alemão e a assinatura do armistício, em novembro de 1918. O cessar-fogo foi conseguido por meio de um plano de paz (intitulado 14 pontos de Wilson) formulado pelo presidente estadunidense Woodrow Wilson (1856-1924), que pregava "uma paz sem vencedores".

LEGENDA: Cartaz de 1918 que visava arrecadar fundos para o financiamento da Alemanha na guerra. Lê-se: "Empréstimos para ajudar os guardiões da sua felicidade."

FONTE: Universal History Archive/Getty Images

LEGENDA: Cartaz italiano de 1917 convocando todos para o cumprimento do dever, incluindo a participação nas campanhas para "empréstimos" (financiamento) de guerra.

FONTE: Akg-images/Ipress

LEGENDA: Cartaz estadunidense de 1917 em que o Tio Sam, símbolo dos Estados Unidos, convoca voluntários para a guerra.

FONTE: James Montgomery Flagg/Biblioteca do Congresso, Washington, EUA.

FONTE: Imagem de fundo: robert_s/Shutterstock/ Glow Images

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INFOGRÁFICO

Trincheiras da morte

FONTE: Aventuras na História. São Paulo: Abril, ed. 10 jun. 2004. p. 6-7. Adaptado.

Valas se estendiam por 600 quilômetros

Retrato mais marcante da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as linhas de trincheiras surgiram em setembro de 1914, quando os alemães, que haviam invadido a França, foram barrados perto de Paris. Decididos a não retroceder nenhum palmo do território conquistado, eles iniciaram a escavação de valas ao longo de toda a frente de combate. Em resposta, os aliados também cavaram os próprios abrigos. Em poucos meses, as linhas de trincheiras estenderam-se da Suíça até o litoral norte da França, por mais de 600 quilômetros. Foi então que começou um longo e angustiante impasse. Os dois lados tentavam quebrar a guarda do oponente com ataques e contra-ataques em massa. Ficavam separados por uma faixa de lama e cadáveres com menos de 300 metros de extensão, a "terra de ninguém". Durante os anos da guerra, viver nas trincheiras tornou-se uma mistura de miséria, coragem e horror.

TRINCHEIRAS

As trincheiras tinham cerca de 2,30 m de profundidade por 2 m de largura. Eram revestidas por sacos de areia para amortecer o impacto de balas e estilhaços. Se o inimigo tomasse a primeira linha, os defensores recuavam para outras.

ARMAS QUÍMICAS

Os exércitos utilizaram dezenas de milhares de toneladas de gás de diferentes agentes tóxicos durante a guerra. Essas armas foram responsáveis pela morte de 90 mil soldados e cerca de 1,2 milhão de enfermos. Alguns soldados preferiam abandonar a trincheira e serem fuzilados a enfrentar a nuvem do letal gás mostarda acumulado nas valas.

ARAME FARPADO

Para retardar os ataques, uma rede de arame farpado, com até 30 m de largura, era instalada à frente das trincheiras. Enquanto os soldados lutavam para cruzar o emaranhado de fios, eram vítimas fáceis de atiradores inimigos.

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600 TIROS

Durante a Primeira Guerra, a metralhadora foi usada em larga escala, mudando drasticamente a forma de lutar. Disparando até 600 tiros por minuto, vitimava batalhões inteiros até que todos se dessem conta de como elas eram letais.

ATAQUE FULMINANTE

Os primeiros ataques, chamados de "fogo de barragem", consistiam em enormes descargas de artilharia de grosso calibre. O resultado era sempre desolador: o solo atingido tornava-se uma mistura de terra revolvida, cadáveres e lama.

CERCADOS PELA MORTE

Além dos gritos e gemidos dos feridos, o medo de serem atacados por ratos também impedia que os soldados dormissem.

TOCAIA

Munidos de fuzis com miras telescópicas, os atiradores de elite ficavam horas de tocaia, à espera de algum soldado incauto que colocasse a cabeça para fora da trincheira inimiga. Quase sempre, a vítima era abatida com apenas um tiro.

PLANTAÇÕES DE BOMBAS

As tropas cavavam longos túneis em direção às trincheiras adversárias. Uma vez embaixo do inimigo, forravam o túnel com explosivos, matando milhares de inimigos de uma vez e abrindo caminho para um ataque.

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LEGENDA: Apesar da proibição do uso de armas químicas, estabelecida pela Convenção Internacional de Haia, assinada em 1899, os alemães tomaram a iniciativa de usá-las em 1915, seguidos pelos seus inimigos, que também as adotaram até o final do conflito em 1918. Foram mais de 35 mil toneladas de gases letais (asfixiantes ou tóxicos) utilizados nessa guerra, metade deles pelos alemães. Em 1925, foram novamente proibidos (produção e estocagem) pelo Protocolo de Genebra. Na foto, soldados e cães alemães com máscaras antigases. Data incerta, entre 1916 e 1918.

FONTE: Bettman/Corbis/Latinstock

Cenário da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)

LEGENDA: A Primeira Guerra Mundial começou com uma grande ofensiva das tropas alemãs e desembocou nas trincheiras, com poucos avanços ou recuos.

FONTE: Adaptado de: ATLAS da história do mundo. São Paulo: Folha de S.Paulo, 1995. p. 248-249.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Leituras

Leia, a seguir, alguns depoimentos de soldados que entraram em combate durante a Primeira Guerra Mundial. Com esses depoimentos você poderá conhecer mais o cotidiano dos conflitos e a vida nas trincheiras.

Depoimentos de quem lutou na guerra

O equilíbrio das forças em conflito a partir de 1915 fez com que a guerra se configurasse como uma guerra de trincheiras, visando manter posição e desenvolver combates para tomar territórios ao outro exército. A guerra de trincheiras foi extremamente cruel, e chegou-se ao uso de armas químicas - os gases venenosos - para tentar contornar os impasses.

"Ainda estou atolado nessa trincheira. [...] Não me lavei, nem mesmo cheguei a tirar a roupa, e a média de sono, a cada 24 horas, tem sido de duas horas e meia." (Capitão E. G. Venning, França)

"Em geral, para dormirmos aquecidos, deitávamos uns junto aos outros, dividindo cobertores - cada homem levava dois. O frio, no entanto, se mostrou preferível à lama (formada com o degelo). [...] Pelo menos, podíamos nos mover." (Sargento E. W. Wilson, Rio Somme)

"O campo de batalha é terrível. Há um cheiro azedo, pesado e penetrante de cadáveres. Homens que foram mortos no último outubro estão meio afundados no pântano e nos campos de nabos em crescimento. [...] Um pequeno veio de água corre através da trincheira, e todo mundo usa a água para beber e se lavar; é a única água disponível. Ninguém se importa com o inglês pálido que apodrece alguns passos adiante." (Rudolf Binding, que serviu numa das divisões da Jungdeutschland)

"Na verdade, gentileza e compaixão com os feridos foram talvez as únicas coisas decentes que vi na guerra. Não é raro ver um soldado inglês e outro alemão lado a lado, num mesmo buraco, cuidando um do outro, fumando calmamente." (Tenente Arthur C. Young, França, 16 de setembro de 1916).

Documentos compilados por MARQUES; BERUTTI; FARIA. História contemporânea através de textos. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 119-120.

- A coleta de depoimentos sobre o passado recente é um método importante para os pesquisadores que trabalham com História oral. Por meio dela, é possível registrar a maneira pela qual determinados grupos sociais excluídos da História oficial, como operários e indígenas, vivenciaram determinadas experiências e que visão construíram delas. No entanto, é sempre preciso ter em mente que as lembranças que as pessoas guardam do passado dependem da forma como estas foram processadas pela memória e que elas refletem a visão de mundo característica do grupo social ao qual essas pessoas pertencem.

LEGENDA: Soldados búlgaros comem em trincheira. Foto de 1915, aproximadamente.

FONTE: Hulton-DeutschCollection/Corbis/Latinstock

Tendo isso em mente, releia os depoimentos e responda:

a) Os depoimentos foram colhidos na mesma época? Justifique sua resposta.

b) Os depoimentos têm alguma coisa em comum? Explique.

c) Os depoentes citados são do sexo masculino. Como as mulheres vivenciaram a Primeira Guerra Mundial? Faça uma pesquisa sobre as condições de vida enfrentadas pelas mulheres dos países em guerra nesse período.

d) Que associação podemos fazer entre memória e identidade?




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As características da guerra

Para a época em que ocorreu, a Grande Guerra teve uma duração incomum. Inicialmente, os países envolvidos esperavam uma guerra de movimento, rápida, na qual as tropas se deslocam e conquistam outro território. No entanto, nenhuma potência conseguiu vantagem suficiente para sobrepor-se à outra e vencer o conflito. Assim, passou a prevalecer uma guerra de posição, em que o objetivo era não perder terreno e buscar a conquista, pouco a pouco, dos territórios do inimigo, o que tornou as trincheiras a marca registrada da Primeira Guerra Mundial.

Em termos de extensão, a amplitude do conflito também merece destaque. Pela primeira vez, todos os grandes países da Europa entravam em guerra ao mesmo tempo. O conflito foi resultado do sistema de "paz armada", que juntava o armamentismo com alianças que se estendiam pelos continentes com base em interesses comuns entre os governantes dos países. A África foi envolvida na Grande Guerra, pois a maior parte do seu território era composta de colônias europeias. Na Ásia, o governo japonês viu mais vantagens em participar do conflito do que se manter neutro e declarou guerra à Alemanha, interessado nas bases alemãs na China. Os chineses, por sua vez, entraram na guerra, pelo menos nominalmente, para não se inferiorizarem diante do Japão. O Império Turco Otomano foi arrastado para a guerra ao lado da Áustria e da Alemanha.

Em termos de intensidade, a Primeira Guerra Mundial pode ser considerada a primeira experiência de "guerra total", aquela que exige que todos os habitantes de um país e todas as suas forças se voltem para sustentar as tropas com recursos materiais e humanos. Como os Estados envolvidos no conflito passaram a dirigir a economia para o esforço nacional de guerra, atingir a economia e a produção do inimigo passou a ser uma estratégia. O resultado foi um elevado número de mortes de civis. O conflito também impulsionou o avanço tecnológico bélico e utilizou recursos psicológicos: bombardeava-se a população civil nas cidades distantes dos fronts para abater o moral dos adversários. Essa prática seria tristemente comum nas guerras do século XX.

LEGENDA: Ruínas da cidade de Ypres, na Bélgica, destruída pelos alemães durante a Primeira Guerra Mundial.

FONTE: Print Collector/GettyImages

25

Boxe complementar:

Construindo conceitos

Guerra Total

Atualmente, os noticiários de televisão e os jornais impressos trazem informações sobre diversos conflitos armados no mundo. Nas imagens, vemos cidades bombardeadas, miséria, evasão de refugiados, populações aterrorizadas e centenas de perdas humanas. Esse tipo de guerra é uma experiência predominantemente contemporânea, impondo-se desde o início do século XX, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Até o século XIX, os conflitos armados entre as nações eram travados, na maioria das vezes, por razões específicas, em geral, envolvendo a disputa de um território. Um corpo militar profissional e devidamente treinado enfrentava o inimigo em campos de batalha distantes das áreas urbanas. O conflito terminava com a rendição de um dos exércitos, cujos chefes militares aceitavam a derrota, em virtude da destruição de seu poderio bélico e da superioridade do oponente.

Na medida do possível, a população civil observava a guerra a distância, recebendo notícias pelos mais diferentes meios, como pelos parentes e amigos militares envolvidos no conflito ou pela imprensa escrita.

A partir da Primeira Guerra Mundial esse quadro efetivou novos contornos. Os objetivos da guerra não se limitavam a derrotar o exército inimigo, mas em aniquilar a nação oponente em conflito. Os contingentes militares foram expandidos, graças à convocação obrigatória da população civil e propagandas nacionalistas que incentivavam o alistamento voluntário. As cidades tornaram-se alvo prioritário, visto que a nação oponente, e não apenas o seu corpo militar, era considerada inimiga.

Essa guerra sem fronteiras envolvia toda a economia das nações em conflito, direcionando os setores produtivos e a pesquisa tecnológica para a fabricação de armas, munições, uniformes, equipamentos e instrumentos de guerra, como blindados, aviões e bombas. Muitas fábricas foram adaptadas para a nova produção, trabalhadores foram treinados e um novo contingente populacional foi convocado para trabalhar nas linhas de produção e participar do esforço de guerra: as mulheres.

O historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) analisou essas transformações no seu livro Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991), publicado em 1994, caracterizando a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais como um único grande conflito que marcou a "Era da Guerra Total", entre 1914 e 1945. A destruição sem precedentes do continente europeu e a morte de mais de 50 milhões de pessoas durante os anos do conflito foram resultado da expansão capitalista dos países em conflito. Segundo Hobsbawm, a Primeira Guerra foi travada como um tudo ou nada:

[...] essa guerra, ao contrário das anteriores, tipicamente travadas em torno de objetivos específicos e limitados, travava-se por metas ilimitadas. Na Era dos Impérios a política e a economia se haviam fundido. A rivalidade política internacional se modelava no crescimento e competição econômicos, mas o traço característico disso era precisamente não ter limites. [...] Mais concretamente, para os dois principais oponentes, Alemanha e Grã-Bretanha, o céu tinha de ser o limite, pois a Alemanha queria uma política e posição marítima globais como as que então ocupava a Grã-Bretanha, com o consequente relegamento de uma já declinante Grã-Bretanha a um status inferior.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 37.

Boa parte das guerras travadas durante os séculos XX e XXI se assemelharam à guerra total travada pelas potências mundiais no início do século passado. Foram conflitos extremamente violentos, capazes de destruir países e cidades inteiras, exterminar elevados contingentes populacionais e envolver um esforço de guerra impressionante, que levava os países envolvidos ao esgotamento econômico.

Assim, a noção de guerra total se mantém no horizonte dos conflitos entre os povos, indicando que sua destruição ultrapassa com frequência os agentes militares envolvidos nas decisões tomadas.

Agora, faça o que se pede:

- Em dupla, façam uma busca em alguns sites de notícias e procurem informações sobre conflitos internacionais em curso. Selecionem um desses conflitos e desenvolvam uma pesquisa mais aprofundada sobre as origens e as razões do conflito, os países envolvidos, os territórios e regiões que sofreram algum tipo de ataque. Organizem essas informações num painel e apresentem para a classe.

LEGENDA: Pôster de recrutamento da Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial, no qual se lê: "Se eu falhar, ele morre". Produzido por Arthur McCoy em 1918.

FONTE: The Granger Collection/Glow Images

Fim do complemento.

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Os tratados de paz: sementes de uma nova guerra

Com o fim das operações militares, os vitoriosos reuniram-se em 1919 no Palácio de Versalhes, nos arredores de Paris, para as decisões do pós-guerra. O encontro foi dirigido pelo presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, e os chanceleres David Lloyd George (1863-1945), da Inglaterra, e Georges Clemenceau (1841-1929), da França.

O presidente estadunidense propôs um plano que foi inviabilizado por diversos acordos paralelos e, principalmente, por pressão da França e da Inglaterra. As conversações resultaram no Tratado de Versalhes, que considerou a Alemanha culpada pela guerra e criou uma série de determinações que visavam enfraquecê-la e desmilitarizá-la.

Esse tratado estabeleceu a devolução da Alsácia-Lorena à França e o acesso da Polônia ao mar por uma faixa de terra que atravessava a Alemanha e desembocava no porto livre de Dantzig, o "corredor polonês". O governo da Alemanha perdeu todas as suas colônias ultramarinas e parte de seu território europeu. Perdeu também a artilharia e a aviação; passou a ter um exército limitado a 100 mil homens e ficou proibido de construir navios de guerra. Foi ainda obrigado a indenizar as potências aliadas pelos danos causados, em um total aproximado de 30 bilhões de dólares, valor que foi renegociado na década de 1920 até ser extinto em 1932. O Tratado de Versalhes também oficializou a criação da Liga das Nações, um fórum internacional que pretendia garantir a paz mundial. Essa pretensão, porém, não se concretizou, pois a liga não contou no início com a participação dos governos da Alemanha e da Rússia nem do próprio país que a idealizara e que se transformara na maior potência mundial: os Estados Unidos. Por discordar de muitas das decisões de Versalhes, o governo estadunidense preferiu assinar um acordo de paz com o governo alemão em separado.

Também em 1919, o Império Austro-Húngaro foi desmembrado pelo Tratado de Saint Germain. O governo da Áustria perdeu a saída para o mar e foi obrigado a reconhecer a independência da Polônia, da Tchecoslováquia e da Hungria e a criação do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (que, em 1929, adotaria o nome de Iugoslávia), perdendo, assim, a maior parte de seu território. Com a Hungria foi assinado o Tratado de Trianon e com a Bulgária, o Tratado de Neuilly.

LEGENDA: Uma grande multidão estava presente no Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes, França, durante a assinatura do tratado de paz, em 28 de junho de 1919.

FONTE: Lt. M. S. Lentz/Corbis/Latinstock

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Desse modo, os tratados assinados entre 1919 e 1921 selaram a desintegração territorial dos impérios Austro-Húngaro e Turco Otomano (Tratado de Sèvres, depois reformado pelo Tratado de Lausanne). Quanto ao Império Alemão, seria extinto por uma revolução em novembro de 1918.

Os tratados que puseram fim à guerra determinaram também o início da consolidação da independência de novos Estados, cujas soberanias foram ratificadas pelas populações envolvidas por meio de plebiscitos. Tais países, quase todos situados na península Balcânica e constituídos de etnias eslavas, passaram a integrar as novas áreas de atuação dos interesses das potências vencedoras.

Somado ao fato de que essas potências conseguiram manter praticamente intactas suas possessões na África e na Ásia, verificou-se, na década de 1920, o fortalecimento da supremacia econômica e financeira dos Estados Unidos, seguidos de perto pela Inglaterra e França. Vinte anos mais tarde, essa supremacia seria contestada pelo revanchismo alemão, que não havia morrido em Versalhes nem nos acordos posteriores.

LEGENDA: Nesta caricatura de E. Schilling, de 1919, as determinações de Versalhes são representadas como um fardo pesado para o povo alemão.

FONTE: Reprodução/Coleção particular

As novas nações europeias

LEGENDA: Adaptado de: BARRACLOUGH, Geoffrey. Atlas da história do mundo. São Paulo: Times Books/Folha de S.Paulo, 1995. p. 240-241.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Atividades

Retome

1. No início do século XX, a Inglaterra era a maior potência capitalista. Contudo, sua hegemonia vinha sendo abalada pelo crescimento econômico de dois países concorrentes. Identifique-os e explique o crescimento desses dois países.

2. A passagem do século XIX para o século XX foi marcada pela formação de dois poderosos blocos militares na Europa.

a) quais eram esses blocos?

b) que países europeus compunham cada uma dessas alianças militares e que interesses as motivavam?

3. Uma questão central na geopolítica da Europa no início do século XX foi o conflito nos Bálcãs. Explique-a.

4. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) teve duas fases: a primeira foi caracterizada pelo deslocamento de tropas; e a segunda, pela guerra de trincheiras.

a) qual é a relação da primeira fase do conflito com o Plano Schlieffen, colocado em prática pelos alemães?

b) Consulte o infográfico Trincheiras da morte nas páginas 22 e 23 e, com base nele, descreva a guerra de trincheiras.

c) Releia as condições impostas à Alemanha ao final da Primeira Guerra e indique por que elas não favoreciam a concretização de um clima de paz na Europa.

Pratique

5. Leia o trecho a seguir.

Temos como certo que a guerra moderna envolve todos os cidadãos e mobiliza a maioria; é travada com armamentos que exigem um desvio de toda a economia para a sua produção, e são usados em quantidades inimagináveis; produz indizível destruição e domina e transforma absolutamente a vida dos países nela envolvidos. Contudo, todos esses fenômenos pertencem apenas às guerras do século XX. Na verdade, houve guerras tragicamente destrutivas antes, e mesmo guerras que anteciparam os esforços totais da guerra moderna, como na França durante a Revolução. Até hoje, a Guerra Civil de 1861-5 continua sendo o conflito mais sangrento da história dos EUA: matou tantos homens quanto todas as guerras posteriores do país juntas, incluindo as duas mundiais, a da Coreia e a do Vietnã. Apesar disso, antes do século XX, guerras envolvendo toda a sociedade eram excepcionais. [...].

O monstro da guerra total do século XX não nasceu já do seu tamanho. Contudo, de 1914 em diante, as guerras foram inquestionavelmente guerras de massa. Mesmo na Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha mobilizou 12,5% de seus homens para as Forças Armadas, a Alemanha 15,4%, e a França quase 17%. [...]

Podemos observar de passagem que um tal nível de mobilização de massa, durante anos, não pode ser mantido, a não ser por uma economia industrializada de alta produtividade e - ou alternativamente - em grande parte nas mãos de setores não combatentes da população. As economias agrárias tradicionais não podem em geral mobilizar uma proporção tão grande de sua força de trabalho, a não ser sazonalmente, pelo menos na zona temperada, pois há momentos no ano agrícola em que todos os braços são necessários (por exemplo, para a colheita). Mesmo em sociedades industriais, uma tão grande mobilização de mão de obra impõe enormes tensões à força de trabalho, motivo pelo qual as guerras de massa fortaleceram o poder do trabalhismo organizado e produziram uma revolução no emprego de mulheres fora do lar: temporariamente na Primeira Guerra Mundial, permanentemente na Segunda.

Também neste caso, as guerras do século XX foram guerras de massa, no sentido de que usaram, e destruíram, quantidades até então inconcebíveis de produtos durante a luta. [...]

Mas a produção também exigia organização e administração - mesmo sendo seu objetivo a destruição racionalizada de vidas humanas de maneira mais eficiente, como nos campos de extermínio alemães. Falando em termos mais gerais, a guerra total era o maior empreendimento até então conhecido do homem, e tinha de ser conscientemente organizado e administrado.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 51-52.

Agora, faça o que se pede.

a) A Primeira Guerra Mundial foi a primeira "guerra total" da História. Em que aspecto ela se diferenciou das guerras anteriores?

b) Basta uma guerra produzir muitos mortos e envolver muitos países para que ela seja classificada como uma "guerra total"?

c) Por que a "guerra total" é característica das sociedades altamente industrializadas?

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d) Se a "guerra total" consome uma quantidade inimaginável de recursos e produz um número imenso de mortes e mutilados, a quem ela interessa? Justifique a sua resposta.

6. Observe a imagem a seguir. Depois, resolva a atividade proposta.

LEGENDA: Litografia produzida na França entre 1914 e 1918 na qual se lê: "Os alsacianos e lorenos são franceses!"

FONTE: J. Cussac/Biblioteca do Congresso, Washington, Estados Unidos

a) Qual era a situação das regiões da Alsácia-Lorena no período em que a gravura foi publicada?

b) Quais atrativos possuía a Alsácia-Lorena que justificassem as disputas por seus territórios? Pesquise em enciclopédias, livros ou sites.

c) Na gravura, a Alsácia-Lorena é corporificada como uma mulher. Descreva-a, atentando para suas vestimentas, expressão facial, atitude e postura corporal.

d) A gravura dá alguma pista do que ocasionou o aprisionamento da Alsácia-Lorena? Explique.

e) Observe o mapa a seguir no qual estão identificados os dialetos falados na região da Alsácia-Lorena no século XIX. Com base nele, podemos afirmar que os habitantes da região apresentavam identidade inquestionavelmente francesa? Por quê?

Dialetos na região da Alsácia-Lorena no século XIX

FONTE: Fonte: ATLAS Wenker Digital (DiWA). Disponível em: www.diwa.info. Acesso em: 29 abr. 2016.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

7. No romance As aventuras do bom soldado Švejk, publicado originalmente no início da década de 1920, o escritor tcheco Jaroslav Hašek (1883-1923) escreve a seguinte passagem:

- Então eles mataram nosso Ferdinand - disse a empregada ao senhor Švejk, que abandonara havia alguns anos o serviço militar por ter sido declarado definitivamente idiota por uma junta médica do exército e vivia da venda de cães, monstruosos vira-latas para os quais inventava falsas genealogias.

Afora esta ocupação, sofria de reumatismo e, naquele exato momento, estava massageando os joelhos com uma pedra de cânfora.

- De qual Ferdinand está falando, senhora Müllerová? - perguntou Švejk, sem parar de massagear os joelhos [...]

- Meu caro senhor, estou me referindo ao arquiduque Ferdinand, o de Konopiště, aquele homem gordo e piedoso.

- Virgem santa! - exclamou Švejk. - Que história! E onde o arquiduque foi morto?

- Levou um tiro de revólver em Sarajevo quando passeava de automóvel com a arquiduquesa, senhor.

- Então vejamos, senhora Müllerová... No automóvel... Bem, um senhor como ele pode se permitir tal luxo, mas não seria capaz de imaginar que um passeio desses acabaria mal. E ainda por cima em Sarajevo, que fica na Bósnia, senhora Müllerová! Deve ter sido coisa dos turcos. Não deveríamos ter lhes tomado, em hipótese alguma, a Bósnia-Herzegovina. Ora, ora. [...]

HAŠEK, Jaroslav. As aventuras do bom soldado Švejk. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014. p. 15.

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a) O diálogo entre o personagem Švejk e sua empregada na abertura do romance de Hašek refere-se a um importante acontecimento que marcou a história do século XX. Identifique o acontecimento e explique seus desdobramentos políticos.

b) O acontecimento narrado foi provocado pelos turcos, como sugere o protagonista? Explique.

c) A hipótese do envolvimento turco no conflito é coerente com o cenário político vivido pela Europa no início do século XX? Justifique.

8. Analise a tabela abaixo e faça o que se pede adiante.


Gastos militares da Alemanha, Áustria-Hungria, Grã-Bretanha, Rússia, Itália e França
Ano Valor (milhões de libras)
1880 132
1890 158
1900 205
1910 288
1914 397

Apud HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). 7.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 479.

a) O que a tabela mostra?

b) O que os países cujos gastos militares são avaliados pela tabela no período de 1880-1914 têm em comum?

c) Em que período da tabela o investimento no setor militar foi maior?

d) O gráfico abaixo mostra os níveis relativos de industrialização dos países europeus entre 1750 e 1900. que relação é possível estabelecer entre ele e a tabela anterior?

Níveis relativos de industrialização (1750-1900)

FONTE: Fonte: BAIROCH, Paul. International Industrialization Levels from 1750 to 1980. Journal of European Economic History (JEEH) 11, 1982, p. 269.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

e) Com base nos dados da tabela, elabore, com suas palavras, um pequeno texto sobre a "paz armada", que antecedeu a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

9. Observe com atenção a imagem abaixo e leia o texto que a acompanha. A seguir, com base nas fontes, responda: de que maneira a Primeira Guerra Mundial transformou a vida da humanidade no Ocidente?

LEGENDA: Mulheres trabalham em fábrica de munições, propriedade do Estado, na Inglaterra. Foto de julho de 1917.

FONTE: Horace Nicholls/Acervo do Museu Imperial da Guerra, Londres.

A Primeira Guerra Mundial matou mais de oito milhões de soldados e 6,5 milhões de civis. Ainda que impressionantes, esses números são bem inferiores aos do segundo conflito mundial, que vitimou quase 50 milhões de pessoas e contou com um dos maiores genocídios da História e com um de seus maiores vilões, Adolf Hitler. Não é de se estranhar, portanto, que a Segunda Guerra receba mais atenção da cultura popular [...]. Mas essa disparidade é injusta: a guerra iniciada em 1914 mudou o mundo para sempre - e pavimentou o caminho para a que veio depois.

Nada semelhante havia acontecido antes. A explosão de uma guerra com aquelas proporções foi algo chocante. "Para os que cresceram antes de 1914, o contraste foi tão impressionante que muitos [...] se recusaram a ver qualquer continuidade com o passado. 'Paz' significava 'antes de 1914': depois disso veio algo que não mais merecia esse nome", escreveu o historiador britânico Eric Hobsbawm no livro Era dos extremos. Para ele, o conflito representa o fim do que ainda se ensina no Brasil como "Era Contemporânea" (iniciada com a Revolução Francesa), e marca o nascimento de um novo período histórico: o "Curto Século 20", que acabou com o fim da União Soviética em 1991.

100 anos da Primeira Guerra. Disponível em: http://guiadoestudante.abril.com.br/100-anos-primeira-guerra-mundial/mudanca.html. Acesso em: 25 abr. 2016.

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Analise uma fonte primária

10. Observe a imagem a seguir. Trata-se de um pôster britânico, divulgado logo após o final da Primeira Guerra Mundial. No topo, lemos "Uma vez alemão, sempre alemão". Na base, "Lembre-se: cada alemão empregado significa um britânico ocioso; cada artigo alemão vendido significa um artigo britânico encalhado". No centro, a cruz de uma cova estampa o nome da enfermeira Edith Cavell, fuzilada pelos alemães e considerada internacionalmente uma heroína da Primeira Guerra.

LEGENDA: Pôster divulgado na Inglaterra pela British Empire Union após o término da Primeira Guerra Mundial, que propagava o antigermanismo.

FONTE: The Bridgeman Art Library/Keystone Brasil

a) Ao final da guerra, qual era a imagem do povo alemão disseminada pelos seus adversários? Elabore sua resposta utilizando elementos do pôster.

b) Relacione o pôster acima ao acirramento da concorrência entre as potências industrializadas europeias no século XX.

c) O pôster pode ser visto como uma antecipação do espírito que nortearia a assinatura do Tratado de Versalhes? Explique.

Articule passado e presente

11. A notícia a seguir foi publicada em outubro de 2010, na revista História Viva e trata da quitação da dívida imposta à Alemanha pelo Tratado de Versalhes em 1919. Leia a matéria e responda às questões que a acompanham.

Como todos sabem, a Primeira Guerra Mundial terminou em 1918. Mas não para a Alemanha. Só no dia 3 deste mês o país quitou a dívida que contraiu após assinar o Tratado de Versalhes, acordo imposto em 1919 pelas nações vencedoras que determinou o pagamento de uma quantia para reparação dos danos causados pelos germânicos durante o conflito.

Entre outras coisas, o acordo obrigava a Alemanha a abrir mão de uma série de territórios conquistados nas décadas anteriores à Grande Guerra e a pagar aos Aliados uma indenização de 269 bilhões de marcos, valor equivalente a 96 toneladas de ouro. Essas imposições levaram o país à falência na década de 1920 e criaram o cenário ideal para a ascensão do partido de Hitler. Para muitos historiadores, não haveria nazismo se não fosse a miséria dos germânicos no pós-Primeira Guerra.

Segundo o jornal alemão Der Spiegel, o pagamento dessa dívida foi interrompido durante os anos do nazismo e renegociado várias vezes durante o último século. A última proposta de parcelamento do débito foi elaborada logo após a queda do Muro de Berlim, quando o país recém-unificado concordou em pagar um montante equivalente a 125 milhões de euros em prestações anuais. A primeira foi cobrada em 3 de outubro de 1990 e só agora, 92 anos após o fim da Primeira Guerra, os germânicos se livraram da dívida centenária.

ALEMANHA quita dívida da Primeira Guerra. História Viva. Disponível em: www2.uol.com.br/historiaviva/noticias/alemanha_quita_divida_da_primeira_ guerra.html. Acesso em: 18 fev. 2016.

a) De acordo com o texto, como se explica a quitação da dívida alemã ter demorado tanto tempo?

b) A punição imposta à Alemanha após a Primeira Guerra teve que resultados para a Europa?

c) Hoje a Alemanha é a maior credora da Grécia, país que integra a União Europeia e que atravessa profunda recessão. O governo alemão tem se mostrado bastante resistente diante das tentativas do governo grego em negociar sua dívida. Considerando os desdobramentos da assinatura do Tratado de Versalhes, você acha que o governo da Alemanha deveria negociar a dívida grega ou deve ser inflexível e cobrar do governo da Grécia o que ele deve? Justifique.



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CAPÍTULO 2: A Revolução Russa

LEGENDA: Monumento O operário e a camponesa, o mais célebre trabalho da escultora nascida em Riga, Vera Mukhina. A obra foi exibida pela primeira vez no pavilhão da União Soviética na Exposição Internacional de Artes, Ofícios e Ciências de Paris, inaugurada em 1937. Depois da exposição, ela foi instalada em Moscou, na Rússia, onde está até hoje. Foto de 2015.

FONTE: andreevarf/Shutterstock

Nos anos iniciais da Revolução Russa, foi grande e intensa a participação dos trabalhadores do campo e da cidade na condução dos acontecimentos. O reconhecimento de sua importância política e econômica se expressava em monumentos como o da foto acima, homenageando tanto o operário urbano como o trabalhador rural, homens e mulheres, apresentados em condição de igualdade. Será que essa intenção de igualdade se estabeleceu de fato no cotidiano da população? No mundo atual, qual tem sido o papel da classe trabalhadora?

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1. 1917: a Rússia como eixo revolucionário

A Grande Guerra teve profundas implicações para o Império Russo. As seguidas derrotas e o avanço alemão minaram o governo dos czares (imperadores) que, em março de 1917, acabou sendo deposto. O novo governo revolucionário manteve a Rússia ao lado dos aliados na guerra sem conseguir reverter o fracasso nas frentes de batalha.

Em novembro de 1917, eclodiu a Revolução Socialista, também conhecida como Revolução Russa, que implantou uma nova forma de organização social e política, inspirada nas ideias socialistas surgidas no século XIX. Além da novidade de forçarem uma ruptura social e política inédita, fundando o primeiro país socialista do mundo, os desdobramentos dessa revolução se refletiram internacionalmente por todo o século XX.

De um lado, o sucesso da Revolução originou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), fundada com a Constituição de 1923, que em pouco mais de duas décadas chegou à condição de superpotência mundial, disputando com os Estados Unidos a hegemonia do cenário político internacional. De outro, o movimento revolucionário não obteve êxito em criar uma sociedade efetivamente igualitária como pretendia, não mantendo coerência em relação a seus princípios iniciais.

LEGENDA: Vista da Catedral de São Basílio na praça Vermelha, em Moscou, Rússia. Foto de 2014.

FONTE: Gubin Yury/Shutterstock

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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2. A corrosão do czarismo russo

No início do século XX, diversos aspectos presentes na Rússia - boa parte deles decorrentes de valores herdados do Antigo Regime - chocavam-se com o capitalismo emergente. Mantendo uma estrutura que carregava muitos componentes típicos do mundo feudal, a sociedade russa não mostrava o dinamismo de outras sociedades capitalistas.

A maioria esmagadora da população vivia no campo. A nobreza, detentora de títulos honoríficos, possuía a maior parte das terras férteis e explorava o trabalho dos camponeses, que viviam em situação próxima à servidão. Ao mesmo tempo, os monarcas da dinastia Romanov, no poder desde 1613, governavam seguindo um regime absolutista, tendo a aliança da nobreza, dos oficiais do exército e do clero, ocupantes da parte mais alta da pirâmide social russa.

A partir do final do século XIX, alguns czares adotaram algumas políticas modernizadoras. Entre elas, a abolição da servidão e o incentivo aos investimentos estrangeiros para impulsionar a industrialização. No entanto, a modernização industrial aumentava o contraste entre a estrutura semifeudal que sustentava o czar e as cidades modernizadas. Paralelamente, anarquistas e marxistas difundiam suas ideias entre as populações urbanas e rurais, enquanto grandes greves operárias eclodiam já no começo do século XX.

Não era só a classe trabalhadora que se mostrava insatisfeita. Nas cidades, as camadas médias urbanas e a burguesia emergente também reivindicavam mudanças. Nesse contexto, o czarismo já não dispunha do apoio social de que desfrutara anteriormente. Para agravar seu desgaste, o fracasso do czar Nicolau II na Guerra Russo--Japonesa (1904-1905), ao disputar a Coreia e a Manchúria (na China), incentivou forças de oposição a intensificar pressões contra o despotismo dos Romanov.

A primeira evidência de impasse político ocorreu em janeiro de 1905, quando uma manifestação popular em frente ao Palácio de Inverno, em São Petersburgo, foi reprimida violentamente. Os manifestantes, pacíficos e desarmados, queriam se reunir com o czar para convocar uma Assembleia Constituinte e implantar melhores condições de trabalho e regras trabalhistas.

LEGENDA: O czar Nicolau II em retrato de 1912.

FONTE: Autoria desconhecida/Biblioteca do Congresso, Washington, Estados Unidos

LEGENDA: Em 1902, o pintor russo Sergey Alekseevich Korovin produziu o óleo sobre tela Para o Pentecostes, representando camponeses na Rússia no início do século XX.

FONTE: Galeria Tretyakov, Moscou, Rússia. Fotografia: Wikimedia Commons/Creative Commons

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Apesar de não desrespeitarem a autoridade do czar, cantando, inclusive, o hino de fidelidade ao governo, Deus salve o czar, os manifestantes foram dizimados às centenas por tropas do exército e da polícia. O episódio ficou conhecido como Domingo Sangrento.

Depois disso, uma onda de protestos e conflitos espalhou-se pelo Império Russo, resultando em uma greve geral e em levantes militares, como o do encouraçado Potemkin (veja o boxe abaixo). As agitações populares, tanto de operários da indústria como de camponeses, estimularam a formação de conselhos de trabalhadores - sovietes, em russo - em várias regiões da Rússia. Diante das crescentes manifestações, o czar lançou o Manifesto de outubro, prometendo a instauração de uma monarquia constitucional e parlamentar.

LEGENDA: Vista geral do Palácio de Inverno em São Petersburgo, Rússia, em um dia de verão. Atualmente, o palácio integra um grande complexo de edifícios conhecido como Museu Hermitage, um dos maiores e mais antigos museus do mundo. Foto de 2015.

FONTE: syolacan/iStock/Getty Images

Boxe complementar:

O encouraçado Potemkin

O episódio envolvendo esse navio ocorreu na cidade de Odessa, no mar Negro. Sobre ele, o cineasta russo Serguei Eisenstein (1898-1948) realizou, em 1925, o filme O encouraçado Potemkin, para relembrar os 20 anos da revolta de 1905 - ocasião em que marinheiros de um navio rebelaram-se contra a tirania de seus comandantes e assumiram o controle da embarcação. A população de Odessa apoiou a revolta, mas as tropas do governo esmagaram o movimento com violência desmedida.

LEGENDA: O encouraçado Potemkin foi construído em 1898 e serviu à Marinha russa até 1918. Na foto, marinheiros amotinados a bordo do navio, em 1905. Essa foi mais uma demonstração popular do descontentamento com o governo czarista.

FONTE: Album/akg-images/Latinstock

Fim do complemento.

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A Duma de Estado

Em 1906, Nicolau II cumpriu a promessa de instaurar uma Duma, um parlamento destinado a redigir uma Constituição. Controlada por representantes das elites, a Duma ficou submetida à autoridade do czar, que aumentou os próprios poderes por meio de decretos. No entanto, as críticas dos parlamentares levaram-no a dissolver o órgão no ano seguinte.

Entre os opositores do czarismo, destacaram-se várias agremiações político-ideológicas, como os narodnikis (populistas), os anarquistas (partidários das ideias de Mikhail Bakunin) e, principalmente, os social-democratas (marxistas). Além desses grupos, havia também o Partido Constitucional Democrata (KD, em russo), formado por liberais que reivindicavam reformas em nome de setores da burguesia e das classes médias.

Os social-democratas dividiram-se, a partir de 1903, em duas facções. Liderados por Gheorghi Plekhanov (1856-1918) e Julius Martov (1873-1923), os mencheviques (menshe, do russo, significa menos, indicando o caráter minoritário do grupo) argumentavam que a Rússia ainda não estava madura para a revolução socialista e que era preciso promover o desenvolvimento do capitalismo sob a liderança da burguesia para, só então, lutar pelo socialismo.

Do outro lado, liderados por Vladimir Ilitch Ulianov, o Lenin (1870-1924), a outra facção era a dos bolcheviques (bolshe, do russo, mais, que indicava a maioria do Congresso). Eles propunham a formação de uma "ditadura democrática de operários e camponeses" como primeiro passo para a revolução socialista.

O colapso do czarismo

Integrante da Tríplice Entente, a Rússia lutou ao lado da Inglaterra e da França durante a Primeira Guerra Mundial. O conflito, porém, agravou as contradições sociais e políticas internas.

Suas sucessivas derrotas diante do poderio militar alemão, pelas quais o czar foi responsabilizado, foram acompanhadas de deserções em massa de soldados na frente de batalha, favorecendo a organização das oposições.

LEGENDA: Retrato de Julius Martov, político russo e líder da facção menchevique.

FONTE: Jakov Vladimirovich Shteinberg/The Bridgeman Art Library/Keystone Brasil

No final de 1916, após a conquista de boa parte de seu território pelos alemães, a Rússia estava militarmente aniquilada e economicamente desorganizada.

As baixas russas aproximavam-se de cerca de 2 milhões de mortos, 2,5 milhões de feridos e 5 milhões de prisioneiros de guerra. BUSHKOVITCH, Paul. História concisa da Rússia. São Paulo: Edipro, 2014. p. 313.

Sua população convivia com o desabastecimento e a escassez de gêneros básicos.

Em fevereiro de 1917, sucessivas greves e manifestações, apoiadas por motins de soldados e marinheiros, particularmente na capital russa, provocaram a queda de Nicolau II, enquanto os conselhos de trabalhadores, soldados e marinheiros, os sovietes, ressurgiam por toda parte, como durante a revolução de 1905.

LEGENDA: Tropas russas feitas prisioneiras pela Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial.

FONTE: Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images

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3. A República da Duma

Em março de 1917, foi instalada a República da Duma, sob a chefia de um nobre politicamente moderado, o príncipe Lvov (1861-1925), sobre o qual pesava a influência de Alexander Kerensky (1881-1970), líder do Partido Socialista Revolucionário.

Kerensky só assumiu efetivamente o poder da Duma em julho de 1917, com a renúncia de Lvov. Em seu governo, a Rússia foi mantida na guerra, atendendo aos compromissos e ligações com a burguesia que o apoiava. Esses compromissos eram rejeitados pelos bolcheviques.

Liderados por Vladimir Lenin e Leon Trotski (1879-1940), os bolcheviques ganharam popularidade com as Teses de Abril. Sintetizadas na plataforma de "Paz, pão e terra", as teses propunham a saída da Rússia do conflito, a divisão das grandes propriedades entre os camponeses e a regularização do abastecimento interno. Sob o lema "Todo o poder aos sovietes", Trotski recrutou uma milícia revolucionária em Petrogrado, a Guarda Vermelha, entre trabalhadores bolcheviques dos sovietes.

LEGENDA: Lenin anunciando suas Teses de Abril no Palácio Tauride, em São Petersburgo, em 1917.

FONTE: Ullstein bild/Getty Images

Para saber mais

Boxe complementar:

Às vésperas da revolução

O clima de radicalização ao qual chegou a Rússia às vésperas da revolução é relatado pelo jornalista estadunidense John Reed:

Nós, americanos, custávamos a crer que a luta de classes fosse capaz de gerar ódios tão intensos. Vi oficiais da frente norte que preferiam abertamente uma catástrofe militar a qualquer entendimento com os comitês de soldados. O secretário da seção dos cadetes de Petrogrado garantiu-me que o descalabro econômico geral era parte de um plano organizado para desmoralizar a revolução aos olhos das massas. Um diplomata aliado, cujo nome prometi não revelar, confirmou o que me dissera o oficial. Soube ainda que muitas minas de carvão perto de Khárkov tinham sido incendiadas e inundadas por seus próprios donos, e que muitos engenheiros de fábricas têxteis, antes de abandoná-las em poder dos operários, destruíram suas máquinas. Empregados ferroviários haviam sido igualmente surpreendidos por trabalhadores quando inutilizavam suas locomotivas.

Grande parte da burguesia preferia os alemães à revolução. Nesse número, contava-se o próprio Governo Provisório, que não escondia mais seu ponto de vista.

REED, John. Os dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Círculo do Livro, 1984. p. 32.

1. O texto de John Reed é um exemplo de jornalismo literário. Pesquise as principais características desse gênero textual.

2. Com base em sua pesquisa e na leitura do texto acima, você diria que o relato feito por John Reed sobre a Revolução de Outubro foi imparcial? Justifique.

3. As características do jornalismo literário prejudicam o uso desse tipo de texto como fonte documental para o estudo da História? Justifique.

Fim do complemento.

38

4. A revolução bolchevique

Em 7 de novembro de 1917, os bolcheviques tomaram de assalto os departamentos públicos e o Palácio de Inverno, em Petrogrado. Destituíram o Governo Provisório e em seu lugar criaram o Conselho de Comissários do Povo. Pelo Calendário Juliano, em vigor na Rússia, era o dia 25 de outubro. Daí o nome de Revolução de Outubro dado à insurreição bolchevique.

Derrubado o governo de Kerensky, os bolcheviques divulgaram o primeiro documento oficial da revolução, "Apelo aos trabalhadores, soldados e camponeses", que transferia todo o poder aos sovietes. No comando do Conselho estavam Lenin, como presidente, e Trotski, como encarregado dos negócios estrangeiros.

O governo de Vladimir Lenin (1917-1924)

De início, o novo governo nacionalizou as indústrias e os bancos estrangeiros, redistribuiu as terras no campo e firmou um armistício com a Alemanha, o Tratado de Brest-Litovski. Para sair do conflito, a Rússia teve de abrir mão de alguns territórios (Estônia, Letônia, Lituânia, Finlândia, Ucrânia e Polônia).

Glossário:

armistício: acordo firmado entre participantes de um conflito armado para cessar a disputa.

Fim do glossário.

As mudanças nas estruturas tradicionais de poder, entretanto, ativaram a oposição dos mencheviques e czaristas (que passaram a ser chamados de russos brancos). Com o apoio das potências aliadas, que receavam a propagação da revolução socialista pelo mundo, as duas facções mergulharam o país numa sangrenta guerra civil, que só terminou em 1921, com a vitória da Guarda Vermelha, organizada e comandada por Trotski.

Durante a guerra civil, o governo de Lenin adotou como política econômica o "comunismo de guerra", caracterizado pela centralização da produção e pela eliminação da economia de mercado, típica do capitalismo. Seu objetivo era conseguir recursos para enfrentar o cerco internacional e a guerra contra os russos brancos e seus aliados europeus. O confisco da produção agrícola pelo Estado e as requisições forçadas fizeram desaparecer os procedimentos de compra e venda de produtos, tornando desnecessário até o uso de moeda.

Em 1921, apesar da vitória bolchevique sobre os russos brancos e aliados, surgiram sérias crises de abastecimento, além de revoltas camponesas provocadas pelo confisco da produção agrícola. Para evitar o colapso

LEGENDA: As sucessivas derrotas russas na Primeira Guerra Mundial aceleraram a decomposição do governo liberal menchevique. Nesta foto de 1925, Trotski discursa para tropas da Guarda Vermelha.

FONTE: Underwood&Underwood/Corbis/Latinstock

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total da economia após a guerra civil, Lenin instituiu a Nova Política Econômica (NEP), que combinava princípios socialistas com elementos capitalistas, estimulando a pequena manufatura privada, o pequeno comércio e a venda livre de produtos pelos camponeses nos mercados. Pretendia, dessa forma, motivar a produção e garantir o abastecimento.

Lenin justificava a inserção de componentes capitalistas na economia russa sob a alegação de que eram necessários para fortalecê-la e, desse modo, possibilitar a instauração do regime socialista. Na justificativa de Lenin, era "dar um passo atrás para dar dois passos à frente". A NEP durou até 1928 e permitiu a recuperação parcial da economia soviética, reativando setores fundamentais, como a indústria, a agricultura e o comércio.

Em contraste com a relativa liberalização econômica, consolidou-se o centralismo do governo em regime de partido único, o Partido Comunista Russo, como passara a se chamar o partido bolchevique a partir de 1918. Cinco anos depois, em 1923, foi elaborada uma Constituição que instituía a , mais conhecida por União Soviética. Esse foi o resultado de um acordo de união das diferentes regiões do antigo Império Russo, convertidas em repúblicas federativas e socialistas. Com a mudança do nome do país, em 1925 o ex-partido bolchevique passou a se chamar Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Com a morte de Lenin, em 1924, o poder soviético foi disputado por Leon Trotski, chefe do Exército, e Josef Stalin (1878-1953), secretário-geral do Partido Comunista. Trotski defendia a revolução permanente, difundindo o socialismo pelo mundo. Stalin pregava a consolidação interna da revolução, a estruturação de um Estado forte e a implantação do "socialismo em um só país". Na disputa, Stalin saiu vitorioso e, nos anos seguintes, marginalizou Trotski e seus seguidores até eliminá-los.

LEGENDA: Vladimir Ilitch Lenin comandou a Revolução Bolchevique e foi o primeiro presidente da Rússia socialista. Foto sem data.

FONTE: Bettmann/Corbis/Latinstock

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1923

FONTE: Adaptado de: DUBY, Georges. Atlas historique. Paris: Larousse, 2006. p. 151.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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5. O governo de Josef Stalin (1924-1953)

A partir de 1928, sob o novo comando de Stalin, a economia soviética viveu a socialização total, com a abolição da NEP e a instauração dos planos quinquenais, que objetivavam modernizar e industrializar a União Soviética. O primeiro deles, implementado no mesmo ano, estava voltado para o aumento da produção de maneira global, com o estímulo à industrialização, sobretudo na área da indústria pesada (siderurgia, maquinaria, etc.).

No meio rural, foi feita a coletivização agrícola, com duas formas de estabelecimento rural: os sovkhozes (fazendas estatais) e os kolkhozes (cooperativas).

Na década de 1930, ao ser implantado o segundo plano quinquenal, já se notavam os efeitos positivos do primeiro plano: a indústria de base crescera aproximadamente sete vezes em relação a 1928, e a indústria de bens de consumo, quatro vezes.

O terceiro plano quinquenal, iniciado em 1938, visava desenvolver a indústria especializada, sobretudo a indústria química, mas não pôde ser colocado em prática devido à eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

No plano político, Stalin consolidou seu poder assumindo integralmente o controle do Partido Comunista, transformado no poder máximo que supervisionava todos os sovietes. Subordinada ao partido estava a polícia política, organização chamada inicialmente de Cheka e, em 1922, transformada em GPU, Administração Política do Estado, sob a chefia de Stalin.

Centralizando todo o poder do Estado soviético, Stalin livrou-se da oposição de Trotski, exilando-o em 1929. Mais tarde, principalmente entre 1936 e 1938, reafirmou sua autoridade ao afastar todos os potenciais opositores, recorrendo para isso a julgamentos simulados, condenações, expulsões do partido e punições - processos que ficaram conhecidos como expurgos de Moscou.

Sem alarde ou protestos, que eram abafados pelo medo, muitos líderes revolucionários e cidadãos comuns foram aprisionados, executados ou mandados para prisões em regiões remotas, como a Sibéria. Dessa forma, por volta de 1940 todos os líderes bolcheviques que dirigiram a revolução ao lado de Lenin haviam sido mortos a mando de Stalin.

LEGENDA: Reunião do IX Congresso do PCUS de 1920 (à direita, Lenin). Todas as pessoas assinaladas foram vítimas dos expurgos de Moscou.

FONTE: Reprodução/Museu Lênin, Moscou, Rússia

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Mesmo fora da União Soviética, Trotski continuou a fazer oposição ao governo stalinista, criticando os processos de Moscou e a farsa das retratações de acusados, até ser assassinado no México por um agente da polícia política soviética, em 1940.

Na década de 1930, a consolidação do governo fascista de Benito Mussolini, na Itália, e a ascensão do governo nazista de Adolf Hitler, na Alemanha, provocariam uma alteração substancial na política mundial. O pacto anti-Komintern, assinado entre o Japão, a Itália e a Alemanha, em 1936, tornava-se um desafio não só à existência de um país sob o regime comunista, mas também ao movimento operário internacional.

Glossário:

Komintern: abreviatura, em alemão, de Internacional Comunista (ou Terceira Internacional), criada em Moscou em 1919 para coordenar a ação dos partidos comunistas no mundo inteiro.

Fim do glossário.

Setor público e privado na Rússia (1922-1931)

LEGENDA: De 1922 a 1931, prevaleceu o encolhimento do setor privado em relação ao estatal.

FONTE: Adaptado de: CAMERA, Augusto; FABIETTI, Renato. Elementi di storia - XX secolo. Bolonha: Zanichelli, 1999. p. 1273.

FONTE: Cassiano Röda/Arquivo da editora

LEGENDA: Manifesto propagandístico de Stalin destacando a construção de usina siderúrgica em Moscou, em 1930.

FONTE: Reprodução/Coleção particular, Londres, Inglaterra

LEGENDA: Litografia de 1933 em que estão representados Marx, Engels, Lenin e Stalin. A propaganda stalinista associou essas duas figuras do pensamento socialista ao seu governo, além de censurar possíveis contrariedades às suas ideologias, alterando, por exemplo, fotos em que Trotski aparecia ao lado dos principais líderes soviéticos.

FONTE: World History Archive/Alamy/Latinstock

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Pontos de vista

Balanço do século XX

Um dos acontecimentos históricos mais relevantes e extraordinários do século XX foi a Revolução Russa, a qual suscitou uma infinidade de debates acalorados entre intelectuais, estudantes universitários e até nos meios operários. Até fins da década de 1980, a referência ao mundo soviético ou ao comunismo provocava discussões intensas sobre as vantagens e desvantagens de um regime político distinto do capitalismo.

Com a historiografia não foi diferente. Inúmeros historiadores que se dedicaram ao estudo do século XX produziram reflexões sobre o papel, a importância e o legado da Revolução Russa. Eric Hobsbawm, um dos mais notáveis historiadores do Ocidente, construiu um balanço do século atravessado pela experiência da Revolução Russa e de seus desdobramentos.

No livro A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991, lançado em 1994, Hobsbawm defende que o desejo de uma sociedade mais justa e sem desigualdades sociais pareceu transformar-se em realidade quando eclodiu a Revolução de Outubro. Para ele, as contradições, os erros políticos e as tragédias humanas vividas durante as décadas em que o regime soviético se manteve expressaram as tentativas de construção de uma nova sociedade, uma utopia que marcou gerações ao longo do século XX.

Além disso, Hobsbawm afirma em sua obra que a Revolução Russa impôs desafios ao mundo capitalista e, contraditoriamente, foi responsável por suas transformações, graças aos eventos que resultaram no fim da Segunda Guerra Mundial. Em primeiro lugar, quando o nazismo se tornou uma força militar com poder para controlar o planeta, foram os soviéticos que barraram o avanço de Hitler e impuseram as primeiras grandes derrotas ao exército alemão, no front oriental. Estima-se que mais de 20 milhões de soviéticos, civis e militares, foram mortos durante o conflito. A Batalha de Stalingrado, entre 1942 e 1943, foi a mais sangrenta da Segunda Guerra; naquela cidade, mais de 1 milhão de soviéticos morreram.

Em segundo lugar, quando o Ocidente se reergueu dos escombros da Segunda Guerra Mundial, era preciso conter a expansão do comunismo, diante de democracias liberais frágeis e mergulhadas na crise econômica. Assim, os países capitalistas reagiram à crise oferecendo alternativas reais de participação com a ampliação dos direitos políticos, como o sufrágio universal, e criando condições de crescimento econômico com investimentos em políticas sociais que reduzissem a miséria e as tensões sociais.

O Estado de bem-estar social, surgido na Europa e nos Estados Unidos, nos anos 1950, era uma resposta às aspirações de igualdade e prosperidade econômica que vinham dos regimes comunistas.

Sobre a importância da Revolução Russa para a história recente, Hobsbawm afirmou:

A Revolução de Outubro produziu de longe o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna. Sua expansão global não tem paralelo desde as conquistas do islã em seu primeiro século. Apenas trinta ou quarenta anos após a chegada de Lenin à Estação Finlândia em Petrogrado, um terço da humanidade se achava vivendo sob regimes diretamente derivados dos Dez dias que abalaram o mundo (Reed, 1919) e do modelo organizacional de Lenin, o Partido Comunista.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 62.



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Eric Hobsbawm

Nascimento: 1917, Alexandria, Egito.

Morte: 2012, Londres, Inglaterra.

Formação: Historiador

Profissão: professor de História na Universidade de Londres.

FONTE: Martin Ruetschi/Keystone/Corbis/Latinstock

A tragédia do Estado Soviético

No entanto, A Era dos Extremos não é um livro sobre a vitória da Revolução Russa, mas sobre a derrota de um projeto social que a humanidade ainda não foi capaz de construir, segundo o autor. Historiador

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marxista e militante comunista desde a juventude, Hobsbawm analisa de que modo as forças políticas do Estado Soviético e as condições da economia mundial arrastaram a esperança de libertação para fora do palco da História.

Para Eric Hobsbawm, o atraso econômico, o Estado autoritário e burocrático e o isolamento político da URSS, intensificado a partir da década de 1950, foram alguns dos fatores que conduziram a Revolução para sua própria derrota. No final do livro, Hobsbawm avalia com melancolia:

[...] a experiência soviética foi tentada não como uma alternativa global ao capitalismo, mas como um conjunto específico de respostas à situação particular de um país imenso e espetacularmente atrasado, numa conjuntura histórica particular e irrepetível. O fracasso da revolução em outros lugares deixou a URSS comprometida em construir sozinha o socialismo, num país onde, pelo consenso universal dos marxistas em 1917, incluindo os russos, as condições para fazê-lo simplesmente não estavam presentes. A tentativa de construir o socialismo produziu conquistas notáveis [...], mas a um custo humano enorme e inteiramente intolerável, e daquilo que acabou se revelando uma economia sem saída e um sistema político em favor do qual nada havia a dizer.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 481.

LEGENDA: Soldados da Guarda Vermelha participam de manifestação em 1º de maio de 1918, em Petrogrado.

FONTE: RIA Novosti/Agência France-Presse

Um liberal interpreta a Revolução

Vários intelectuais liberais e conservadores também analisaram a Revolução Russa e produziram interpretações distintas e, em certa medida, opostas a de pensadores marxistas, como Hobsbawm. Entre eles, o historiador francês François Furet (1927-1997) se destaca pela repercussão do seu livro O passado de uma ilusão: ensaio sobre a ideia comunista no século XX, publicado em 1995.

Na obra, Furet analisa as derrotas do comunismo, a "ilusão" do título e a vitória do capitalismo, avaliado como um regime liberal e democrático. O historiador viu a ascensão do regime comunista como a história de um desejo (uma ideia ilusória) que se transformou num pesadelo totalitário, tão devastador quanto o nazifascismo. Ele interpretou a experiência soviética e suas tentativas de expansão comunista como uma curta desventura diante da vitória final do liberalismo, a partir de 1989, visto por ele como um mundo pautado nos direitos humanos e nas leis de mercado.

Ao analisar a Revolução Russa, François Furet fez ainda um balanço da sua própria geração de intelectuais que se formou sob a presença marcante da URSS, entre as décadas de 1940 e 1950. Enquanto Hobsbawm se envolveu com as potencialidades surgidas da experiência soviética, Furet optou pelo silêncio prudente, como revela o trecho abaixo de uma entrevista:

Havia o mito da Rússia, do Exército Vermelho, um mito que aliás nos cegou, porque efetivamente ficamos cegos diante de todas as evidências. Aceitamos ingenuamente uma série de mentiras sobre o mundo soviético. Os mais prudentes de nós - foi o meu caso - felizmente não escreveram nesse período. Se eu o tivesse feito, teria escrito um monte de bobagens. Não sei realmente se não escrevi porque era jovem ou porque tinha uma espécie de bloqueio inconsciente.

CAMARGO, Aspásia. O historiador e a História: um relato de François Furet. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988. p. 145.

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Atividades

Retome

1. Que fatores forçaram o czar Nicolau II a lançar o Manifesto de outubro? Qual era o teor desse documento?

2. Às vésperas de eclodir a Revolução, várias agremiações político-ideológicas haviam se organizado na Rússia contra o czar, como os narodnikis, os anarquistas, o Partido Constitucional Democrata e os social-democratas. Em 1903, estes últimos se dividiram em duas facções. Identifique-as e compare as posições políticas que cada uma passou a defender.

3. Após o colapso do czarismo em 1917, foi instalada a República da Duma, na Rússia. Contudo, o novo governo frustrou muitas das expectativas populares. Como essa frustração afetou o cenário político russo?

4. Logo após a vitória bolchevique na guerra civil contra o Exército Branco, Lenin adotou uma política com algumas características liberais, como o estímulo à pequena manufatura privada e a permissão para que os camponeses vendessem seus produtos no mercado.

a) Como foi chamada essa política?

b) Qual era o objetivo dessa política adotada por Lenin?

5. Ao assumir o poder da União Soviética no lugar de Lenin, morto em 1924, Stalin imprimiu ao Estado soviético suas próprias marcas. Cite duas medidas adotadas por ele.

Pratique

6. Leia o texto a seguir do historiador Daniel Aarão Reis, que trata da ascensão de Josef Stalin ao poder na União Soviética.

As mutações ocorridas na União Soviética nos anos 1930, e até a morte de J. Stalin, corresponderam a um salto gigantesco - uma sociedade agrária tornou-se urbana, um tempo de alterações bruscas, embaralhamento de referências, areias movediças, o barco parece que vai virar e todos se afogarão, tempo de carências e de angústias sem fim, é preciso alguém no leme, se aparecer, oferece conforto e segurança, um tempo propício ao surgimento de figuras carismáticas, líderes despóticos, tiranos.

Nessas circunstâncias, J. Stalin terá imaginado que um meio seguro para a consolidação de seu poder pessoal seria exatamente tornar inseguras as condições de poder de todos os demais dirigentes. E provocar, incessantemente, por meio dos expurgos, mudanças que lhe permitiriam constituir camadas absolutamente independentes e, em consequência, fiéis ao seu mandato.

Encontrou terreno fértil para esse objetivo naqueles milhões de pessoas que ascendiam, devotados, entusiasmados no contexto do processo objetivo de plebeização do poder.

Como vimos, não houve apenas sombras, havia luzes também, fortes, elas seduziram muitos, iluminando e mostrando os caminhos da construção de um mundo novo, a utopia feita realidade viva, palpável. Estas luzes ofuscaram não poucos, dificultando a visão do que deveria, e não pôde ser visto.

E as tradições remotas, acumuladas, dos czares-paizinhos, protetores, severos, mas justos. E do Estado poderoso, capaz de lidar com as ameaças históricas, bem reais, como a invasão nazista evidenciou.

J. Stalin apostou alto, e com sucesso, na mobilização dessas referências. Criador, contribuiu para criá-las, mas também foi delas, e da sociedade, criatura.

Pode ser triste, mas não é menos verdadeiro. Nem sempre os seres humanos preferem liberdade à segurança. Não trocam essa por aquela, nem se resolvem a arriscar a vida contra as tiranias. Preferem, segundo as circunstâncias, construí-las, e apoiá-las, e se fiar nos tiranos.

REIS, Daniel Aarão. Stalin, stalinismo e sociedade soviética. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha V. (Org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX - Europa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 112-113.

Agora, faça o que se pede.

a) De acordo com o historiador Daniel Aarão Reis, em que contexto Stalin se firma como líder da URSS?

b) Que recurso Stalin usou para afirmar e consolidar seu poder pessoal?

c) As tradições políticas russas favoreceram ou prejudicaram a concentração de poder nas mãos de Stalin? Justifique.

d) Observe a imagem a seguir. Que relação é possível estabelecer entre ela e a análise do stalinismo feita pelo historiador Daniel Aarão Reis?

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LEGENDA: Pôster produzido em 1936 por Viktor Iwanovich Govorkov (1906-1974), no qual lê-se: "Obrigado ao querido Stalin por nossa infância feliz!".

FONTE: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images

Analise uma fonte primária

7. Leia a seguir um trecho de um texto publicado no dia 7 de abril de 1917 no jornal Pravda, assinado por Lenin, líder bolchevique da Revolução Russa.

Apresento aqui estas teses em meu próprio nome, unicamente acompanhadas de muito breves comentários explicativos; no meu relatório, encontram-se desenvolvidas com bastante mais pormenor:

I. Na nossa atitude em relação à guerra - que, por parte da Rússia, continuou a ser incontestavelmente uma guerra imperialista de saque, mesmo sob o novo governo de Lvov e companhia, em razão de seu caráter capitalista - não será tolerada, por mínima que seja, nenhuma concessão a uma política defensiva revolucionária.

O proletariado consciente só pode dar seu consentimento a uma guerra revolucionária, que justifique realmente a defesa dos ideais revolucionários, sob as seguintes condições:

a) Passagem do poder para o proletariado e para os setores mais pobres do campesinato, próximos do proletariado;

b) Renúncia efetiva, e não verbal, de toda anexação; c) Ruptura total com os interesses do Capital;

[...]

VI. Quanto ao programa agrário, a tomada de decisões deve recair nos sovietes de deputados de trabalhadores agrícolas. Todas as terras dos latifundiários serão confiscadas.

Da mesma forma, nacionalizar-se-ão todas as terras do país e serão postas à disposição dos sovietes locais de deputados de trabalhadores agrícolas e camponeses e criar-se-ão outros, formados por camponeses pobres. Transformação de todos os grandes domínios (com uma extensão de 100 a 300 hectares, tendo em conta as condições locais e outras, de acordo com a decisão dos comitês locais) em exploração-modelo, colocando sob controle dos deputados dos trabalhadores agrícolas e funcionando por conta da coletividade.

Discursos que mudaram o mundo. São Paulo: Folha de S.Paulo, 2010. p. 16-17.

Agora, faça o que se pede.

a) No contexto revolucionário russo, quem eram os bolcheviques e que ideias defendiam?

b) O que eram os sovietes?

c) De acordo com o trecho do documento, qual era a posição de Lenin em relação à participação da Rússia na Primeira Guerra? Desenvolva a resposta com base em elementos do texto.

d) De acordo com o texto, como Lenin pretendia resolver as enormes desigualdades sociais existentes nas áreas rurais da Rússia?

Articule passado e presente

8. A matéria a seguir foi publicada na Gazeta Russa em 24 de outubro de 2013 e trata dos serviços de saúde públicos oferecidos na Rússia. Leia-a atentamente e, em seguida, responda às questões propostas.

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Os problemas de desigualdade social na saúde pública russa

Desigualdade e injustiça na saúde pública costumam andar juntas na maioria dos países, onde a qualidade do atendimento médico depende amplamente da condição financeira do paciente.

Na era soviética, o governo acreditava que o sistema de saúde pública gratuito teria plena capacidade de eliminar qualquer desigualdade entre os pacientes, o que levou à adoção do conceito de assistência médica para todos, que inicialmente trouxe bons resultados no combate de muitas doenças infecciosas, redução da quantidade de casos de tuberculose, assim como no controle de epidemias.

Porém, com o passar do tempo, o sistema de saúde gratuito soviético transformou os médicos, a elite da sociedade, em trabalhadores comuns das "fábricas de saúde".

Os próprios hospitais, sem direito de exercer qualquer atividade comercial, dependiam do orçamento federal e, muitas vezes, não possuíam recursos suficientes para oferecer nem um atendimento de qualidade, nem desenvolver as próprias pesquisas na área médica.

Do outro lado, os pacientes não podiam exercer os seus principais direitos protegidos pela legislação da maioria dos países desenvolvidos, tais como o acesso ao próprio diagnóstico, solicitação das informações em relação ao tratamento oferecido, incluindo a possibilidade de aceitá-lo ou recusá-lo, manutenção do sigilo e confidencialidade dos dados pessoais e ficha médica.

[...]

Saúde pública na Rússia após a reforma

Com as reformas do sistema de saúde no final da década de 1980 e do início dos anos 1990, foi introduzido o conceito de serviços pagos, uma maneira de distribuição de bens mais justa. No entanto, com esta novidade, os serviços gratuitos não deixaram de existir. Uma nova lei de saúde pública aprovada em 2011 dividiu os serviços prestados pelos hospitais em obrigatórios gratuitos, que não poderiam deixar de existir devido a uma grande quantidade de cidadãos com baixa renda, cuja maioria era de terceira idade, e adicionais, a serem pagos pelo próprio paciente.

Liudmila (que também não quis revelar seu sobrenome), viúva há dez anos, é uma gerente aposentada que tinha ótima remuneração no passado e que conseguiu formar uma boa poupança e conhecer o mundo através de viagens a trabalho para o exterior, mas que nunca teve filhos.

Recentemente, uma doença oncológica a pegou de surpresa e Liudmila procurou o atendimento médico gratuito.

"Estou internada em um hospital que oferece tratamento e todas as refeições de graça. Quando não consigo me levantar, conto com a ajuda das enfermeiras e auxiliares, serviços os quais também não pago nada. Ao longo da internação, a presença dos familiares não é necessária", explica Liudmila. "A única dificuldade é continuar o tratamento em casa após receber alta, pois os medicamentos não são oferecidos pelo governo. Assim que adoeci, passei a ser considerada uma deficiente, o que me dá direito a ter um pequeno aumento na minha aposentadoria. No entanto, ela não é suficiente. Não imagino o que faria se não tivesse a minha poupança", acrescenta ela.

Vale ressaltar que as reformas trouxeram certas melhorias à saúde pública da Rússia. De acordo com estimativas do Ministério da Saúde e Desenvolvimento Social, os centros médicos russos oferecem a maior parte dos tratamentos e serviços disponíveis no mercado internacional. No entanto, mesmo os tratamentos ausentes nos hospitais do país, mas amplamente utilizados fora do seu território, poderão ser pagos pelo governo russo, caso haja toda a documentação exigida.

Além disso, a nova legislação prevê a proteção dos direitos de pacientes, tais como o direito de saber o próprio diagnóstico, as informações referentes ao tratamento disponível, incluindo a possibilidade de aceitá-lo ou recusá-lo, assim como o direito de manutenção do sigilo e direito de escolher qualquer profissional e instituição de saúde pública.

SMIRNOVA, Larissa. Os problemas de desigualdade social na saúde pública russa. Gazeta Russa. 24 out. 2013. Disponível em: http://gazetarussa.com.br/sociedade/2013/10/24/os_ problemas_de_desigualdade_social_na_saude_ publica_russa_22451. Acesso em: 26 abr. 2016.

a) Qual foi o objetivo do governo soviético quando decidiu criar um sistema público de saúde?

b) De acordo com a matéria, que problemas enfrentava o sistema de saúde soviético antes do fim da URSS?

c) O que mudou no sistema público de saúde da Rússia depois do fim da URSS?

d) No início do capítulo, você refletiu sobre as distorções ocorridas nos ideais revolucionários depois que o socialismo foi implantado na Rússia. Tomando por base o sistema de saúde, que hipóteses você levanta para explicar essa distorção?

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CAPÍTULO 3: Brasil: a implantação da república

LEGENDA: Parque da Luz, na cidade de São Paulo. Foto de 2011. No parque, aberto ao público em 1825, encontram-se esculturas de artistas conhecidos, como Victor Brecheret, Leon Ferrari e Amílcar de Castro, entre outros.

FONTE: Alf Ribeiro/Futura Press

Em 2005, a Prefeitura de São Paulo lançou o Projeto Nova Luz, com a proposta de reurbanizar parte do centro da maior metrópole do país, transformando-a num polo comercial e de serviços em meio a uma área residencial. O projeto foi suspenso por uma ordem judicial, que o considerou inconstitucional por não consultar a população afetada. Observe a imagem, leia a legenda e responda: será que o projeto da prefeitura levou em conta os interesses da população que vivia na região? Você conhece outros exemplos de reformas urbanas desse tipo feitas pelo poder público?

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1. Brasil: o fim da monarquia e o início da república

As últimas décadas do século XIX e as iniciais do século XX compreendem um período que ficou conhecido como Belle Époque (Bela Época). A expressão exprime a euforia causada pela crença no avanço ininterrupto do progresso, na modernidade e na supremacia completa da burguesia. Esses sentimentos sofreram um forte baque com a Primeira Guerra Mundial e com a Revolução Russa.

No Brasil, periferia dos centros de desenvolvimento econômico mundiais do período, ansiava-se por mudanças e assistia-se ao colapso da monarquia. Em 15 de novembro de 1889, um golpe liderado pelos militares pôs fim ao poder de dom Pedro II e instaurou a república, uma forma de governo cujos ideais estiveram presentes no Brasil em vários movimentos políticos desde a época colonial.

Na sua estrutura, república (do latim res publica, que significa "coisa pública") pressupõe uma forma Independência de governo voltada para o bem comum, em favor da coletividade, pautando-se pelo respeito às instituições, finanças e todo patrimônio físico e cultural do país ou de sua coletividade.

Neste capítulo, vamos compreender as propostas de república defendidas pelos diferentes atores que se envolveram nessa nova forma de governo e como os interesses políticos e econômicos da elite agrária, um dos segmentos da sociedade, se impuseram. Trataremos, portanto, dos acontecimentos políticos e econômicos da montagem da República oligárquica, dentro de um período mais extenso chamado de Primeira República, demarcado pelos anos de 1889 e 1930, fase em que setores sociais oligárquicos mantiveram o controle do poder no país. Dessa forma, veremos que a ideia de um governo voltado para o bem comum ficou pelo caminho, mas continuou viva entre aqueles que lutaram contra ou ficaram de fora do governo republicano instituído.

LEGENDA: Teatro Amazonas, localizado na capital amazonense, Manaus. Construído durante um período de prosperidade econômica e esplendor cultural da região, essa imponente e luxuosa construção é uma das expressões da Belle-Époque tropical.

FONTE: Ernesto Reghran/Pulsar Imagens

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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2. Deodoro da Fonseca e a instalação da república

Campanhas republicanistas já se disseminavam pelo país desde a década de 1870, por iniciativa de militares, jornalistas, advogados e cafeicultores. Na década de 1880, a pressão pela abolição da escravidão, defendida por muitos republicanistas, ampliou a adesão à causa, sem, no entanto, contagiar toda a população brasileira.

Em quase todas as capitais de províncias do país, comícios, jornais e partidos faziam críticas à monarquia e ao imperador em defesa de um governo organizado a partir dos interesses da sociedade e não da família imperial e da nobreza brasileira. Porém, entre os vários grupos republicanistas, havia divergências ideológicas e também quanto à forma como a república deveria ser implantada no país.

Houve conversas entre alguns republicanistas, civis e militares em torno da ideia de depor o imperador durante a cerimônia de abertura da Assembleia Geral do Império, marcada para o dia 20 de novembro de 1889. Porém, alguns civis resolveram antecipar os acontecimentos e fizeram circular boatos de que havia uma ordem de prisão do governo contra o tenente Benjamin Constant (1836-1891) e o marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892). Isso impulsionou Deodoro a reagir antecipadamente.

Na manhã do dia 15 de novembro, liderando aproximadamente 600 soldados, Fonseca seguiu em marcha até o quartel-general do Exército, no Campo de Santana, no Rio de Janeiro. Lá, representantes do governo imperial estavam reunidos em caráter de urgência por conta de rumores sobre uma mobilização militar contra o Império. Fonseca destituiu o visconde de Ouro Preto, chefe do gabinete de ministros. A princípio, o marechal esperava indicar nomes para um novo ministério ao imperador. Porém, a articulação de civis republicanistas, como Silva Jardim e José do Patrocínio, o convenceu de que a monarquia deveria ser abolida.

Na tarde daquele mesmo dia, sob a liderança de José do Patrocínio, o fim da monarquia e a Proclamação da República foram anunciados oficialmente na Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro. À noite, foi empossado em caráter provisório o marechal Deodoro da Fonseca, liderando um grupo de sete ministros escolhidos entre militares e civis.

Nenhuma reação imediata em defesa da monarquia foi notada ao longo daquele dia. Segundo um republicanista, também não houve apoio na forma de participação popular.

[...]


Eu quisera poder dar a esta data a denominação seguinte: 15 de Novembro, primeiro ano de República; mas não posso infelizmente fazê-lo. O que se fez é um degrau, talvez nem tanto, para o advento da grande era. [...]

Por ora, a cor do Governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada. [...]

LOBO, Aristides. Acontecimento único. Diário Popular, São Paulo, 18 nov. 1889. Apud CARONE, Edgard. A Primeira República: texto e contexto. Rio de Janeiro, Difel, 1969. p. 288-289.

LEGENDA: Reprodução da capa do jornal carioca Correio do Povo com manchete anunciando a Proclamação da República. Quem são os personagens enaltecidos pela publicação? Atenção: as palavras estão grafadas conforme as regras ortográficas vigentes na época de publicação.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

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O primeiro ministério do Brasil

Observe ao lado uma página da Revista Illustrada publicada no dia seguinte à queda da monarquia e que homenageava o novo regime. Nela, está representado o primeiro ministério brasileiro. As cores dos quadros abaixo identificam o posicionamento político de cada ministro diante dos ideais republicanos.

FONTE: Revista Illustrada/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.

Para essa equipe, não foi convidado nenhum adepto de uma corrente republicana mais popular, como a corrente jacobina, tida como mais radical e inspirada, em certo sentido, no movimento dos jacobinos da Revolução Francesa de 1789. Em torno dessa vertente aglutinavam-se pequenos comerciantes, jornalistas, professores e estudantes, mais favoráveis a um governo democrático, com liberdade de participação popular nas discussões e decisões da administração. Defendiam, ainda, que o novo Estado republicano deveria assumir políticas voltadas para o desenvolvimento da igualdade social. Seu principal expoente era o advogado Antônio da Silva Jardim (1860-1891), defensor e articulador de uma campanha republicana baseada muito mais em conferências e peças teatrais do que em textos escritos e divulgados em jornais.

Defendiam uma república de caráter liberal, baseada na autonomia dos estados e na implantação de uma república federativa; a divisão dos três poderes e a separação entre Igreja e Estado. Tinham restrições quanto à ampla participação popular nas eleições. Partidários: proprietários de terras paulistas, juristas e jornalistas que se inspiravam na república federalista dos Estados Unidos, entre outros.




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Aristides Lobo (1838-1896)

Era membro do Partido Republicano e signatário do Manifesto Republicano de 1870, cujo teor influenciou o manifesto do Partido Republicano Paulista, de 1873. Foi nomeado para o Ministério do Interior.

Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892)

Foi chefe do gabinete provisório. Militar de alta patente, não defendia a república, mas havia se indisposto com o imperador quando da punição de militares por defenderem direitos políticos.

Eduardo Wandenkolk (1838-1902)

Foi chefe de esquadra e membro de alta patente da Marinha, aliado do marechal Deodoro nas questões militares que indispuseram as Forças Armadas e o imperador. Não defendia a república. Foi nomeado ministro da Marinha.

Partidário do ideal positivista, defendia uma ditadura de intelectuais civis, tidos como capazes de promover o progresso da nação. Esse pensamento foi bastante disseminado no Rio Grande do Sul e nos estados do nordeste.

Manuel Ferraz Campos Sales (1841-1913)

Foi signatário do Manifesto Republicano de 1870 e um dos fundadores do Partido Republicano Paulista, de 1873. Deu apoio à queda do regime monárquico pelos militares. Foi nomeado para o Ministério da Justiça e chamado para garantir o apoio dos cafeicultores paulistas.

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LEGENDA: Pintura de Oscar Pereira da Silva, produzida no final de 1889 e publicada em 1890 no jornal francês Le Monde Illustré. Os responsáveis pelo jornal afirmavam que a pintura era uma reprodução fiel da proclamação da República. No entanto, sabe-se que não havia testemunho de pintor algum na hora do golpe republicano. Observe que alguns soldados foram pintados perfilados, de costas para o observador. Outros, junto aos canhões. O povo está presente, no primeiro plano da imagem. O pintor representa uma proclamação da República sem responsáveis definidos, mas com a participação de forças militares e ovacionada pela população.

FONTE: Museu Casa de Benjamin Constant, Rio de Janeiro/Instituto Brasileiro de Museus - Ibram/MinC - Autorização n. 03/2016.

Defendiam o ideal positivista de república, dirigido por uma ditadura militar, a separação entre o Estado e a Igreja. Seus partidários acreditavam que essa forma de governo seria responsável pelo progresso do país, pela proteção dos direitos dos cidadãos e pela implementação de políticas sociais que beneficiariam os trabalhadores.

Quintino Bocaiuva (1836-1912)

Junto com Aristides Lobo e Manuel Ferraz Campos Sales, era um dos signatários do Manifesto Republicano de 1870. Foi nomeado para o Ministério das Relações Exteriores.

Demétrio Ribeiro (1853-1933)

Era um positivista civil, contrário à centralização do governo, como defendiam os militares da mesma linha ideológica. Apoiava uma república federativa. Foi nomeado para o Ministério da Agricultura.

Partidários da monarquia ou de uma monarquia reformada. Aderiram ao movimento republicanista às vésperas do golpe de 15 de novembro.

Benjamin Constant (1836-1891)

Foi tenente-coronel e atuou como professor na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, favorecendo a propagação do ideal positivista entre os jovens da corporação. Foi nomeado para o Ministério da Guerra.

Rui Barbosa (1849-1923)

Foi membro do Partido Liberal e defensor de reformas do regime monárquico. Identificava-se com o teor do Manifesto Republicano de 1870, porém não participou da campanha republicanista. Foi nomeado para o Ministério da Fazenda.

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Primeiras medidas republicanas

Entre as medidas tomadas no primeiro decreto, publicado na noite de 15 de novembro de 1889, merecem destaque:

- a expulsão da família real do país - determinada no mesmo dia do golpe e comunicada ao imperador no dia seguinte;

- a proclamação da república federativa como forma de governo;

- a transformação de cada província em estado;

- o não reconhecimento de qualquer governo local que fosse contrário à república.

O mesmo decreto permitia ao Governo Provisório reprimir qualquer resistência monarquista.

Ainda nos primeiros meses do governo, foram convocadas eleições para uma Assembleia Constituinte, a ser empossada no primeiro aniversário da Proclamação da República, com a função de preparar a primeira constituição republicana, a partir de um projeto apresentado pelo Governo Provisório. Porém, para participar, os eleitores precisavam saber ler e escrever, exigência que substituía as restrições censitárias determinadas nos anos finais da monarquia.

Alguns atos reformistas não aguardaram a instalação da Assembleia Constituinte e foram instituídos nos primeiros meses do governo provisório: a separação entre Igreja e Estado, a liberdade de culto; a secularização dos cemitérios e a regularização do registro civil para nascimento, casamento e óbito.

No plano econômico-financeiro, em uma tentativa de preparar o país para a ampliação do volume de investimentos nacionais e internacionais e tornar a atividade produtiva mais dinâmica, o ministro Rui Barbosa instituiu, em janeiro de 1890, medidas para enfrentar a falta de dinheiro no mercado e promover a industrialização. Estas ações, ao mesmo tempo que criavam novas expectativas para o país, afetavam diversos interesses envolvendo os negócios dos cafeicultores, dos comerciantes importadores e exportadores e o custo de vida das classes trabalhadoras.

Entre as medidas adotadas estavam: aumento do volume de dinheiro a ser emitido, destinado às atividades produtivas; instituição de leis que facilitassem a criação de sociedades anônimas industriais e organizassem o comércio de ações na Bolsa de Valores; redução das taxas de importação para equipamentos e matérias-primas; aumento dos impostos sobre a importação de produtos industrializados.

Glossário:

sociedade anônima: empresa cuja propriedade é dividida em cotas (ações), cada uma delas representando uma fração do capital. Ao serem negociadas na Bolsa de Valores, as cotas são adquiridas por pessoas, denominadas acionistas, que passam a ser proprietárias de uma parte da empresa. Esses acionistas, por sua vez, têm direito a ganhos periódicos proporcionais à lucratividade da empresa e à quantidade de ações que dela possuem.

Fim do glossário.

O sucesso inicial das providências econômicas de Rui Barbosa foi logo revertido. Seis meses após a adoção das primeiras medidas, a economia mergulhou em uma profunda crise - que ficou conhecida como encilhamento. Essa crise estava relacionada, principalmente, com o descontrole da quantidade de dinheiro emitido, o que levou a uma forte desvalorização da moeda, causando um aumento no custo de vida e inúmeros casos de falência. A suspensão de créditos internacionais e a crise monetária em um dos principais bancos financiadores ingleses também contribuíram para o agravamento da situação.

Ao longo do primeiro ano de governo provisório, foram muitas as críticas de adversários e mesmo de membros do governo às dificuldades econômicas e ao autoritarismo do presidente marechal Deodoro. As nomeações de militares para chefiar governos estaduais, bem como as frequentes práticas de nepotismo e favoritismo por parte do Governo Provisório, eram sempre reprovadas pela oposição. Outro alvo de desaprovação era a política de concessão de direitos para emissão de dinheiro, fato que contribuiu para o afastamento de Rui Barbosa do Ministério.

LEGENDA: Charge de Angelo Agostini, datada de 1890, que representa uma crítica ao programa monetário brasileiro empreendido por Rui Barbosa no início da República.

FONTE: Reprodução/Biblioteca Municipal Mário de Andrade, São Paulo, SP.

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Para saber mais

Boxe complementar:

Diferentes visões para as primeiras medidas econômicas

Até recentemente, prevalecia na historiografia a ênfase numa visão sobre a política econômica adotada nos primeiros anos republicanos. Essa visão era fundamentada em diversos casos de falência que se seguiram ao impacto positivo inicial, bem como na alta inflação provocada pela desvalorização da moeda.

O romance O Encilhamento: cenas contemporâneas, escrito pelo monarquista e visconde Affonso D'Escragnolle Taunay, sob o pseudônimo Henrique Malheiros, lançado em 1893, é considerado uma das mais importantes fontes históricas para essa visão negativa que alguns estudiosos tinham sobre essas medidas econômicas da época. Nesta obra, o processo de negociações, especulações, ganhos e perdas junto à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro é associada, de forma pejorativa, ao termo encilhamento, utilizado no universo das corridas de cavalos.

Glossário:

encilhamento: ato de ajustar com cintas a sela ou a carga sobre um cavalo. Também se refere ao momento prévio das corridas de cavalo, em que na fase da preparação dos animais ocorrem as apostas para o páreo.

Fim do glossário.

Quase cem anos depois, o historiador José Murilo de Carvalho relacionou um comportamento individual dos investidores à especulação, diferente daquele notado no período monárquico. Para este autor, "o encilhamento trouxe uma febre de enriquecimento a todo custo", fazendo aparecer "o espírito aquisitivo, solto de qualquer peia de valores éticos, ou mesmo de cálculo racional que garantisse a sustentação do lucro a médio prazo".

Glossário:

peia: impedimento, obstáculo.

Fim do glossário.

Atualmente, alguns pesquisadores têm revisado aquelas análises e os dados disponíveis, elaborando diferentes conclusões, sem, contudo, deixar de apontar alguns efeitos negativos. Segundo a economista Hildete Pereira, apesar da inflação e da especulação financeira,

[...] muitas das companhias surgidas naqueles dias sobreviveram e se tornaram prósperos empreendimentos industriais. O exemplo mais notável foi o das companhias têxteis, cujo capital integralizado na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro mais que dobrou, entre maio e novembro de 1890. Em São Paulo, de fevereiro a julho de 1890, surgiram mais de duzentas sociedades anônimas, e em agosto do mesmo ano foi fundada a Bolsa de Valores daquele estado. Certamente a política de Rui acelerou o processo de formação de capital, e a notável expansão do crédito proporcionou volume de capital para novas indústrias têxteis, sobretudo no Rio de Janeiro.

MELO, Hildete Pereira. A primeira crise. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 19 set. 2007. Disponível em: www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/a-primeira-crise. Acesso em: 30 dez. 2015.

LEGENDA: No final do século XIX a economia baiana exibia sinais de forte industrialização para o Brasil da época: havia 12 fábricas de tecidos no estado, todas em atividade. Na imagem, uma delas: a Companhia Progresso Industrial da Bahia. Foto do início do século XX.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Fim do complemento.

54

3. A construção da Constituição republicana

A eleição para a Assembleia Constituinte ocorreu em meio às turbulências na área econômica, no segundo semestre de 1890. A posse da Assembleia se deu em novembro.

Após três meses de discussão, a Assembleia aprovou uma Constituição de caráter liberal, inspirada na constituição estadunidense, demonstrando a força dos republicanistas liberais. No documento, percebe-se a valorização de alguns direitos individuais e a falta de mecanismos que pudessem promover igualdades sociais.

Leia alguns destaques da nova Constituição.

- Confirmação da instituição da república federativa, constituída por estados, que passaram a ter grande autonomia financeira, administrativa e jurídica. O texto determinava que os estados redigissem sua própria constituição e constituíssem sua própria força pública armada e instituições judiciárias. Também lhes era dado o direito de fazer empréstimos internacionais, de administrar os recursos provenientes de impostos sobre exportação da produção de seu estado e de cobrar impostos interestaduais, entre outros.

LEGENDA: A legenda diz "A Pátria recebe das mãos do governo republicano a sua Constituição política".

FONTE: Revista Illustrada/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.

Para saber mais

Boxe complementar:

Eleitores e eleitos para a Constituinte

As normas estabelecidas para qualificar os eleitores e os elegíveis para a Assembleia Constituinte foram determinadas ainda nos primeiros meses do Governo Provisório. Elas restringiam a participação política de grande parte da população, favorecendo, aproximadamente, apenas um por cento do total de brasileiros. Esse caráter restritivo não era unânime entre os republicanistas.

Para ser eleitor, o brasileiro deveria ler, escrever e ter mais que 21 anos. Mulheres e soldados de baixa patente - geralmente oriundos das camadas mais pobres da população - do Exército, da Armada e das polícias regionais estavam excluídos. Quanto aos analfabetos, somente aqueles que se cadastraram como eleitores durante a reforma eleitoral ocorrida em 1881 poderiam votar.

Um decreto de fevereiro de 1890 estabelecia que, para ser eleito, era obrigatório atender às condições de eleitor e ter a idade mínima requerida (28 anos para deputado e 35 para senador). O decreto proibia ainda a candidatura de clérigos e religiosos em geral, além de governadores, chefes de polícia, comandantes de armas e de magistrados que estivessem no exercício de seu cargo.

No total, foram eleitos 205 deputados e 63 senadores. Entre os eleitos, havia os republicanos convictos e aqueles que aderiram à causa após a Proclamação.

O historiador Elio Chaves Flores destaca que os políticos escolhidos para integrar a Assembleia Constituinte tinham um perfil claramente conservador, sobre o qual pairavam os ecos da escravidão, das desigualdades socioeconômicas e dúvidas quanto ao modelo de república; 128 deles eram bacharéis, muitos dos quais representantes das classes senhorial e proprietária de terras; 55 eram militares, oriundos dos centros urbanos e dos setores médios da população; 38 eram monarquistas convictos que haviam exercido cargos na Monarquia decaída.

Fim do complemento.

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- Instituição do regime presidencialista, com mandato de quatro anos, e instituição dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário independentes entre si.

- Instituição do voto direto para a escolha dos cargos do Executivo e do Legislativo, tanto no âmbito federal como no estadual.

- Quanto aos direitos políticos, a garantia de liberdade de associação, de reunião e o direito ao voto. Garantia-se, assim, o direito à opinião. Porém, sobre o direito ao voto, foram mantidas as mesmas restrições que vigoraram na escolha dos membros da Constituinte: apenas homens acima de 21 anos tinham direito ao voto; mulheres e analfabetos, incluindo aqueles que votaram para a Constituinte, não tinham direito ao voto.

- Garantia do direito à propriedade.

- Confirmação da liberdade de culto, da secularização dos cemitérios e do reconhecimento do casamento civil.

- Garantia de ensino laico nas escolas públicas.

Em nenhum artigo havia menção ao direito à educação, um dos requisitos defendidos pelos positivistas. Portanto, a Constituição não previa mecanismos para que a maioria da população alcançasse o direito ao voto. Ao restringir a participação política a uma pequena parcela da população masculina, garantia-se condições para que os interesses privados se sobrepusessem aos interesses coletivos, o que traía o espírito republicano.

Ao ser promulgada a Constituição, os membros da Assembleia Constituinte passaram a compor o Congresso Nacional. De acordo com as disposições transitórias da Constituição, o órgão se encarregaria de eleger o presidente e o vice-presidente. Também permitia que tais cargos fossem escolhidos separadamente.

A disputa se deu entre duas chapas. Uma delas encarnava a permanência da autoridade militar no comando da República: contava com o próprio marechal Deodoro da Fonseca como candidato à Presidência e o almirante Eduardo Wandenkolk como candidato à vice-presidência. A outra chapa era constituída pelo civil Prudente de Morais (1841-1902), cafeicultor paulista e um dos fundadores do Partido Republicano Paulista, como candidato à presidência, e pelo marechal Floriano Peixoto (1839-1895) a vice.

O resultado, no entanto, trouxe mais elementos de instabilidade para o país: Deodoro foi eleito para presidente, mas para vice venceu o candidato da chapa adversária, com o triplo de votos do candidato da chapa do presidente eleito.

Boxe complementar:

Floriano Vieira Peixoto

O primeiro vice-presidente do Brasil já manifestara simpatia por um governo de militares desde os eventos que indispuseram militares e o governo imperial. Peixoto foi responsável pelas tropas militares da corte e da província do Rio de Janeiro, no último gabinete do Império, chefiado pelo visconde de Ouro Preto. Todos os comandantes de armas das províncias também estavam subordinados a ele. Diante do envolvimento de vários oficiais no golpe do dia 15 de novembro, Floriano preferiu favorecer a queda da monarquia.

LEGENDA: Marechal Floriano Peixoto, óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva, sem data.

FONTE: Oscar Pereira da Silva/Museu Paulista da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.

Fim do complemento.

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4. A República por um fio... de espada

O mandato constitucional do presidente Deodoro da Fonseca vigorou de fevereiro até novembro de 1891, quando renunciou. Nesse período, vários ministros da Fazenda não conseguiram contornar os problemas econômicos desencadeados na crise do encilhamento, aprofundando a crise econômica do país. Além disso, a postura autoritária do presidente, com intervenções militares nos estados e o cerceamento da liberdade de imprensa, ampliou seu desgaste.

No Congresso, a condução do governo desagradava republicanistas liberais e parte dos positivistas. Isso reduziu o número de políticos que ainda o apoiavam. O vice-presidente, por sua vez, articulado com a bancada de republicanistas de São Paulo, mantinha-se afastado do presidente.

Em sua última cartada no poder, Deodoro decretou, no início de novembro de 1891, a dissolução do Congresso e a vigência de um estado de sítio. Essa situação lhe concedia poderes especiais para deportar seus opositores para regiões longínquas do território nacional. A resistência a tais medidas foi articulada por parlamentares, militares e parte da população urbana, com o apoio de Floriano Peixoto.

Glossário:

estado de sítio: medida extrema de restrição de liberdades e direitos individuais, decretado pelo chefe de Estado em casos de grave instabilidade institucional interna ou de guerra externa.

Fim do glossário.

Além de enfrentar uma greve de ferroviários, Deodoro viu a capital federal ficar sob a mira de canhões de navios da Marinha atracados na baía da Guanabara, numa clara oposição das tropas da Armada, liderada pelo almirante Custódio de Melo (1840-1902), episódio que ficou conhecido como primeira Revolta da Armada. Neste cenário de pressão, o presidente renunciou ao cargo em 23 de novembro. Com o apoio dos deputados e senadores, Floriano Peixoto, o vice-presidente, foi empossado, assumindo o compromisso de preservar a república federativa e de restabelecer a ordem constitucional.

O governo de Floriano Peixoto

O mandato de Floriano Peixoto durou de novembro de 1891 a novembro de 1894. Seu governo ficou marcado pela radicalização dos grupos partidários do novo governo e também de seus opositores, em meio ao agravamento das condições econômicas - que afetavam tanto a classe trabalhadora como os empresários.

LEGENDA: Proclamação da República, óleo sobre tela de Henrique Bernardelli, de 1892. Esta obra foi produzida sob encomenda. A pintura, uma homenagem a Deodoro da Fonseca, foi elaborada em uma época em que funcionários, presidentes de estado, equivalentes aos atuais governadores estaduais, e militares deodoristas estavam sendo perseguidos por não aceitarem a conduta do presidente Floriano diante dos acontecimentos que levaram à renúncia do seu antecessor. A obra representa Deodoro como protagonista da proclamação da República. Ao fundo, sobre cavalos, estão Benjamin Constant e Quintino Bocaiuva (à esquerda). Aristides Lobo pode ser observado à direita, em pé.

FONTE: Henrique Bernardelli/Acervo da Academia Militar das Agulhas Negras, Rio de Janeiro, RJ.

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Nesse tenso cenário, o presidente Floriano, com o apoio do Congresso, recorreu ao estado de sítio duas vezes e reprimiu manifestações e revoltas com rigor e violência. O fato de Deodoro e Floriano serem membros do Exército e exercerem seus mandatos de forma autoritária, principalmente ao enfrentar opositores, reforçou no imaginário brasileiro a denominação desse período como a República da Espada.

Logo de início, a legitimidade da posse de Floriano foi questionada por adversários civis e militares. Alegavam que a Constituição determinava novas eleições em casos de renúncia e de vacância do cargo de presidente, se ocorressem antes de completar dois anos de mandato. Floriano, por sua vez, defendia sua permanência no cargo com uma interpretação diferente dessa mesma lei. Ele alegava que a determinação constitucional se aplicava aos mandatários que tivessem sido escolhidos em eleições diretas e não - como era seu caso - eleitos indiretamente pelo Congresso.

A manifestação mais contundente contra Floriano ocorreu em abril de 1892, quando 13 militares do Exército e da Armada, em um manifesto, pediram seu afastamento e a realização de eleições. O presidente deteve os envolvidos e simpatizantes ao manifesto, incluindo jornalistas e escritores. Entre os detidos, estavam republicanos de longa data, como os escritores José do Patrocínio (1853-1905), Olavo Bilac (1865-1918) e o ex-ministro Eduardo Wandenkolk.

As revoltas Federalista e da Armada

Em fevereiro de 1893, um confronto armado de grandes proporções eclodiu no Rio Grande do Sul. Conhecido como Revolta Federalista, o confronto se alastrou para os estados de Santa Catarina e Paraná, tornando-se uma guerra civil. Sua origem é fruto de divergências ideológicas entre grupos da antiga oligarquia gaúcha que disputavam o poder. A revolta envolveu tropas do governo federal e exércitos privados arregimentados pelas forças adversárias da região.

Os federalistas - também conhecidos como maragatos - tiveram como líder Gaspar Silveira Martins (1835-1901). Martins nasceu na fronteira entre Rio Grande do Sul e Uruguai e foi ministro do Império e membro do Partido Liberal, que dominou o estado nos últimos anos da monarquia. Era contra o republicanismo positivista e a favor de uma república parlamentarista. Antigos colegas liberais monarquistas, como os generais João Nunes da Silva Tavares (1818-1906) e Gumercindo Saraiva (1852-1894), juntaram-se a ele. Para o confronto, muitos soldados foram arregimentados no Uruguai, onde as lideranças tinham contatos com grupos políticos que defendiam causas semelhantes naquele país.

LEGENDA: Grupo de maragatos, em 1893. Gumercindo Saraiva é o terceiro sentado, da esquerda para a direita.

FONTE: Autoria desconhecida/Biblioteca Nacional do Uruguai, Montevidéu.

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Do outro lado, posicionaram-se os republicanos positivistas - também conhecidos como pica-paus - liderados por Júlio de Castilhos (1860-1903), ex-presidente do Rio Grande do Sul. Castilhos foi fundador do Partido Republicano Rio-grandense e participou ativamente na elaboração da Constituição estadual e na implantação da república no estado. Essa Constituição estadual se caracterizava por uma forte tendência positivista e autoritária, centrada na figura do presidente.

Castilhos manifestou apoio a Deodoro da Fonseca no episódio do fechamento do Congresso. Depois disso, sob pressão, teve que renunciar ao governo do Rio Grande do Sul. A princípio, aquele apoio o afastara do marechal Floriano Peixoto. Porém, a presença de Gaspar Silveira Martins (1835-1901), um antigo monarquista na luta política, fez com que Floriano apoiasse militarmente Castilhos no decorrer do conflito. Ao lado de Júlio de Castilhos também se destacaram o senador republicanista Pinheiro Machado (1851-1915), e vários grupos populares que se organizaram em todo o estado.

A Revolta Federalista foi extremamente violenta, com um grande número de pessoas fuziladas e degoladas - por isso o confronto também é conhecido como Revolução da degola. A violência praticada por ambos os lados atingia tanto chefes políticos como partidários anônimos.

Outro aspecto que merece ser destacado no confronto é a grande mobilização de homens armados que atuaram até o início de 1895, além de tropas oficiais do Exército e da Armada. A formação de exércitos privados para resolver questões políticas era uma prática comum dos grandes proprietários rurais. Também chamados de coronéis, estes se apoiavam sobre uma extensa clientela, constituída de homens sem posses, que se colocavam à disposição em troca de contribuição financeira e material.

Glossário:



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Page 7


coronel: a mais alta patente da Guarda Nacional, milícia civil criada em 1831 e extinta em 1918.

Fim do glossário.

No segundo semestre de 1893, com a luta em andamento, o grupo dos federalistas contou com o apoio de parte das tropas da Armada brasileira, que novamente se rebelava contra o governo federal, chefiado por um membro do Exército.

Para alguns estudiosos, o confronto entre membros da Marinha e do Exército nestes anos iniciais da república revela um conflito de classes. Na época, a Marinha brasileira, com seus membros oriundos de famílias da aristocracia, era mais conservadora. Muitos de seus almirantes e membros de patentes mais altas eram monarquistas. O Exército, por sua vez, era composto de membros de diferentes camadas sociais, com pessoas vindas de extratos mais baixos da sociedade. Desde a década de 1880, abrigava membros com posicionamentos de caráter transformador.

A demissão do almirante Custódio de Melo (1840-1902), então ministro da Marinha, e a prisão do almirante Eduardo Wandenkolk, críticos e contrários a Floriano, provocaram uma reação da Armada. Em setembro, navios de guerra sob o comando de Custódio de Melo e do almirante Saldanha da Gama (1846-1895), foram posicionados na baía de Guanabara, com seus canhões apontados para a cidade do Rio de Janeiro, repetindo a estratégia de 1891 e dando origem à segunda Revolta da Armada. Dessa vez, os revoltosos defendiam novas eleições, com Custódio de Melo sendo considerado um candidato declarado à Presidência.

Leituras

Boxe complementar:

Leia abaixo um texto do historiador Renato Mocellin explicando os termos utilizados para designar os participantes da Revolta Federalista.

Maragatos x Pica-paus

Os federalistas receberam de seus inimigos o apelido de "maragatos". A origem do termo é controvertida. Porém, ao que tudo indica, a palavra originou-se no Uruguai, de onde partiu Gumercindo Saraiva, chefiando um grupo de uruguaios conhecidos como "maragatos", por serem descendentes de espanhóis vindos da região de La Maragatería. Os castilhistas passaram a usar o termo de forma pejorativa, identificando os federalistas como invasores estrangeiros e mercenários.

Aos castilhistas atribuiu-se o apelido de "pica-paus", pois usavam roupas azuis e quepe vermelho [daí a associação com o pássaro]. O símbolo dos "maragatos" era um lenço vermelho, enquanto o dos "pica-paus" era um lenço branco.

MOCELLIN, Renato. Federalista: a revolução da degola. São Paulo: Ed. do Brasil, 1989. p. 17.

Glossário:

castilhistas: partidários do governador Júlio de Castilhos, contra o qual lutavam os federalistas.

Fim do glossário.

Fim do complemento.

59

O marechal Floriano Peixoto resistiu à ameaça e decretou estado de sítio na cidade do Rio de Janeiro, suspendendo as liberdades civis e de imprensa. A capital federal foi bombardeada várias vezes ao longo do mês de setembro. Na imprensa, florianistas e opositores se enfrentavam. Um manifesto de Saldanha da Gama publicado em dezembro de 1893 ajudou a reforçar junto à população a ideia de que a Armada lutava pela restauração da monarquia no país.

A ofensiva rebelde se estendeu até março de 1894, quando a falta de água, alimentos e munição nas embarcações, além da ameaça de bombardeio vinda de navios de guerra estadunidenses, especialmente enviados a pedido de Floriano, levaram os revoltosos à rendição e à solicitação de asilo em dois navios portugueses. Parte dos revoltosos da Armada foi para o sul se juntar ao grupo de federalistas, continuando sua luta contra o governo federal. Alguns se juntaram aos federalistas que estavam em Desterro, capital de Santa Catarina, onde havia sido instituída uma república autônoma desde setembro de 1893.

LEGENDA: Portão de entrada da Fortaleza de São José, ilha das Cobras, no litoral carioca, em fins do século XIX. A construção foi danificada por bombardeios durante a segunda Revolta da Armada.

FONTE: Juan Gutierrez/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.

LEGENDA: O couraçado Aquidaban, em foto de 1893, aproximadamente. Esse era um dos quinze navios de guerra tomados pelo almirante Custódio de Melo, em 6 de setembro de 1893. O couraçado foi usado na defesa de Santa Catarina, quando a capital Desterro estava sob domínio das tropas rebeldes.

FONTE: Detroit Publishing Co/Biblioteca do Congresso, Washington, D.C., EUA.

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Ao longo de todo o ano de 1894, cresceu a ofensiva sobre as tropas federalistas. Nessa época, o governo federal contava também com navios estrangeiros, arrendados especialmente para este confronto.

Desterro foi retomada em abril e 180 federalistas foram fuzilados. O estado do Paraná, cuja capital Curitiba estava sob o domínio dos revoltosos, também foi retomado na mesma época. No conflito, militares e civis que lutaram ao lado dos revoltosos foram fuzilados. Entre os mortos, estavam membros da elite local e grandes proprietários de terras, alguns deles portadores de títulos de nobreza do império. O mesmo aconteceu no interior e no litoral do Rio Grande do Sul.

Os grupos também travaram uma luta simbólica, manipulando as narrativas divulgadas em jornais e em correspondências entre comandantes. O episódio de maior destaque desse embate simbólico ocorreu após vitória dos governistas em Desterro. Em outubro de 1894, por iniciativa da elite republicana local, a Assembleia Legislativa alterou o nome da cidade para Florianópolis, em homenagem ao presidente.

A vitória das tropas federais e castilhistas em 1895 fortaleceu o ideal republicanista positivista no Rio Grande do Sul. Ao reassumir o governo, Júlio de Castilhos manteve a mesma constituição autoritária e positivista que havia sido um ponto de discórdia com os federalistas. No âmbito federal, o jacobinismo florianista, revelado pelos batalhões constituídos de civis armados, preservou acesa a chama da participação direta da população na defesa da forma de governo.

Os batalhões de jacobinos florianistas

Durante seu governo, o marechal Floriano Peixoto desfrutou de elevada popularidade entre setores pobres dos centros urbanos, principalmente do Rio de Janeiro. Logo no início de seu mandato, articulado com a administração da capital federal, Floriano adotou medidas significativas para enfrentar o alto custo de vida.

O presidente também era popular entre oficiais de baixa patente e soldados do Exército. Essa popularidade aumentou principalmente depois que o marechal se posicionou contra Deodoro da Fonseca no episódio do fechamento do Congresso. Ao tomar posse e restabelecer a vigência da Constituição, Floriano dizia agir em nome dos cidadãos e de setores das Forças Armadas que defendiam a república.

LEGENDA: Charge de Angelo Agostini, publicada na capa da Revista Illustrada, edição 640, de março de 1892. A imagem original foi publicada acompanhada por uma legenda com os dizeres: "A Esfinge: resolva-me ou te devoro". Naquele contexto, o governo federal buscava meios de conter os gastos, ao mesmo tempo em que atendia aos anseios da burguesia. Ao longo desse ano e dos seguintes, para enfrentar os gastos com os conflitos relacionados à segunda Revolta da Armada e à falta de dinheiro no mercado interno, teve de emitir dinheiro, afetando a política monetária do país.

FONTE: Reprodução/Revista Illustrada, ano 16, n. 640, abr. 1892.

Durante a segunda Revolta da Armada, a propaganda governista em jornais e comícios estimulou civis a formarem batalhões armados e a atuarem ao lado do Exército e das forças públicas que apoiavam o governo. Esses agrupamentos civis eram conhecidos como batalhões patrióticos. Muitos desses voluntários se consideravam jacobinos florianistas, associando o ideal de luta popular ao apoio dado ao marechal.

No entanto, o governo não estimulou a dissolução dos batalhões no final da segunda Revolta da Armada. Manteve-os de prontidão para lutar contra os federalistas. Batalhões se deslocaram do Rio de Janeiro para os locais dos conflitos.

A desmobilização dos batalhões só aconteceu sob o governo de Prudente de Morais. Houve resistência a essa determinação. Alguns jacobinistas chegaram a tentar articular um golpe de Estado para destituir Prudente de Morais da presidência. Diante da dificuldade em efetivá-lo, o jacobinista florianista Deocleciano Martyr se envolveu em um atentando frustrado contra a vida do presidente, em 1897. Foi condenado à prisão e seu batalhão foi desativado. Aos poucos, todo o movimento sucumbiu.

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Leituras

Boxe complementar:

Jacobinos florianistas: de patrióticos a arruaceiros

A existência e o estímulo aos batalhões de voluntários não era unanimidade na sociedade brasileira. Segundo a historiadora Amanda Mussi Gomes, havia quem discordasse da militarização da população e do fortalecimento de grupos aliados ao que havia de mais radical em termos de posicionamento político.

[...] tratamento que os contemporâneos dispensavam aos jacobinos brasileiros não pode ser reputado apenas ao desconhecimento das diferenças entre estes e os seus precursores franceses. Tratava-se, antes, de desqualificar as ideias e estratégias de ação dos jacobinos na capital federal, através da sua associação simbólica a um modelo histórico considerado negativo porque radical, autoritário e fracassado.

[...] O vocábulo [jacobinos] era apropriado como sinonímia de "republicanos sinceros e leais" por parte dos agentes que tomavam para si a designação. Já os seus desafetos políticos mobilizavam a mesma forma lexical com as acepções de "exaltados", "arruaceiros", "desordeiros" e, no limite, "terroristas". [...] Em razão dos sentidos atribuídos ao vocábulo jacobinos, muitos combatentes e ex-combatentes voluntários buscaram inicialmente afastar de si a alcunha, pois não queriam ser definidos como "desordeiros", uma vez que se julgavam "mais moderados espíritos" [...].

GOMES, Amanda Mussi. Jacobinos: abordagem conceitual e performática. In: Cantareira. Revista eletrônica dos graduandos e pós-graduandos em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), v. 12a, 2008. Disponível em: www.historia.uff.br/cantareira/v3/wp-content/uploads/2013/05/e13a01.pdf. Acesso em: 5 jan. 2016.

Fim do complemento.

A oligarquia chega à Presidência

Demorou mais de vinte anos, desde a divulgação do Manifesto do Partido Republicano Paulista, em 1873, para que a elite agrária conseguisse assumir o governo federal. Isto se deu através do grupo paulista, que na época era responsável pela produção de café, principal produto de exportação do país.

A candidatura de um civil paulista foi acertada durante as revoltas da Armada e Federalista. O escolhido foi Prudente de Morais, para um pleito em que não houve adversários.

Com a eleição de Prudente de Morais, ascendia ao poder o ideal de uma república civil e liberal, em parte já garantida pela Constituição. No entanto, era preciso desmobilizar a população armada e desmilitarizar os cargos públicos e chefias de estados, além de conquistar o apoio dos oficiais do Exército e da Armada. Também coube à gestão de Prudente de Morais negociar o fim dos conflitos entre federalistas e castilhistas, no sul do país, o que exigiu de seu governo habilidade política para alcançar a paz e, ao mesmo tempo, neutralizar os oficiais florianistas.

A mudança de posicionamento do governo federal em relação à jovem oficialidade e, principalmente, aos jacobinistas dos batalhões patrióticos gerou a principal resistência ao mandato de Prudente de Morais. Entre 1895 e 1897, comícios e protestos nas ruas com grande adesão popular eram frequentes, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Sem o marechal Floriano Peixoto à frente do governo, os jacobinistas se posicionavam contra o mandato civil e a política antimilitar em curso. Ampliando o discurso crítico, protestavam também contra a alta do custo de vida e, num tom claramente nacionalista, recriminavam abertamente os portugueses que controlavam o pequeno comércio e as propriedades alugadas para classes populares.

Os ânimos da população se acirraram ainda mais em março de 1897, com a chegada da notícia ao Rio de Janeiro da terceira derrota das tropas do Exército contra o arraial de Canudos, no sertão da Bahia, e a morte do comandante das tropas, Moreira César (veremos os eventos em torno deste acontecimento no próximo capítulo). Para os moradores da capital federal, informados por órgãos elitistas e preconceituosos da imprensa, o arraial e seus moradores eram uma resistência monarquista que deveria ser destruída.

A perda de um líder militar florianista e o receio do retorno da monarquia motivaram os jacobinistas a armarem um atentado contra o presidente, que, como vimos, saiu ileso. A partir de então, a perseguição àqueles militares patrióticos intensificou-se, ajudando a diminuir a mobilização popular.

62

Após ter patrocinado a destruição do arraial e atuado para desmobilizar a força política que vinha das ruas, Prudente de Morais viabilizou sua sucessão, com a eleição de Campos Sales, que seria responsável pela consolidação da República oligárquica. Com Campos Sales, cujo mandato durou de 1898 a 1902, foram implantados mecanismos que fortaleciam o poder dos governadores e das lideranças políticas municipais e distritais, os já citados coronéis. Estes, mais próximos do dia a dia das comunidades, estavam diretamente ligados ao controle dos votos nas eleições.

Política dos governadores, coronelismo e o voto de cabresto

Na crença de que a direção de um processo político deveria ser conduzida por poucos, e que o Executivo era o mais importante dos três poderes, Campos Sales concebeu um arranjo político em que o presidente da República pudesse ter o apoio do Legislativo.

O arranjo ficou conhecido como Política dos governadores. Através de articulação política e reformas das leis eleitorais, Campos Sales instituiu uma ordenação pela qual os governadores se comprometiam a influenciar as eleições legislativas para garantir a escolha de candidatos alinhados aos interesses do Executivo federal. Em troca, não interferiria na condução dos assuntos da política estadual, abandonando as práticas de seus antecessores.

Como parte deste arranjo, Campos Sales apoiou alterações na forma com que os votos dados aos candidatos às cadeiras do legislativo federal eram validados. Validar votos era uma prerrogativa da Câmara dos Deputados, por meio de uma comissão específica denominada Comissão de Verificação de Poderes. Com a nova proposta, o controle da comissão passou a ser exercido por um nome político afinado com o presidente da República. Isso possibilitou a "degola", o não reconhecimento de adversários eleitos. Assim, buscava-se evitar surpresas ou objeções vindas de grupos de oposição que conseguiam se eleger em algumas localidades.

LEGENDA: O voto de cabresto retratado pelo traço do chargista Alfredo Storni. Revista Careta, Rio de Janeiro, 1927.

FONTE: Reprodução/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.

É importante ressaltar que tal arranjo político se apoiava na vigência do voto em aberto e na possibilidade de fraudes que dificilmente seriam averiguadas. O voto em aberto por si só fragilizava os eleitores. No momento da eleição, cada eleitor manifestava a sua opção diante dos mesários das seções eleitorais, responsáveis pelos registros em atas. Estes, por sua vez, eram escolhidos pelas Câmaras de Vereadores, sendo, portanto, comprometidos com os grupos dominantes locais.

Assim, registros de votos eram forjados, adulterados e eliminados nas atas de eleições de cada mesa. Ao serem encaminhadas para a Comissão de Verificação instalada na Câmara dos Deputados, os resultados registrados nas atas poderiam ser aceitos ou impugnados ("degola"), de acordo com o posicionamento político dos verificadores.

Com tais regras eleitorais, percebe-se que os municípios se tornaram espaços privilegiados do jogo político do período. Em diversas localidades do país, práticas de disputa e controle dos votos foram fortalecidos. Nesse cenário, os eleitores e os chamados coronéis eram protagonistas.

O prestígio dos coronéis junto à população tornou-se moeda de troca durante as eleições para presidente de estado, atual governador, e para prefeito. Na estrutura federativa criada pela Constituição, os coronéis dependiam das autoridades do estado para que recursos públicos fossem empregados em sua área de projeção, bem como para que atuassem no preenchimento dos cargos públicos locais. Nessas circunstâncias, os pactos entre os grupos políticos locais e os presidentes de estado eram inevitáveis.

Proprietários de terras, comerciantes e médicos que angariavam grande apoio popular também agiam para controlar os eleitores, mesmo que não tivessem o título de coronel. Esse controle era exercido por meio de práticas clientelistas, como a distribuição

Glossário:

clientelista: referente a clientelismo, uma prática política que consiste na troca de favores entre detentores de poder e eleitores.

Fim do glossário.

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de gêneros de primeira necessidade e dinheiro e promoção do desenvolvimento local em troca de apoio eleitoral. Essa forma de controle dos votos ficou conhecida como voto de cabresto.

Glossário:

gêneros de primeira necessidade: produtos considerados indispensáveis para a subsistência, como pão, leite, farinha e carne.

Fim do glossário.

Disputas entre coronéis da mesma localidade eram frequentes, seja pelo poder político local, seja pelas fontes de riqueza, como terras, minas e animais. A violência se disseminava com a formação das milícias armadas nas comunidades. A população em geral era envolvida nessas disputas, obrigada a se posicionar diante dos grupos para garantir sua sobrevivência. Ao longo da Primeira República, o governo federal interferiu em muitos estados, na tentativa de diminuir as tensões.

Esses mecanismos que possibilitavam tal cenário somente foram modificados após 1930. Tempo suficiente para que essas práticas políticas autoritárias se enraizassem na sociedade e adiassem a implantação de uma democracia abrangente e plena e de uma república efetivamente voltada para os interesses coletivos.

A economia na República oligárquica

Ao assumir a Presidência da República e ter o poder civil consolidado com a política dos governadores, as oligarquias do país passaram a dominar a maioria dos canais de exercício de poder, envolvendo as esferas federal, estadual e municipal. Porém, grupos oligárquicos, cujas bases estavam nos estados, eram maioria. E a importância entre eles variava de acordo com o tamanho da atividade econômica com a qual estavam envolvidos.

Na última década do século XIX e no início do século XX, ao mesmo tempo que havia uma forte e dinâmica atividade cafeeira, que se estendia entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, também despontava a exportação da borracha, extraída dos seringais da Floresta Amazônica, fortalecendo a burguesia comercial estabelecida no Amazonas e Pará. Havia, ainda, produções voltadas para o consumo interno do país, como a de gado, no estado do Rio Grande do Sul; mate, no Paraná; e algodão e açúcar em estados como Bahia, Pernambuco e Paraíba.

Todos esses interesses estavam representados no Congresso Nacional, onde havia também alguns defensores da atividade industrial.

Apesar disso, o peso da atividade cafeeira na economia dava mais poder de decisão às bancadas dos estados produtores de café, que eram as maiores. O setor que não estava presente no Congresso Nacional era o das classes trabalhadoras.

Nesse período, predominou na América Latina, e particularmente no Brasil, o investimento de capital inglês e, em menor quantidade, capital francês, alemão, belga e estadunidense. Esses recursos entraram com finalidades distintas, como empréstimos ao governo republicano, investimentos para a implantação da rede ferroviária, para a modernização dos portos e para melhoria de grandes centros urbanos, e em forma de equipamentos para indústrias surgidas desde o final do século XIX.

Para saber mais

Boxe complementar:

Política do café com leite

Na virada do século XIX para o século XX, os estados de Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Pernambuco eram os mais populosos do país, o que justificava um número maior de deputados nas respectivas bancadas da Câmara de Deputados. Desta forma, era significativo o peso da representação destes estados nas negociações e decisões políticas tomadas pelo Legislativo.

Além disso, os estados de São Paulo e Minas Gerais eram os maiores produtores de café, seguidos pelo Rio de Janeiro. Tal posição econômica ampliava o poder das bancadas paulista e mineira, que conseguiam impor seus próprios interesses, tanto no dia a dia do Congresso como na definição da candidatura para a Presidência do país, a cada quatro anos.

Essa influência sobre as demais bancadas durou quase toda a Primeira República. Nesse período, foram eleitos onze presidentes alinhados aos interesses de São Paulo e Minas Gerais, sendo seis paulistas e três mineiros. O termo "política do café com leite" era usado pela população para se referir à capacidade persuasiva das duas bancadas. O nome referia-se à produção de café do estado de São Paulo e à produção de leite do estado de Minas Gerais.

Fim do complemento.

64

A atividade cafeeira e os interesses nacionais

Ao longo de toda a Primeira República, o país se manteve dependente da atividade agrícola, especialmente da exportação de café, sua principal fonte de divisas.

No começo da última década do século XIX, a alta dos preços do café no mercado internacional provocou uma grande expansão dessa cultura. Outro importante fator para esse crescimento foi a grande oferta de crédito, que era utilizado no financiamento de novos cafezais e no desenvolvimento das estradas de ferro, necessárias para transportar os grãos da zona rural aos portos.

Nessa época, São Paulo tinha uma elevada arrecadação de impostos sobre a exportação de seu principal produto. Isso possibilitava ao governo paulista subsidiar, por exemplo, a política de imigração, destinando recursos para o transporte de trabalhadores do porto de Santos, por onde chegavam, até as fazendas no interior.

LEGENDA: Mulheres trabalham em cafezal no interior de São Paulo. Foto do início do século XX. A formação de um cafezal era uma fase custosa para o proprietário de terra, pois demorava aproximadamente de cinco a seis anos até que a plantação produzisse grãos em quantidade e qualidade suficientes para resultar em uma boa colheita.

FONTE: ullstein bild/Getty Images

Entre 1896 e 1897, Estados Unidos e Europa, os principais importadores do café brasileiro, passavam por uma recessão que afetou diretamente a exportação do produto. A oferta se tornou abundante para um mercado reduzido, o que fez com que o preço do café caísse.

Com a diminuição na exportação, a quantidade de dinheiro estrangeiro que entrava no país também caiu. Esse dinheiro estrangeiro pagava a importação de gêneros alimentícios utilizados no abastecimento de grandes cidades, máquinas para as indústrias que se formavam e dívidas contraídas com bancos estrangeiros. E, com a queda nas importações, diminuía a arrecadação do governo federal, cuja principal receita vinha de impostos sobre estas transações.

Por volta de 1898, o Brasil estava à beira de um colapso financeiro. Além das dificuldades com as exportações e importações, ainda havia problemas decorrentes da política monetária do início da década.

Com elevada dívida externa e grandes gastos governamentais, o governo federal recorreu aos credores internacionais para negociar um novo empréstimo. Devido ao elevado valor, de aproximadamente 10 milhões de libras esterlinas, foi dada como garantia a renda obtida pelo Brasil em todas as alfândegas existentes no país. Além disso, o governo brasileiro também se comprometeu a não tomar novos empréstimos por quatro anos e a reduzir a quantidade de papel-moeda em circulação. O acordo em questão, conhecido pela expressão em inglês funding loan, foi fechado nos últimos meses do governo de Prudente de Morais, com o consentimento de Campos Sales, o sucessor eleito.

Ao tomar posse, o novo presidente implantou as medidas acordadas, reduziu os gastos governamentais, diminuiu os recursos para obras públicas e aumentou os impostos, principalmente sobre os produtos de consumo. No conjunto, as medidas reduziram a inflação e também a atividade produtiva no país, gerando uma recessão. No entanto, as medidas também ajudaram a aliviar as contas do país, ao adiar o pagamento das dívidas e restringir a capacidade de importações, diminuindo os gastos em moeda estrangeira.

Glossário:



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recessão: redução da atividade econômica com queda da produção e elevação do desemprego.

Fim do glossário.

Por mais que a elevação de impostos e a queda da atividade econômica tenham atingido quase todas as classes sociais do país, os mais humildes eram os mais afetados, tanto nos centros urbanos como na zona rural.

65

Entre 1898 e 1904, o pagamento pela saca do café caiu de 90 mil-réis para 60 mil-réis e, pela colheita, de 680 mil-réis para 450 mil-réis. Os salários urbanos eram mais baixos: em 1900 uma lavadeira recebia por volta de mil-réis diários e os subalternos da Diretoria Geral da Saúde Pública, aproximadamente 75 mil-réis mensais. A situação dos marinheiros era extremamente crítica: em 1910 uma primeira classe (a mais alta hierarquia da categoria), com todas as gratificações, recebia aproximadamente 15 mil-réis mensais. [...] [No] Rio de Janeiro e São Paulo, a crise habitacional era crônica e os aluguéis, exorbitantes.

ARIAS NETO, José Miguel. Primeira República: economia cafeeira, urbanização e industrialização. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil republicano. Volume 1: O tempo do liberalismo excludente: da proclamação da república à revolução de 1930. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 215.

Durante o governo do presidente Rodrigues Alves, entre 1902 e 1906, os preços do café no mercado internacional continuavam a cair, consequência da crescente produção não acompanhada do aumento do consumo. Os produtores e governadores dos três estados produtores (SP, MG, RJ) se mobilizaram, então, para criar mecanismos que valorizassem o café. Reunidos em 1906 na cidade paulista de Taubaté, assinaram um acordo que ficou conhecido como Convênio de Taubaté.

O acordo definia um plano de ação com os seguintes termos:

- compra e estocagem do café excedente pelo Estado. A medida visava regular a oferta do produto para elevar o preço da saca do café a níveis desejáveis;

- negociação de empréstimos externos para custear a compra e a estocagem;

- arrecadação de porcentagem sobre cada saca exportada para o pagamento do empréstimo;

- criação, por parte do governo federal, de mecanismos que pudessem manter o câmbio desvalorizado;

- imposição de taxas sobre novas plantações;

- investimento em propaganda no exterior para aumentar o consumo de café.

LEGENDA: Interior de oficina de seleção e ensacamento de grãos de café, em Santos, São Paulo. Foto do início do século XX. Inicialmente, esta atividade era realizada por prestadores de serviços autônomos, em oficinas com equipamentos movidos a energia elétrica. No início do século XX, ela passou a ser executada pelas próprias casas exportadoras, o que aumentou o seu poder de controle sobre a comercialização.

FONTE: The Granger Collection/Glow Images

Para saber mais

Boxe complementar:

Financistas e comerciantes controlam os lucros da cafeicultura

A participação de empresas ou bancos estrangeiros no comércio de exportação do café brasileiro remonta aos anos 1870. Nessa época, o telégrafo permitia aos comerciantes estrangeiros instalados no Brasil acompanhar as oscilações do mercado europeu e estadunidense antes de negociar o preço do café no mercado nacional.

Cabia às empresas estrangeiras adquirir o café dos fazendeiros e colocá-lo no mercado internacional, adiantando, às vezes, recursos para que a fazenda e seu proprietário mantivessem suas atividades. Até o início do século XX, essa etapa contava com a participação de agentes intermediários chamados comissários. Esses agentes repassavam empréstimos de bancos nacionais aos fazendeiros, que empregavam o dinheiro nas atividades de cultivo. Em troca, recebiam a produção, que era preparada para a exportação (os melhores grãos eram selecionados e ensacados, um trabalho realizado por terceiros) e repassada a um comerciante exportador, mediante uma comissão sobre o valor da venda.

No entanto, com a crise econômica dos primeiros anos da República, grande parte dos bancos nacionais e comissários faliram. No auge da crise do preço do café, no início dos anos 1900, muitos fazendeiros procuraram as casas exportadoras para negociar diretamente a entrega da produção.

Fim do complemento.

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A proposta não recebeu o apoio do presidente Rodrigues Alves, que considerava a política de desvalorização monetária inadequada. Porém, obteve a aceitação do novo presidente eleito, Afonso Pena, empossado ainda em 1906 e que governou até 1909.

As medidas desejadas pelo convênio foram adotadas e o principal objetivo foi alcançado: entre 1906 e 1913, o preço do café ficou em patamares rentáveis, garantindo grandes lucros, que foram distribuídos de forma desigual entre fazendeiros e agentes estrangeiros.

Quando o programa de valorização do café foi instituído, em 1906, os grupos estrangeiros estavam em melhores condições para comprar a produção e retê-la por longos períodos, adiantando aos produtores os ganhos que poderiam obter quando liberassem os estoques. Como controlavam a liberação para conseguir o melhor preço, eram eles que acumulavam a maior porcentagem dos lucros obtidos com a cafeicultura.

O sucesso da valorização do café manteve o setor em expansão, apesar de os termos acordados em Taubaté e aprovados no Congresso instituírem mecanismos de redução da produção que não foram cumpridos. Em outras fases de superprodução de café, governos dos estados produtores aproveitaram-se do alinhamento político com presidentes e com bancadas no Congresso e implantaram dois outros programas de valorização, em 1917-1918 e entre 1921-1923. A fim de manter elevada a renda do cafeicultor, a partir de 1924 foi instituído um programa permanente de valorização. Isso durou até a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929.

Riqueza para ostentar e modernizar

Durante o período em que vigorou a política de valorização do café, as importações brasileiras aumentaram consideravelmente, favorecidas pela entrada de capitais provenientes da cafeicultura e da exportação da borracha.

Desde os últimos anos da década de 1890, parte significativa das divisas foi usada não somente para pagar juros e compromissos internacionais e para importar bens de consumo, como alimentos, utensílios, tecidos, mas também para ampliar os investimentos em ferrovias, portos e em melhorias nas grandes cidades. Outro setor amplamente beneficiado pela entrada de capitais foi o industrial, que analisaremos mais à frente.

Com os lucros obtidos, no início do século XX, alguns fazendeiros construíram palacetes destinados à moradia em áreas urbanizadas, onde era possível levar uma vida social distinta dos hábitos rurais e ostentar seu poder financeiro e seu status social. Assim, a má distribuição de riqueza tornava-se visível.

Nesta mesma época, cidades como Campinas e Ribeirão Preto, próximas da próspera zona cafeeira paulista, receberam melhorias urbanísticas: grandes edifícios, teatros e mansões foram construídos, seguindo tendências arquitetônicas europeias.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, a área mais antiga e central manteve-se como espaço destinado a serviços, bancos e comércio. Os fazendeiros se instalaram em mansões localizadas em novos bairros cortados por ruas e avenidas largas e iluminadas, longe de onde a população mais pobre vivia.

LEGENDA: Interior do Palácio da Liberdade, que já foi residência oficial e sede do governo estadual de Minas Gerais, Belo Horizonte. Destaque para a ornamentação art nouveau. Foto de 2011.

FONTE: IEPHA/MG

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Em Minas Gerais, para demarcar a era de prosperidade econômica e modernidade, a elite local determinou, em 1893, que o antigo arraial denominado Curral del Rei passaria a sediar a capital do estado. Em 1897, após quatro anos de obras, o arraial ganhou a feição de uma cidade moderna, Belo Horizonte, a primeira totalmente planejada em nosso país. A nova capital contava com edifícios públicos para sediar as repartições e ruas iluminadas com lâmpadas elétricas, sem nenhum vestígio das antigas construções. A população que habitava o arraial antes das obras ficou sem lugar nesse projeto modernizador. Acabou sendo deslocada para além dos limites que demarcavam o perímetro da nova capital, em locais sem as benfeitorias que caracterizavam os bairros recém -construídos.

A cidade do Rio de Janeiro também passou por grande transformação, principalmente na região portuária, local de entrada das mercadorias e dos visitantes. O local era ocupado por velhos casarões degradados, onde a numerosa população pobre vivia em condições sanitárias precárias. Para as autoridades, a região era uma ameaça permanente à saúde e à segurança.

O presidente Rodrigues Alves promoveu uma grande reforma, englobando o porto e seu entorno, ampliando a sua capacidade de embarque e desembarque, e transformando a região em local de passeio para as classes mais abastadas. Investiu, ainda, em uma ampla ação sanitarista a fim de livrar a cidade de focos de difteria, varíola e febre amarela.

Como resultado, os antigos casarões foram demolidos - processo conhecido como "bota-abaixo" - e a população pobre foi deslocada, sob muito protesto e resistência, pois não era indenizada nem recebia um local alternativo de moradia. Essa população acabou se instalando nas encostas dos morros no entorno da região, de forma mais precária ainda. O autoritarismo do poder público, apoiado pelas elites e intelectuais, resultou na imposição de um novo padrão urbanístico que passou a conviver com as favelas que então se formaram (você estudará sobre isso nos próximos capítulos).

LEGENDA: Início das obras para a construção da avenida Central, na cidade do Rio de Janeiro, início de 1904.

FONTE: Autoria desconhecida/Coleção particular

LEGENDA: Avenida Central em fins de 1905, na cidade do Rio de Janeiro.

FONTE: Torres/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.

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Leituras

Boxe complementar:

Os significados da avenida Central

O escritor Lima Barreto registrou suas impressões sobre a região da avenida Central em seus cadernos pessoais, quase um ano antes de sua inauguração. Sua visão é crítica e nada entusiasmada. Leia o trecho a seguir.

Ontem, ao sair da secretaria, passei pela rua do Ouvidor e não vi a Palhares. Acho-a curiosa por causa do mestiçamento que nela há, disfarçado pelos cuidados meticulosos da toilette: perfumes, pomadas, pós, etc. Isso aborreceu-me mais do que estava aborrecido e na botica tive sono. Saí e tomei um bonde e fui à Prainha. A rua está outra, não a conheci bem. Se os prédios fossem mais altos, eu me acreditaria em outra cidade. Estive na esquina dela com a avenida, a famosa avenida das indenizações, subi-a a pé, tomei pelo que resta de beco da rua da Prainha, agora em alargamento, e segui pela rua Larga de São Joaquim, prolongada e alargada até o Largo de Santa Rita. A rua quebra um pouco do primitivo alinhamento, mas mesmo assim ficará bela. Entretanto, como vêm já de boa administração essas modificações, acredito que o Rio, o meu tolerante Rio, bom e relaxado, belo e sujo, esquisito e harmônico, o meu Rio vai perder, se não lhe vier em troca um grande surto industrial e comercial; com ruas largas e sem ele, será uma aldeia pretensiosa de galante e distinta, como é o tal de São Paulo.

BARRETO, Lima. Diário íntimo. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000066.pdf. Acesso em: 23 mar. 2016.

A partir de artigos da imprensa da época, o historiador Nicolau Sevcenko constatou que, desde a sua inauguração em 1905, a nova avenida Central, na cidade do Rio de Janeiro, foi palco para o desfile de novos hábitos, trajes e comportamentos que reproduziam padrões europeus. A larga avenida foi aberta para facilitar o acesso ao porto e tornou-se um local de passeio para as classes mais ricas do período.

[...] As revistas mundanas e os colunistas sociais da grande imprensa incitavam a população afluente para o desfile de modas na grande passarela da avenida, os rapazes no rigor smart dos trajes ingleses, as damas exibindo as últimas extravagâncias dos tecidos, cortes e chapéus franceses. A atmosfera cosmopolita que desceu sobre a cidade renovada era tal que, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, as pessoas ao se cruzarem no grande bulevar não se cumprimentavam mais à brasileira, mas se repetiam uns aos outros: "Vive la France!". Como corolário, as pessoas que não pudessem se trajar decentemente, o que implicava, para os homens, calçados, meias, calças, camisa, colarinho, casaco e chapéu, tinham seu acesso proibido ao centro da cidade. Mais que isso, nas imediações, as tradicionais festas e hábitos populares, congregando gentes dos arrabaldes, foram reprimidos e mesmo o Carnaval tolerado não seria mais o do entrudo, dos blocos, das máscaras e dos sambas populares, mas os dos corsos de carros abertos, das batalhas de flores e dos pierrôs e colombinas bem-comportados, típicos do Carnaval de Veneza, tal como era imitado em Paris.

Glossário:

smart: elegante, em inglês.

Fim do glossário.

[...]

SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcia da ordem e ilusões do progresso. In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil. Volume 3: República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 26-27.

Fim do complemento.

A industrialização se acelera com os lucros da cafeicultura

A boa fase da economia cafeeira acabou favorecendo também o desenvolvimento da atividade industrial no país.

A estabilidade dos lucros permitiu ao setor cafeeiro a manutenção do incentivo à imigração europeia nos estados produtores e a ampliação das estradas de ferro. Isso favoreceu o aumento populacional, o desenvolvimento de novos núcleos urbanos ao redor das estações ferroviárias e a interligação de áreas que antes ficavam afastadas e isoladas.

Muitos dos milhares de imigrantes vindos para o Brasil a partir dos anos 1880 se estabeleceram em cidades, principalmente do Sul e do Sudeste, e não em fazendas.

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Isso provocou um aumento na mão de obra disponível para outras atividades produtivas e um crescimento do mercado de gêneros de primeira necessidade.

Entre 1889 e 1896 já havia ocorrido um surto de crescimento industrial, decorrente das medidas de Rui Barbosa que favoreceram este setor. Nessa época, grandes fábricas de tecidos de algodão foram implantadas na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão. Em outras regiões do Nordeste e do Sudeste, surgiram também indústrias de sacaria, tecidos de lã e fósforos.

A partir de 1906, num período de altos lucros do setor cafeeiro, fazendeiros, empresários do comércio exportador e alguns bancos buscaram diversificar os investimentos. Desse modo, eles passaram a investir no setor industrial, importando equipamentos para geração de energia e maquinário. A tabela a seguir mostra o crescimento do número de indústrias no Brasil entre 1907 e 1920:


Número de indústrias no Brasil

Ano

Nº de empresas

Nº de operários
1907 3 258 149 018
1920 13 336 275 512

Fonte: SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. 8. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1995. p. 72.

Em geral, eram indústrias de dois tipos: as que transformavam alguns produtos naturais para serem exportados, como as de refinação de açúcar ou de beneficiamento do algodão, e aquelas que produziam mercadorias para consumo do dia a dia das populações de baixa renda, como tecidos baratos, chapéus, bebidas, etc. Capital também era investido na construção de pequenas hidrelétricas e linhas de transmissão de energia para alimentar as fábricas.

Como não havia uma rede de transporte que cobrisse todo o território nacional, a produção industrial se concentrou em regiões de maior povoamento e onde o sistema ferroviário estava presente, como Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Ceará.

Apesar do crescimento industrial no Brasil, até a década de 1930 as oligarquias agrárias, principalmente a cafeeira, tinham grande poder de decisão no âmbito federal e estadual. Portanto, não houve incentivos para a industrialização no país. Os poucos congressistas entusiastas da industrialização frequentemente reclamavam dos altos impostos sobre a importação de maquinário, numa época em que elas não eram produzidas no país, e da falta de restrições à importação de mercadorias que concorriam com as nacionais ou que poderiam ser fabricadas aqui.

A falta de produção de máquinas transformou-se num grande impasse para a indústria nacional entre 1914 e 1919. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a importação de mercadorias e máquinas diminuiu. O conflito também criou a possibilidade de as indústrias brasileiras ampliarem a produção para substituir a importação em queda, mas os empresários esbarravam nas dificuldades para importar as máquinas necessárias para isso.

Mesmo assim, a atividade industrial se expandiu ao longo da Primeira República. As fábricas ajudavam a transformar o cenário físico e social dos locais onde se instalavam. Nos arredores das fábricas, a população aumentava e, consequentemente, novas demandas surgiram: moradias, escolas, vias de circulação, redes de abastecimento, espaços de passeio e diversão, atendimento médico e instituições capazes de garantir o convívio e a segurança das pessoas. O aumento do número de operários nas fábricas trouxe, ainda, uma ampliação do número de associações sindicais que se mobilizaram na luta por melhores condições de salário e de trabalho, assunto que trataremos no Capítulo 7.

LEGENDA: Operárias em fábrica de tecidos na cidade de Uruguaiana, Rio Grande do Sul. Foto de 1916.

FONTE: Autoria desconhecida/Arquivo da editora

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A borracha também teve seu valor

Os anos iniciais da República também foram marcados pela valorização da borracha no mercado internacional, o que favoreceu de forma excepcional a produção de látex que já existia na Amazônia. Nessa época, aquela era a única região no mundo onde se encontrava a seringueira Hevea brasiliensis, da qual se extraía uma matéria-prima de melhor qualidade.

A partir dos anos 1830, as aplicações da borracha foram ampliadas com a descoberta da vulcanização, nome dado ao processo químico que aumentava sua resistência e durabilidade. Quando o processo foi aprimorado, no início dos anos 1900, a borracha passou a ser amplamente utilizada na fabricação de pneus para a indústria de automóveis, que estava em crescimento. O Brasil foi o principal fornecedor do produto para a indústria europeia por aproximadamente seis décadas. No entanto, a extração de látex no interior da floresta Amazônica era feita de maneira rudimentar. Mesmo no período de maior exportação e lucros, entre 1880 e 1910, época em que o país chegou a atender, aproximadamente, 75% da demanda internacional, as técnicas empregadas eram as mesmas utilizadas pelos indígenas de tempos anteriores.

Como a mão de obra local era insuficiente para atender a grande demanda pelo produto, os governos dos estados produtores de borracha investiram em propaganda e subsídios para estimular a vinda de brasileiros de outros estados para aumentar a capacidade de produção. A região recebeu muitos trabalhadores, principalmente do nordeste, onde a estiagem e as dificuldades da economia exportadora em crise estimulavam a migração. Milhares de nordestinos adentraram a floresta, geralmente trabalhando para os seringalistas, os proprietários dos seringais. O trabalho nos seringais garantia aos proprietários a posse de extensos lotes de terras em plena floresta, obtidos graças ao apoio financeiro de casas exportadoras e aos privilégios obtidos junto às autoridades do Estado.

Boxe complementar:

Tratado de Petrópolis

A penetração de nordestinos em larga escala pela Amazônia os levou a ocupar regiões pertencentes à Bolívia, gerando uma crise diplomática. Para resolver a questão, o Barão do Rio Branco e autoridades bolivianas firmaram um acordo que foi assinado em Petrópolis, em 1903. Na negociação, acertou-se a posse brasileira do território do atual Acre e a cessão de um território brasileiro que facilitasse aos bolivianos o acesso a afluentes do rio Amazonas para, assim, alcançarem o Atlântico.

Fim do complemento.

Os seringueiros trabalhavam em jornadas de até 16 horas, concentradas principalmente entre maio e novembro, época de poucas chuvas. Eles coletavam o látex das árvores e, no final do dia, o defumavam, para coagulá-lo e torná-lo vendável. Esse produto final era entregue ao dono do seringal que, por sua vez, o levava a estabelecimentos comerciais localizados em Manaus e em Belém, responsáveis pela exportação. A Inglaterra era o principal destino da borracha. De lá, era distribuída para outras praças da Europa e para os Estados Unidos.

LEGENDA: Seringueiro extraindo látex em foto de 1910, aproximadamente.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

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No auge da lucratividade, grupos estrangeiros interessaram-se pela atividade e logo se fizeram presentes no processo de extração. Como ocorria com a cafeicultura, os comerciantes adiantavam recursos aos donos dos seringais, que se comprometiam a entregar-lhes toda a produção. Os seringalistas, por sua vez, exigiam dos seringueiros elevada quantidade de látex coagulado, forçando-os a jornadas extenuantes e a relações de trabalho violentas que, muitas vezes, assemelhavam-se à escravidão.

Os donos dos seringais e empresários do comércio ficavam com a maior parte dos lucros. Viviam luxuosamente em Manaus ou Belém e atuavam como se a atividade seringalista fosse algo inextinguível, em razão, especialmente, da grandeza da floresta. Poucos esforços foram feitos nesse período para proteger a atividade da concorrência internacional. No entanto, por volta de 1913, as experiências do governo inglês de adaptar a seringueira brasileira em colônias do continente asiático começaram a se mostrar economicamente viáveis. Logo, os primeiros carregamentos de borracha provenientes de seringais asiáticos chegaram ao mercado europeu.

Aos poucos, os investidores ingleses foram abandonando as atividades no Amazonas para participar da produção no Ceilão e em Cingapura. Os holandeses logo começaram a produzir borracha nas colônias da Malásia, de Bornéu e de Java. Nestes locais, as empresas que até então se dedicavam a financiar a atividade passaram a participar também da produção, desde o cultivo até a coagulação, além de cuidarem do transporte e da comercialização na Europa e nos Estados Unidos. A produção nessas regiões logo se tornou bem mais lucrativa do que a produção no Brasil, onde predominavam técnicas primitivas e condições que impediam uma produção maior.

No começo da década de 1910, o governo federal tentou valorizar e racionalizar a produção de borracha. A iniciativa contou com o apoio de produtores e governantes dos estados do Norte. No entanto, os poucos projetos que surgiram não mobilizaram esforços financeiros suficientes para atender às necessidades de uma atividade que entrava em rápida decadência.

A importância da borracha no volume total de exportações brasileiras ajuda a entender essa situação. Entre 1890 e 1910, a borracha nunca representou mais de 28% do total de produtos exportados pelo país. No mesmo período, o café representava, em média, mais de 60%. À medida que a borracha perdia posição no mercado internacional, o café, por sua vez, atingia elevados preços graças às medidas de valorização do produto que estavam sendo adotadas. Neste cenário, as elites agrárias do Sudeste se fizeram refratárias a qualquer atividade que afetasse os ganhos e os interesses da principal economia do país.



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Para saber mais

Boxe complementar:

A urbanização às margens da floresta

Da mesma forma que a elite cafeeira, os fabricantes e comerciantes da borracha também ostentaram sua riqueza e seu status social. No início do século XX, especialmente em Belém e em Manaus, donos de seringais se instalavam em palacetes luxuosos, frequentavam teatros, circulavam por grandes avenidas iluminadas com energia elétrica e servidas por bondes.

Como a atividade gerava elevadas somas de dividendos para a receita dos estados, as elites políticas também apoiaram as mudanças urbanas e o embelezamento dessas cidades. As reformas trouxeram para as margens da floresta tropical um pouco do estilo urbanístico e estético europeu.

Em Manaus, por exemplo, bondes elétricos, distribuição de água encanada para as casas da população mais rica e serviço de telefonia foram implantados no final do século XIX, época em que foi inaugurado o Teatro Amazonas. O porto, por onde escoava parte considerável da produção de borracha, foi construído entre 1902 e 1907. A construção contava com um cais flutuante que acompanha o nível de água do rio Negro, permitindo receber embarcações nos períodos de seca e de cheia. As estruturas de ferro utilizadas no prédio da Alfândega, no Mercado Municipal e no reservatório de água que abastecia a cidade, construções da primeira década do século XX, também eram inglesas.

Em Belém, além do Teatro da Paz, de 1878, destacam-se vários palacetes que pertenceram a ricos comerciantes e à elite política local, como o Palacete Bolonha, de 1905, e o Palacete Augusto Montenegro, que serviu de residência e sede do governo do estado entre 1903 e 1909."

Fim do complemento.

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Boxe complementar:

Vivendo naquele tempo

Mulheres imigrantes: construir a vida na América

O papel das mulheres imigrantes foi fundamental para a estabilidade de novas relações sociais que se constituíam em território estrangeiro, especialmente em áreas urbanas como São Paulo.

Cabia às mulheres as atividades domésticas tradicionais, como lavar roupas, cozinhar, limpar a casa, cuidar dos filhos e de todo o funcionamento do cotidiano da família. Mesmo as mulheres que arrumavam emprego no setor fabril não podiam abandonar suas responsabilidades domésticas, ainda que pudessem contar com a ajuda do marido e dos filhos.

Como muitas famílias eram de origem rural, elas reproduziam parte dos seus conhecimentos e práticas no espaço urbano, cultivando hortas e criando pequenos animais, como galinhas e porcos. Assim, muitas mulheres ainda produziam hortaliças, cuidavam da criação de animais e vendiam o excedente para ampliar a renda da família. Era bastante comum que mulheres conduzissem carrinhos de mão pelas ruas da cidade, oferecendo seus produtos de porta em porta.

As mulheres também eram as principais responsáveis pela construção de elos sociais e redes de solidariedade entre vizinhos e, particularmente, entre "patrícios", isto é, imigrantes de mesma origem. Desde o momento em que a família se estabelecia em determinado bairro, cabia às mulheres encontrar os melhores lugares para fazer compras, estabelecer contatos amistosos, encontrar apoio e ajuda na criação dos filhos, enfim, descobrir como "se virar" numa cidade diferente e nem sempre hospitaleira.

Além disso, elas também mantinham vivas as tradições familiares e as práticas culturais de origem. Essas tradições e práticas podiam ser observadas tanto na vida cotidiana, como no preparo dos alimentos e na manutenção dos pequenos gestos religiosos, quanto na vida em comunidade, na organização de festas na vizinhança, em casamentos ou em comemorações religiosas. Também participaram ativamente da vida política através de organizações sindicais de tradição anarquista, como mostra o boxe Mulheres anarquistas em São Paulo (p. 93).

Mesmo em uma sociedade de forte tradição patriarcal, onde os espaços de poder e participação feminina eram controlados e restritos, as mulheres ocuparam funções essenciais ao estabelecimento de milhões de imigrantes que atravessaram o Atlântico em busca de uma vida melhor.

LEGENDA: Homens, mulheres e crianças imigrantes em São Paulo, cerca de 1890.

FONTE: Gaensly & Lindemann/Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento, São Paulo, SP.

Fim do complemento.

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Atividades

Retome

1. Pesquise num dicionário os diversos significados das palavras "província" e "estado". Identifique, em seguida, aqueles que se relacionam com o tema deste capítulo. Qual é a relação entre a transformação de províncias em estados e o estabelecimento de uma república federativa no Brasil?

2. Em outubro de 1894, Desterro, capital do estado de Santa Catarina, assistiu ao desfecho sanguinário de um conflito armado.

a) Identifique os dois lados em confronto e explique por que eles se encontravam naquele estado.

b) Por que cada um desses grupos lutava?

c) Qual é a relação entre o desfecho dos confrontos e a mudança do nome da cidade para Florianópolis?

3. Nos últimos anos do século XIX, o Brasil assistiu à formação dos batalhões patrióticos.

a) O que eram esses grupos?

b) Quando e por quem foram formados?

c) Quando e por que os batalhões passaram a ser perseguidos e desestruturados?

4. Durante a República oligárquica, as elites agrárias manipulavam as eleições para se manter no poder.

a) Cite dois instrumentos utilizados nessa manipulação e explique seu funcionamento.

b) De que modo presidentes, governadores e chefes políticos locais (coronéis) se auxiliavam mutuamente nesse processo?

5. Explique o que era a política do café com leite.

6. Na historiografia brasileira, as medidas tomadas no Convênio de Taubaté ficaram conhecidas como um mecanismo de "privatização dos lucros e socialização dos prejuízos". Explique por quê.

7. Durante o governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca e ao longo da República oligárquica, as indústrias brasileiras receberam incentivos, ainda que tímidos, do Estado.

a) De que maneira o ministro Rui Barbosa incentivou a produção industrial no Brasil? Quais foram as consequências das medidas adotadas por ele?

b) Escreva um texto relacionando a expansão da cafeicultura com o desenvolvimento das indústrias no Sudeste do país.

Pratique

8. Um mesmo evento histórico pode ser narrado de diferentes maneiras, de acordo com o ponto de vista e os interesses do narrador. Pinturas históricas são narrativas visuais de acontecimentos considerados importantes. Observe a tela de Oscar Pereira da Silva, apresentada na página 51. Depois, observe a tela Proclamação da República, de Benedito Calixto, reproduzida abaixo.

LEGENDA: Óleo sobre tela de Benedito Calixto, Proclamação da República, 1893.

FONTE: Benedito Calixto/Acervo da Pinacoteca Municipal de São Paulo, SP.

Agora, faça o que se pede.

a) Compare as duas imagens, considerando a representação do espaço, das pessoas presentes na cena e dos protagonistas do evento.

b) Descreva as pessoas que aparecem na parte inferior da tela de Oscar Pereira da Silva (cor, idade, sexo, origem social). Que ator político elas representam? Como elas se relacionam com a cena do centro da imagem?

c) Alguns dias após a proclamação da República, o republicano Aristides Lobo mostrou-se desapontado com a maneira como o novo regime foi estabelecido. Ele escreveu:

Por ora a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. [...] O povo assistiu bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada.

Diário Popular, São Paulo, 18 nov. 1889.

As imagens de Oscar Pereira da Silva e Benedito Calixto concordam ou discordam do texto de Aristides Lobo?

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9. Observe a charge abaixo, publicada na revista carioca Careta no mês de janeiro de 1909.

FONTE: Revista Careta/ Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.

Agora, faça o que se pede.

a) Que práticas eleitorais típicas da Primeira República são representadas na charge?

b) Com base no que você estudou no capítulo, levante hipóteses para explicar por que o candidato, apesar dos esforços, não venceu as eleições.

c) É possível afirmar que o candidato em questão é um coronel? Justifique sua resposta.

d) Aponte semelhanças e diferenças entre o processo eleitoral da República oligárquica e o processo eleitoral que ocorre no Brasil na atualidade.

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Analise uma fonte primária

10. Leia com atenção a carta a seguir. Ela foi publicada pelo industrial brasileiro Jorge Street no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1912.

Um estudo, mesmo rápido, relativamente a isenções concedidas a artigos importados que passaram pela Alfândega do Rio de Janeiro, revela incontinente quão injusto fostes para com os industriais vossos patriotas, especialmente para com os que se dedicam à fabricação de artigos manufaturados para consumo. [...] É claro que o capital estrangeiro merece todo o apoio e garantia quando vem ao Brasil em procura de normal aplicação, porém, igual tratamento e maior incentivo deve receber o capital brasileiro. Assim prestigiado o esforço nacional, não se teria a lamentar a frequente desnacionalização de empresas que, nascidas brasileiras, podiam e deviam continuar realmente nacionais. A indústria fabril brasileira tem direito a essa justiça. Ela compõe, realmente, uma enorme parte da riqueza do país; é um grande patrimônio que, aos filhos desta terra, cabe corajosa e francamente defender, porque esse patrimônio traduz uma força econômica genuinamente brasileira, porque os capitais que formaram e servem à indústria fabril do país estão em mãos brasileiras.

Jorge Street, Carta aberta ao ilustre deputado Dr. Homero Batista. Jornal do Comércio, 11 dez. 1912.

Glossário:

incontinente: sem demora.

Fim do glossário.

Agora, faça o que se pede:

a) Qual medida é criticada por Jorge Street? Quem seria prejudicado por ela? Por quê?

b) Releia atentamente o texto "A industrialização se acelera com os lucros da cafeicultura", na página 68. Com base nele, explique a frase sublinhada na carta de Jorge Street.

c) Que medidas são defendidas por Street em sua carta?

d) O que o industrial acredita que poderia ser evitado com as medidas que ele defende?

Articule passado e presente

11. O fragmento a seguir foi extraído de uma entrevista do professor de Geografia Urbana Alvaro Ferreira (Uerj). Leia-o e, em seguida, responda às questões.

A gentrificação, hoje percebida de forma intensa no centro do RJ, em especial a zona portuária, está presente na história da cidade. [...]

De fato, esse processo não é novo. [...] Cabe, aqui, fazer um breve esclarecimento acerca da expressão gentrificação, que nasce do termo inglês gentrification, cunhado por Ruth Glass (em 1963) para esclarecer o repovoamento, por famílias de classe média, que vinha acontecendo em bairros desvalorizados de Londres na década de 1960, levando à transformação do perfil dos moradores. Atualmente, usa-se gentrificação para falar da "revitalização", da "recuperação" ou da "requalificação" (seja lá qual for a expressão usada) de locais degradados a partir de iniciativas públicas e privadas. A questão é que após o investimento em infraestrutura, há uma maior valorização do lugar; assim, observamos que os antigos moradores não resistem ao encarecimento do local, tendo que buscar outra área com custo de vida mais baixo. Se, inicialmente, a gentrificação ligava-se ao mercado residencial, o enobrecimento dos lugares acabou incorporando áreas de lazer com complexos culturais voltados também para o turismo. Assim, o geógrafo belga Mathieu Van Criekingen (2007) define dois tipos de gentrificação - residencial e de consumo - que levam à produção glamurizada do espaço através da maior sofisticação dos ambientes. A mídia exerce importante papel ao promover esses locais, ajudando a criar um discurso hegemônico acerca do lugar, que contribui cada vez mais para a atração de consumidores.

História, natureza e espaço, v. 3, n. 1, 2014 (on-line). Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/niesbf/article/view/19545/0. Acesso em: 24 mar. 2016.

a) O que é gentrificação? Quais são os objetivos de seus agentes e que efeitos ela traz para a população?

b) A palavra gentrificação deriva do inglês gentry (nobre). Que outra palavra derivada dessa mesma raiz o entrevistado usa para se referir a esse processo?

c) O entrevistado afirma que "esse processo [de gentrificação] não é novo". Com base no conteúdo do capítulo, aponte semelhanças e diferenças entre as reformas urbanas ocorridas no Rio de Janeiro durante a Primeira República e o atual processo de gentrificação discutido pelo autor.

d) Quais são os tipos de gentrificação mencionados pelo entrevistado? O Projeto Nova Luz, apresentado na abertura deste capítulo, se enquadrava em algum desses tipos? Justifique sua resposta.

e) A gentrificação contradiz a noção de administração republicana, que deveria zelar pela coisa pública?

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CAPÍTULO 4: Brasil: por fora da ordem oligárquica

LEGENDA: Imobilizados por faixas de interdição, estudantes de escola estadual paulista sendo presos protestam na Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, durante protesto contra um projeto de reorganização escolar contra um projeto de reorganização escolar promovido pelo governo estadual. O projeto previa a transferência de muitos promovido pelo governo estadual. O projeto previa a transferência de muitos alunos para escolas distantes de alunos para escolas distantes de seus endereços residenciais. seus endereços residenciais. São Paulo, 2015. São Paulo, 2015.

FONTE: Bruno Santos/Folhapress

Ao longo dos anos 1920, os opositores da ordem oligárquica costumavam dizer que o governo brasileiro tratava a questão social como "caso de polícia". Passados quase cem anos, é possível afirmar que os movimentos sociais que reivindicam direitos no Brasil são tratados pelo Estado de acordo com os direitos dos cidadãos estabelecidos pela Constituição em vigor?

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1. República para quem?

A ordem política implantada a partir da proclamação da República no Brasil revelou o caráter elitista daqueles que tomaram o poder e passaram a exercê-lo.

O direito ao voto praticamente exclusivo aos homens alfabetizados, conforme definido na Constituição de 1891, era um exemplo desse elitismo. Outro era a Política dos Governadores, arranjo político criado a partir de 1898 pelo governo Campos Sales. Com ela, o poder das oligarquias nos Estados foi reforçado, revigorando antigas relações de dependência e coerção entre proprietários de terras e trabalhadores, letrados e iletrados, elegíveis e eleitores.

A manutenção dos latifúndios como fonte de poder econômico e político, as práticas trabalhistas que se assemelhavam à escravidão e o elevado número de analfabetos na sociedade reforçaram a desigualdade entre as elites e a maioria da população. A situação era ainda mais acentuada nas regiões interioranas distantes dos grandes centros.

A modernidade e o progresso propagados pelos republicanistas não chegaram à grande maioria dos brasileiros. Vamos estudar neste capítulo algumas manifestações de caráter popular que ocorreram tanto nas cidades como nos sertões do país. A população brasileira não assistiu aos acontecimentos de maneira "bestializada", como teria ocorrido no dia da proclamação da República, na visão de Aristides Lobo (veja o texto no capítulo anterior).

LEGENDA: Largo do Machado, estação da Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico. Ao fundo, as palmeiras do jardim do Palácio do Catete. Evidências da modernidade na cidade do Rio de Janeiro em foto de 1906.

FONTE: Augusto Malta/Acervo George Ermakoff

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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2. Sertanejos: os casos de Canudos, de Contestado e de Juazeiro

Para além das grandes cidades litorâneas que se desenvolveram desde os tempos da colonização, o interior do Brasil era, no final do século XIX, um vasto território cuja população recebia pouca atenção por parte das elites. Predominava entre intelectuais e classes dirigentes a valorização da Europa e dos europeus, tidos como estágio superior da civilização. Inversamente, prevalecia o desprezo pelas tradições e pela formação étnica do nosso povo, derivadas da interação entre africanos, afrodescendentes, indígenas e europeus.

A diversidade cultural se manifestava de diferentes formas, adaptadas às condições naturais de cada região. Assim, eram variados os hábitos alimentares, as formas de moradia, as relações com a natureza, as práticas religiosas. O sincretismo cultural era intenso e revelava a identidade das populações dos vários sertões brasileiros.

Glossário:

sincretismo : mistura, fusão de diferentes vertentes culturais.

Fim do glossário.

Em três eventos específicos, parcelas dessa população interiorana enfrentaram as forças sociais que desrespeitavam seus direitos. Essas populações estavam unidas pela identidade socioeconômica, por uma religiosidade própria e pelo fato de estarem sujeitas à violência e ao preconceito. Esse cenário revelava o distanciamento existente entre essas populações e a república implantada.

Antônio Conselheiro e a resistência de Canudos (1896-1897)

O interior do país vivia em condições muito diferentes daquelas das grandes cidades litorâneas e constituía um terreno fértil para o surgimento de líderes messiânicos. Eles não eram clérigos oficiais. Seus ensinamentos combinavam tradições católicas com crenças populares, caracterizando uma religiosidade peculiar, identificada por alguns estudiosos como catolicismo rústico.

Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro (1830-1897), foi um desses pregadores. Atuou no sertão dos estados da Bahia, Sergipe, Pernambuco e Ceará. Ele pregava sermões, conduzia rezas e mobilizava comunidades para a construção de igrejas e reformas de cemitérios. A denominação de conselheiro nasceu dos conselhos que dava aos seus seguidores, geralmente homens e mulheres pobres, trabalhadores de latifúndios, que viviam numa região castigada por longos períodos de seca.

Por volta de 1882, as andanças e pregações do beato foram proibidas pelo arcebispo da Bahia, que seguia orientações vindas da Igreja para reprimir rituais e crenças que não fossem recomendados pela Santa Sé e controlar quem agia em nome dela. Passados cinco anos sem que a atuação de Antônio Conselheiro enfraquecesse, o arcebispo recorreu ao presidente da província.

As tensões se agravaram em 1893, quando Antônio Conselheiro e seus seguidores se rebelaram contra a cobrança de impostos pelas autoridades de Bom Conselho, município localizado no sertão baiano. Eles queimaram em praça pública os editais que regulavam os impostos e manifestaram-se contra a República. Tropas policiais baianas foram enviadas para conter a revolta e acabaram sendo derrotadas pelos sertanejos, o que intensificou a oposição de autoridades municipais, políticos e coronéis.

LEGENDA: Gravura de Antônio Conselheiro reproduzida em Breve notícia sobre o célebre fanático Antônio Conselheiro, panfleto publicado em Pernambuco em 1897.

FONTE: Detroit Publishing Co/Biblioteca do Congresso, Washington, DC, EUA.

Além das tropas de repressão, a oposição a Conselheiro e seus seguidores também contava com os jornais. Desse modo, o ponto de vista de quem fazia a repressão ao

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movimento era sempre divulgado. Nas páginas do jornal baiano Diário de Notícias, um correspondente que cobria os acontecimentos publicou o seguinte:

[...] não agradou-me, nem houve pessoas de senso que aprovasse o hábito dele [Antônio Conselheiro] nas suas práticas atacar a República e o próprio governo, se dizendo monarquista e a fazer elogios à família imperial, objeto que só deveria ser lembrado como uma recordação histórica.

[...]


Ora, bem se vê que dessa forma tornou-se um homem pernicioso, e em completa negação do que fora ensinado por Jesus Cristo, que sempre mandava que fossem respeitadas as leis humanas [...]

Faça ideia, meu caro, quem poderá em sua fazenda ou casa suportar, por um dia que seja, esse exército de malandros, vagabundos e até criminosos.

Diário de Notícias, 7 jun. 1893. Citado por NOVAIS FILHO, Joaquim Antonio. Antônio Conselheiro na mira da imprensa baiana (1876-1897). In: VIII Encontro Nacional de História da Mídia. Guarapuava - PR, 2011. p. 7. Disponível em: http://goo.gl/V8lBtb. Acesso em: 17 jan. 2016.

Ainda em 1893, Antônio Conselheiro e um numeroso grupo de seguidores se instalaram em uma fazenda abandonada, no sertão da Bahia, às margens do rio Vaza-Barris. Estava instalado o arraial de Canudos, como ficou conhecido o local para o qual afluiu enorme população sertaneja. Com aproximadamente 25 mil habitantes, Canudos foi uma das maiores comunidades do estado.

No arraial foram construídos escolas, armazéns, depósito de armas e igrejas. A terra era de todos e os moradores criavam animais e praticavam agricultura para a subsistência de todos. As casas eram pequenas, de pau a pique. Eventualmente, trocavam produtos com comunidades vizinhas e, quinzenalmente, contra as ordens do arcebispo, o arraial recebia a visita do vigário da localidade próxima, para ministrar missas e batizados. A convivência entre os habitantes da comunidade era pautada por uma moral rígida. Severas punições eram aplicadas em caso de furto e violência sexual.

Glossário:

pau a pique: técnica de construção que usa trama feita com ripas de madeira ou bambu entrelaçadas e barro.

Fim do glossário.

Para os conselheiristas, o arraial era a Terra Prometida, o lugar onde se salvariam dos problemas do mundo. Já para os proprietários rurais, aquela comunidade reduzia a oferta de mão de obra, pois muitos lavradores preferiam a vida em Canudos ao trabalho nas fazendas. O alto clero local, por sua vez, via-se incapaz de persuadir os moradores a abandonar a comunidade. Nem mesmo as forças políticas locais interferiam na vida de Canudos, fazendo do arraial um núcleo à parte de uma realidade marcada pelo coronelismo e pelo latifúndio.

A existência de Canudos desagradava a elite, mas faltava um pretexto para sua eliminação. Em 1896, conselheiristas compraram, em Juazeiro, madeira para a construção de uma igreja no arraial. Mesmo tendo sido paga antecipadamente, a mercadoria não foi entregue pelos comerciantes, que seguiam instruções das autoridades locais e do Estado. Os membros do arraial de Canudos se mobilizaram para retirar o material à força. Era o pretexto esperado. Sabendo da intenção dos conselheiristas, o prefeito de Juazeiro solicitou ao governador o envio de tropas para enfrentá-los. O clima se acirrou após um embate armado, do qual os sertanejos de Canudos saíram vitoriosos.

Ao longo de 1897, Antônio Conselheiro e seus seguidores enfrentaram mais três forças militares enviadas pelo governo local, com reforços de soldados de vários estados, comandantes e armamentos do Exército. Mesmo mal armados, a resistência dos sertanejos foi favorecida pelo conhecimento que tinham da região, o que facilitava seus deslocamentos, e de como lidar com o clima seco. No entanto, a fome e a sede ajudaram a enfraquecê-los diante das tropas oficiais.

LEGENDA: Vista parcial de Canudos e nascente do rio Vaza-Barris em foto de 1897. Arraial de Canudos, interior da Bahia.

FONTE: Flávio de Barros/Museu da República, Rio de Janeiro.




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LEGENDA: A última expedição reuniu homens de dezesseis estados, compondo uma força de aproximadamente 12 mil pessoas, incluindo médicos e engenheiros. Na foto, percebe-se a diferença de trajes, em virtude das diversas origens dos soldados.

FONTE: Flávio de Barros/Museu da República, Rio de Janeiro

O arraial foi derrotado em outubro de 1897, quando o quarto batalhão de soldados comandado pelo Exército cercou, bombardeou e incendiou a comunidade, matando quase toda a população. Antônio Conselheiro foi degolado e sua cabeça enviada para a Faculdade de Medicina da Bahia, a pedido da própria instituição, que acreditava que seu comportamento pudesse ser explicado por algum aspecto de seu cérebro. Os poucos sobreviventes do massacre renderam-se em condições precárias, famintos, feridos e assustados.

LEGENDA: Rendição de conselheiristas às tropas do Exército. Repare nos soldados ao fundo e nas expressões assustadas das mulheres e crianças que compunham o grupo. Foto de Flávio de Barros, autor das únicas imagens de Canudos.

FONTE: Flávio de Barros/Museu da República, Rio de Janeiro

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Para saber mais

Boxe complementar:

Os testemunhos de Canudos

São poucas as fontes existentes para estudar os eventos em torno do arraial de Canudos e de seu líder, Antônio Conselheiro.

O próprio beato deixou alguns manuscritos, entre sermões e discursos, que foram localizados sob os escombros do arraial. Dentre os discursos destaca-se um em que o motivo do ódio à República é explicado. Para Conselheiro, esta forma de governo era um "grande mal para o Brasil", pois era "opressora da Igreja e dos fiéis". Estudiosos consideram que esse trecho pode se referir à separação entre o Estado e a Igreja. No discurso, ainda condena a República por ter introduzido o casamento civil, tratando de um assunto que, a seu ver, era exclusivo da Igreja.

Outra fonte importante são as notícias e editoriais publicados em jornais baianos e sergipanos sobre a atuação de Conselheiro, ainda nos anos 1870 e 1880, e a cobertura jornalística das campanhas militares feita pelos periódicos regionais e das capitais do Sudeste. Vale destacar que a maioria dos jornais regionais era de pessoas ligadas a grupos políticos que disputavam o poder. Isso determinava o tom utilizado para descrever os acontecimentos, a fim de pressionar, elogiar ou criticar o governante diante dos fatos. Os textos dos jornais ajudaram as populações das capitais a formarem uma ideia do sertão e do seu povo e, assim, se posicionarem diante dos acontecimentos.

O texto a seguir foi publicado ainda na época do Império, em uma edição de novembro de 1874 do jornal sergipano O rabudo. Ele trata da crescente influência do beato no interior da Bahia.

Pedimos providências a respeito: seja esse homem capturado e levado à presença do Governo Imperial, a fim de prevenir os males que ainda não foram postos em prática [...]. Dizem que ele não teme a nada, e que estará a frente de suas ovelhas. Que audácia! O povo fanático sustenta que nele não tocarão; já tendo se dado casos de pegarem em armas para defendê-lo. Para qualquer lugar que ele se encaminha segue-o o povo em tropel, e em número fabuloso: acha-se agora em Rainha dos Anjos, da Província da Bahia, erigindo um Templo. (O rabudo 22 de novembro de 1874)

Citado por NOVAIS FILHO, Joaquim Antonio. Antonio Conselheiro na mira da imprensa baiana (1876-1897). In: VIII Encontro Nacional de História da Mídia. Guarapuava - PR, 2011. p. 3. Disponível em: http://goo.gl/V8lBtb. Acesso em: 17 jan. 2016.

LEGENDA: Em charge de Angelo Agostini, publicada em 1896 na Revista Illustrada, periódico republicano, Antônio Conselheiro é retratado de forma caricatural, com grupo de palhaços armados com velhas espingardas, tentando "barrar" a República.

FONTE: Angelo Agostini/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

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LEGENDA: Detalhe de foto feita pelo fotógrafo Flávio de Barros em que se vê parcialmente o arraial de Canudos.

FONTE: Flávio de Barros/Museu da República, Rio de Janeiro

Existem também os registros fotográficos feitos por Flávio de Barros, autor das únicas imagens do arraial e de seus moradores. Barros produziu essas fotografias enquanto acompanhava um dos batalhões do Exército, entre setembro e outubro de 1897. Nelas, é possível observar a aridez da região, as condições de moradia no arraial de Canudos, os diversos batalhões mobilizados na última ofensiva contra o arraial e a fisionomia dos sertanejos capturados pelos soldados. Algumas dessas fotos foram utilizadas ao longo deste capítulo.

No entanto, o testemunho mais importante foi escrito pelo engenheiro e jornalista Euclides da Cunha (1866-1909). Ele acompanhou a última expedição do Exército e a destruição do povoado enquanto trabalhava como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. Depois que seus relatos sobre o conflito foram publicados nas páginas do periódico, Euclides dedicou-se a escrever Os sertões, lançado em 1902.

Leia, no trecho a seguir, as considerações que ele faz sobre a postura que os republicanistas tinham em relação àquela comunidade. Repare, também, nos termos utilizados para qualificar Conselheiro e seus seguidores.

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimos; respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...

Glossário:

palejar: tornar-se pálido.

de chofre: de forma súbita.

transigir: chegar a acordo.

Fim do glossário.

E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de melhores causas, batemo-los a carga de baio - netas, reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras...

Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regime, capaz de derruir as instituições nascentes.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Fundação Biblioteca Nacional/ Departamento Nacional do Livro, p. 87. Disponível em: http://goo.gl/s1Q9P. Acesso em: 16 jan. 2016.

Glossário:

estrênuo: valente.

derruir: destruir, desmoronar.

Fim do glossário.

Fim do complemento.

83

Pelos testemunhos sobre Canudos, percebe-se que a existência do arraial e a ação de Antônio Conselheiro não eram estratégias para combater a República, por mais que não a apoiassem. Os sertanejos viviam na simplicidade que o meio, a cultura e as condições de vida lhes permitiam, seguindo uma crença própria que se pautava fortemente nos ensinamentos católicos. A existência do arraial, porém, foi vista como ameaça por diferentes grupos sociais. As páginas dos jornais fizeram com que a comunidade parecesse um foco de resistência monarquista e sinal de atraso cultural, portanto obstáculo para o progresso do país. O pouco que restou das construções do arraial foi encoberto pelas águas do açude Cocorobó, em 1969, no represamento do rio Vaza-Barris. Mesmo assim, as ruínas reaparecem nas épocas de longas secas, quando o nível de água do açude fica mais baixo.

Além de beatos como Antônio Conselheiro, no Sertão nordestino também existiram bandos armados na passagem do século XIX para o século XX. Conhecidos como cangaceiros, esses bandos participavam de disputas coronelistas regionais e saqueavam cidades e fazendas. João Calangro, que atuava no sertão do Ceará na primeira década republicana, e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, que atuou a partir dos anos 1920, são exemplos de cangaceiros.

LEGENDA: Ruínas da Igreja de Santo Antônio da antiga vila de Belo Monte, em Canudos Velho, interior da Bahia, em período de seca. Foto de 2013.

FONTE: Andre Dib/Pulsar Imagens

Revolta do Contestado (1912-1916)

No sul do país, a população sertaneja que vivia na fronteira entre os estados de Santa Catarina e Paraná também enfrentou tropas militares, no movimento conhecido como Revolta do Contestado. Essa população resistiu por muitos meses à violência promovida pelas oligarquias e pelo governo federal. No entanto, as características religiosas dessa população e os motivos para terem organizado a revolta eram bem diferentes dos manifestados no arraial de Canudos. O principal motivo da revolta foi a questão da posse e do uso de terras. Após a proclamação da República, as áreas desocupadas passaram a ser jurisdição do governo central. Parcelas dessas terras eram transferidas para os coronéis alinhados aos governadores, o que reforçava as alianças oligárquicas.

Naquela região, no entanto, parte das terras estava ocupada por posseiros, pequenos criadores de gado e lavradores que ali viviam livremente até a proclamação da República. Porém, com as transferências das terras para os coronéis, esses grupos passaram à condição de intrusos, sujeitos à perseguição de jagunços (enviados pelos próprios coronéis, que agora se viam na condição de proprietários).

No final do século XIX, as primeiras propriedades foram demarcadas em uma grande região de mata nativa localizada no oeste do atual estado de Santa Catarina. Essas terras eram ocupadas por sertanejos e algumas aldeias indígenas, e nelas se praticava a atividade extrativista de mate e a criação de gado, cuja produção era exportada para outros estados. No entanto, como a região não tinha limites definidos, ela se tornou foco de uma intensa disputa entre coronéis e chefes das oligarquias. Sua jurisdição era disputada pelos mandatários dos estados de Santa Catarina e Paraná, daí a denominação da revolta: Contestado.

Glossário:

mandatários: governantes, autoridades civis, militares e toda a burocracia que acomoda a ordem governamental estatal.

Fim do glossário.

A tensão se agravou nos anos iniciais do século XX, quando o governo brasileiro concedeu à Brazil Railway Company, do empresário estadunidense Percival Farquhar, uma vasta área para a construção da linha ferroviária que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul. No acordo, estipulou-se que a companhia se tornaria proprietária de 15 quilômetros de área ao lado de cada margem da ferrovia, sem considerar a população de indígenas e sertanejos que habitavam essas terras.

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A Guerra do Contestado (1912-1916)

FONTE: Adaptado de: MACHADO, Paulo Pinheiro. Tragédia anunciada. Revista de História. Rio de Janeiro, 1º out. 2012. Disponível em: http://goo.gl/LbFLcF. Acesso em: 8 fev. 2016; VALENTINI, Delmir José. Atividades da Brazil Railway Company no sul do Brasil: a instalação da Lumber e a Guerra na região do Contestado: 1906-1916. 2009. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - PUC-RS, p. 108. Disponível em: https://goo.gl/qBDkOq. Acesso em: 7 fev. 2016.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

As obras duraram de 1906 a 1910 e chegaram a em - pregar entre 4 mil e 8 mil trabalhadores, muitos deles recrutados em outros estados. Ao final dos trabalhos, foram demitidos e abandonados pela empresa. Sem fonte de renda e sem moradia, os ex-trabalhadores engrossavam a população sem-terra da região.

Em 1911, uma subsidiária da mesma empresa adquiriu outra extensa área de floresta de araucária, com o objetivo de exportar a madeira ali existente. Investindo em máquinas modernas e em novos ramais ferroviários para ligar a região ao porto, no litoral de Santa Catarina, a Southern Brazil Lumber and Colonization Company transformou-se na maior e mais produtiva serraria da América do Sul, arruinando a vida de pequenos serradores, posseiros e indígenas existentes na região.

No dia a dia da população rural, a formação de comunidades religiosas deu origem à liderança de monges, ou padres não beatificados pela Igreja, que rezavam pelos doentes, benziam o gado, casavam e batizavam as pessoas, sem serem membros da hierarquia da Igreja católica. Desde o final do século XIX ganhou fama o monge João Maria, tido como enviado por Deus e com poder de cura aos doentes, que atuava pelo interior do sul do Brasil.

LEGENDA: Operações de extração de madeira pela Southern Brazil Lumber and Colonization Company, na região de Três Barras, hoje estado de Santa Catarina. Foto do início do século XX.

FONTE: Coleção Kenney P. Funderburke/Forest History Society

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Quando desapareceu, em 1908, sem deixar vestígios, seus seguidores passaram a acreditar que ele retornaria a qualquer momento, de forma gloriosa e salvadora. Essa crença sebastianista da população local intensificou o caráter místico de João Maria.

Por volta de 1912, as dificuldades sociais e econômicas provocadas pelos empreendimentos estrangeiros se intensificaram na região. Nesse contexto, surgiu na região outro monge que se apresentava como sucessor de João Maria. Aos poucos, os habitantes da região passaram a considerá-lo um líder. Ex-soldado, desertor do Exército, utilizou seus conhecimentos para organizar seus seguidores e instituiu um grupo especial para treinar militarmente os sertanejos. Esse grupo era encarregado de liderar as rezas e administrar os rituais de devoção a José Maria. Com o tempo, pessoas em busca de proteção, como antigos posseiros, agora expulsos de suas terras, ex-trabalhadores das ferrovias e até criminosos refugiados no sertão, se juntaram ao grupo.

José Maria e seus seguidores inicialmente se estabeleceram em Taquaruçu, município localizado na região da área contestada, na porção catarinense. Os sertanejos assentaram-se sob a tutela do coronel Henrique de Almeida, inimigo do coronel Francisco Albuquerque, a quem a região estava subordinada oficialmente. Essa situação acirrou a disputa entre as forças políticas locais. Albuquerque acionou as forças militares do estado para dispersar o grupo, que se deslocou para um lugarejo próximo, situado no estado do Paraná.

Boxe complementar:

Sebastianismo

Crença no retorno de um líder capaz de salvar uma população de seus infortúnios. O termo surgiu no final do século XVI, quando dom Sebastião, o rei de Portugal, desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir, contra os árabes, em 1578, sem deixar rastros. Assim que Portugal foi submetido ao domínio espanhol, em 1580, espalhou-se entre a população a crença de que o rei reapareceria, reorganizaria o reino lusitano e salvaria os portugueses das dificuldades que viviam.

Fim do complemento.

No estado vizinho, uma força policial também foi mobilizada para dispersar os sertanejos. Ao longo dos quatro anos seguintes, ocorreu uma série de confrontos armados. Os seguidores de José Maria resistiram, mesmo após a morte de seu líder no primeiro combate contra a polícia do Paraná.

A população sertaneja acreditava que o conflito era uma guerra santa. Essa crença fez com que o número de revoltosos se ampliasse ao longo dos anos. Novos líderes assumiram o posto de José Maria, mantendo mobilizado um grande contingente de pessoas.

Os confrontos armados duraram até 1916. Cerca de 6 mil sertanejos perderam a vida em diversas batalhas. Muitos deles foram degolados pelas forças militares.

LEGENDA: Grupo de rebeldes, incluindo crianças, sendo preso durante a Guerra do Contestado. Data provável: entre 1912 e 1916.

FONTE: Claro Jansson/Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro, RJ.

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Os devotos de Juazeiro e padre Cícero (1889-1934)

O vilarejo de Juazeiro, no interior do Ceará, região marcada por longos períodos de seca, foi palco de outro episódio que mostra como o fervor religioso da população pode influenciar diversos acontecimentos.

O padre Cícero Romão Batista (1844-1934) atuava no vilarejo desde 1872, gozando de grande apreço e popularidade junto aos devotos. Segundo os devotos de padre Cícero, um milagre teria ocorrido em 1889, ano da proclamação da República e de intensa seca no sertão. Eles afirmavam que, em várias ocasiões, a hóstia teria se transformado em sangue no momento da comunhão, na boca da beata Maria de Araújo (1862-1914). O acontecimento foi negado pelas instituições eclesiásticas, que encararam o episódio como fruto de fanatismo e imaginação.

Glossário:

comunhão: na missa católica, a comunhão, ou eucaristia, é o momento em que se celebra a ressurreição de Cristo. Simbolicamente, o fiel recebe das mãos de um padre uma hóstia, pequena rodela feita de farinha de trigo e água, que representa o corpo de Cristo.

Fim do glossário.

Aos poucos, o caso foi atraindo a atenção de fiéis da região, o que aumentou o fluxo de romeiros à paróquia do padre Cícero. Eles acreditavam que o contato com os vestígios desse suposto milagre pudesse aliviar problemas do espírito e do corpo.

As divergências sobre a veracidade dos acontecimentos levaram o bispo a suspender a atuação do padre. Porém, os milagres já estavam consolidados na devoção popular.

As crescentes romarias para Juazeiro deram um novo dinamismo social e econômico à localidade. Para os fiéis, a negação do milagre e a condição de miséria da região representavam forças negativas que o padre Cícero deveria enfrentar. Mesmo suspenso de suas atividades, o padre atendia a todos dentro dos preceitos e valores do catolicismo, sem ministrar os sacramentos para os quais não estava autorizado.

Padre Cícero interferia junto aos fazendeiros e comerciantes da região para conseguir ajuda para os sertanejos. Introduziu o cultivo da maniçoba, da qual se extraía látex para a fabricação de borracha, colaborando para diversificar a fraca economia local. Ao longo dos anos 1900, seu poder de influência o tornou uma força política importante, levando-o a se envolver e se posicionar nos embates entre coronéis do vale do Cariri, onde Juazeiro se localiza.

Com a ajuda da população e de forças políticas locais, padre Cícero atuou de forma intensa na independência de Juazeiro em relação a Crato, da qual era subdistrito. Após a separação, padre Cícero foi nomeado o primeiro prefeito da cidade, em 1911.

Em 1914, Cícero apoiou as forças políticas locais na instituição de uma Assembleia Estadual em Juazeiro, paralela à oficial. O novo órgão fazia intensa oposição ao governo de Franco Rabelo (1851-1940).

O ato de rebeldia de padre Cícero se completou com a eleição de um governo não oficial, chefiado por Floro Bartolomeu (1876-1926), líder político de Juazeiro. Rabelo respondeu enviando uma ofensiva à cidade, composta de tropas policiais e cangaceiros. A população juazeirense recebeu a bênção do padre Cícero para defender a cidade. Após um mês de tensões, as forças de Juazeiro seguiram para Fortaleza, exigindo a renúncia do governador. A saída de Rabelo do governo do Ceará fortaleceu a projeção política de Bartolomeu e do padre.

Padre Cícero faleceu em 1934. Sua aceitação oficial pela Igreja católica estava longe de ser resolvida, mas a devoção a ele movimentava economicamente tanto a cidade de Juazeiro como o estado. Diferentemente do que ocorreu com os seguidores de Antônio Conselheiro

LEGENDA: Na imagem, o coronel Floro Bartolomeu e o padre Cícero. Foto sem data.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

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ou de José Maria, no Contestado, o alinhamento político de padre Cícero com as forças coronelistas do estado permitiu a perpetuação de um catolicismo próprio, que se assemelhava ao milenarismo. Os fiéis acreditavam que a cidade de Juazeiro era a Terra Santa onde Cristo reviveria para salvar a humanidade. Os supostos milagres ocorridos seriam o sinal desse retorno. Tal devoção, no entanto, foi mantida sob controle, servindo de apoio às elites políticas e latifundiárias.

Glossário:

milenarismo: doutrina religiosa que acreditava que Jesus Cristo retornaria à Terra no ano 1000 para dar início a um reinado que duraria mil anos.

Fim do glossário.

A literatura popular tem registrado frequentemente esses fatos da história religiosa do nordeste, como neste poema de Dias Gomes (1922-1999), citado por M. H. de Melo Santana:

Quem for para o Juazeiro

Vá com dor no coração

Visitar Nossa Senhora

E o padre Cícero Romão.

Que meu Padrim é um Santo

Isso tá mais que provado

Basta atentar nos milagres

Que ele tem realizado.

O primeiro foi ter feito

Em certa manhã pacata

Isso já faz tanto tempo

Nem me lembro bem a data

A hóstia virar sangue

Na boca de uma beata

SANTANA, Manoel Henrique de Melo. Padre Cícero do Juazeiro: condenação e exclusão eclesial à reabilitação histórica. Ufal, 2009. p. 32.

LEGENDA: Milhares de peregrinos visitam a estátua de padre Cícero em Juazeiro do Norte, Ceará. Foto de 2013.

FONTE: Levi Bianco/Brazil Photo Press/Agência France-Presse

Para saber mais

Boxe complementar:

Igreja católica: perdão a padre Cícero

A Igreja católica anunciou em dezembro de 2015 o perdão a padre Cícero, respondendo a uma solicitação feita em 2006 pelas autoridades eclesiásticas brasileiras. Muitos acreditam que tal decisão possibilita a canonização do padre e sua futura santificação, desejo dos milhares de devotos que o veneram no Brasil.

Na cidade de Juazeiro, hoje Juazeiro do Norte, romarias, festividades e rituais em homenagem a padre Cícero atraem aproximadamente 2,5 milhões de pessoas por ano, movimentando as atividades de serviços e de produção de adereços e lembranças e contribuindo para o incremento comercial.

Fim do complemento.

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3. Movimentos sociais urbanos

Nas primeiras décadas da República, perto de 70% da população brasileira vivia em áreas rurais. Nesse mesmo período houve um crescimento acentuado das cidades, decorrente de diversos fatores. Ainda na década de 1890, os impactos da abolição da escravidão ajudaram a deslocar parte dos ex-escravos para as regiões urbanizadas. Os longos períodos de seca no Sertão nordestino também provocaram grandes deslocamentos para a região da Amazônia, como já estudamos, e para as cidades.

Outro fator relevante nesse processo foi o crescimento da atividade industrial. À medida que novas fábricas eram instaladas, aumentava o número de ofertas de trabalho, atraindo trabalhadores nacionais e imigrantes. Entre 1890 e 1920, mais de 3,5 milhões de imigrantes entraram no Brasil. Além dos imigrantes europeus, em 1908 chegou a primeira leva de imigrantes japoneses.

Boa parte dos imigrantes chegava ao Brasil para trabalhar na lavoura. No entanto, muitos abandonavam as fazendas e se dirigiam às cidades, pelas condições precárias de trabalho e em razão de pagamentos incertos e irrisórios. Alguns imigrantes nem chegavam à área cafeeira, preferindo se instalar nas cidades, para trabalhar em oficinas e indústrias.

LEGENDA: O vapor japonês Kasato-Maru, que trouxe ao Brasil a primeira leva de imigrantes japoneses em 1908.

FONTE: Autoria desconhecida/Coleção particular

O crescimento urbano não se restringiu ao Rio de Janeiro, a capital federal, mas se deu também em cidades dos estados de São Paulo, Minas Gerais e, em menor quantidade, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

A diversidade de pessoas, origens e culturas gerava uma mescla de costumes e tradições que era malvista pelos administradores públicos, que acreditavam que a mestiçagem era um fator negativo para o desenvolvimento da população. Por sua vez, a instabilidade da economia brasileira provocava constantes aumentos nos preços dos alimentos e no custo da moradia e dos transportes, aprofundando a pobreza dos segmentos mais necessitados que viviam nas cidades.

A frequente ocorrência de delitos e brigas indicava a necessidade de policiamento mais ostensivo. Práticas de controle e disciplina baseadas em ideais raciais e higienistas foram instituídas, recaindo sobre a população de pobres, negros e estrangeiros. Nesse quadro, as elites oligárquicas decidiram pela modernização de suas principais cidades, sem considerar os interesses da maioria da população pobre. Foi o que aconteceu em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, como vimos no capítulo anterior. No mesmo ano da inauguração de Belo Horizonte, a capital planejada de Minas Gerais, ocorreu também o massacre de Canudos, o que expõe as intenções e visões das oligarquias republicanas.

Nesse contexto, os direitos sociais e políticos não faziam parte das medidas implantadas pelos primeiros governantes da República. Não havia políticas voltadas para atender às demandas da população nem canais para que ela pudesse ser representada politicamente. Assim, ocorreram diversos movimentos populares na República oligárquica que expressavam as tensões existentes na sociedade brasileira.

Estude a seguir dois eventos pontuais de destaque desse período (a Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata) e um movimento mais duradouro, de organização e mobilização de trabalhadores, que perdura até a atualidade: o movimento dos operários das fábricas e oficinas.




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A Revolta da Vacina (1904)

Em outubro de 1904, um grande número de pessoas ocupou as ruas da região central do Rio de Janeiro em repúdio à vacinação obrigatória. Essa medida foi instituída pelo poder público para combater a varíola e a febre amarela, doenças que, junto com a peste bubônica, a difteria e a tuberculose, assolavam a população da cidade e os estrangeiros que chegavam ao país pelo porto. Essas doenças tinham um impacto negativo para a economia e para imagem da cidade no exterior.

A vacinação obrigatória era parte de um projeto do médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), designado pelo presidente da República, Rodrigues Alves, para erradicar as doenças da capital federal. Além dele, também foram nomeados o engenheiro Lauro Müller (1863-1926), responsável pelas reformas no porto da cidade, e o urbanista Pereira Passos (1836-1913), encarregado da reurbanização da região central, que incluía a abertura da Avenida Central (ver Leituras, p. 68).

Os três concordavam em remover os moradores que habitavam a região próxima do porto, onde a Avenida Central seria aberta. Nessa região vivia uma população de pobres, famílias de ex-escravos e, ainda, migrantes vindos de lavouras decadentes, muitos dos quais trabalhadores ligados às atividades portuárias. Moravam em casebres e antigos casarões degradados transformados em cortiços, vivendo em condições precárias. Para os reformadores, essa população e suas moradias eram empecilhos para a segurança, para a qualidade sanitária e para a ordem pública da cidade, justificando, assim, seu desalojamento e demolição das construções que habitavam. Os moradores da região afetada pela reforma não foram indenizados nem realocados em outros endereços.

A multidão desalojada se instalou nas encostas dos morros ao redor do centro da cidade, bem como nos cortiços e hotéis baratos localizados fora da área desapropriada, vivendo em condições ainda mais insalubres. A reação da Administração da Saúde da cidade foi promover a vacinação de toda a população. A ação contou com batalhões de agentes de saúde, acompanhados de força policial, que visitavam as novas moradias e albergues. Se encontrassem riscos sanitários, os agentes estavam autorizados a exigir a desocupação e, eventualmente, solicitar a demolição do imóvel, sem nenhuma oferta de ajuda aos moradores.

Isso desencadeou um processo de resistência dos desalojados contra agentes e policiais. A população ocupou a área em reforma, usando o material das obras para se armar e se proteger, e resistiu ao ataque por dez dias. As forças oficiais contaram com o apoio de soldados do Exército e das forças policiais dos estados de Minas Gerais e São Paulo.

Durante a revolta, a imprensa noticiava algumas consequências do conflito: o fechamento de estabelecimentos, a interrupção do trânsito, depredação de bondes, edifícios e lampiões. As forças oficiais foram autorizadas a prender quem não conseguisse comprovar residência e empregos permanentes, o que atingia grande parte da população pobre da cidade. Quase a metade dos 945 detidos tinha antecedentes criminais e, por isso, foram deportados para a Amazônia. Houve ainda 23 mortos e vários feridos.

Outros segmentos sociais de oposição ao presidente, como monarquistas e republicanistas jacobinistas, aproveitaram-se da revolta popular e participaram do movimento. A violenta reação da população foi vista pelas autoridades e elites como uma manifestação da ignorância popular, que não enxergava os benefícios da ciência e do progresso na cidade. Para eles, assemelhava-se à resistência de Canudos e, por isso, parecia um foco contra a república, devendo ser reprimida.

Em nome da moral e da segurança pública, a população negra e pobre já estava proibida, naqueles anos iniciais de 1900, de realizar nas ruas rituais religiosos e se manifestar com cantorias, batuques, danças e capoeira. O desalojamento e a vacinação obrigatória ampliaram ainda mais seu descontentamento. A luta empreendida pelos revoltosos não reivindicava maior participação nas decisões do governo. Contudo, era uma forma de se fazer ouvir diante do autoritarismo do Estado, uma expressão de resistência de uma população sofrida que percebia que não estava sendo integrada ao projeto modernizador.

LEGENDA: Charge de autoria de Bambino mostrando uma figura que se assemelha a um imperador romano representando a obrigatoriedade da vacina diante de um homem que simboliza o povo em situação de humilhação. Publicada na capa da Revista da Semana, ano V, n. 229, de 1904.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

90

A Revolta da Chibata (1910)

Em 22 de novembro de 1910, um fato ocorrido no Brasil ganhou as primeiras páginas da imprensa do país e do exterior: aproximadamente 2 mil marinheiros tomaram o controle de três encouraçados e um cruzador da Marinha brasileira, em plena baía de Guanabara.

Glossário:

encouraçado: navio de guerra, de grande porte, guarnecido de canhões e protegido por uma couraça de aço.

cruzador: navio de guerra, menor que o encouraçado e com boa mobilidade.

Fim do glossário.

A rebelião, liderada por João Cândido Felisberto (1880-1969), apelidado de Almirante Negro, estava sendo planejada havia algum tempo. O movimento foi inspirado na luta de marujos britânicos, ocorrida em 1909, contra os maus-tratos a que também estavam submetidos, e na revolta a bordo do encouraçado russo Potemkin, ocorrida em 1905.

Os marinheiros brasileiros protestavam contra as péssimas condições de alojamento e de alimentação, mas, principalmente, contra a vigência de um antigo regimento disciplinar que autorizava que fossem castigados com a chibata. Essa punição podia ser empregada até mesmo em casos de infrações leves. A situação dos marinheiros brasileiros, em plena República, lembrava as condições de vida e de trabalho dos tempos da escravidão: a grande maioria deles era de homens negros e pobres e seus comandantes eram oficiais brancos.

No dia seguinte à tomada das embarcações, um pedido pelo fim dos castigos físicos e pela anistia aos marinheiros rebelados foi encaminhado ao presidente da República. Os revoltosos ameaçavam bombardear a capital federal caso o pedido não fosse atendido. O governo, o Congresso e a Marinha discordavam sobre o que fazer. Para muitos, como o episódio representava uma quebra da hierarquia da corporação, os marinheiros envolvidos deveriam ser punidos. Diante da demora de uma decisão, os marinheiros bombardearam algumas instalações da Armada e o Palácio do Catete, o que apressou a aceitação das exigências pelo governo. Os navios foram entregues no dia 27 de novembro, pondo fim à rebelião.

No entanto, dois dias depois alguns marinheiros que participaram da revolta foram expulsos da corporação. Em resposta, os marinheiros se rebelaram novamente, desta vez na ilha das Cobras. O comando da Marinha agiu rapidamente, bombardeando a fortaleza e matando boa parte dos amotinados. Quase todos os sobreviventes ao bombardeio foram aprisionados e torturados. Os poucos que resistiram à tortura foram levados para o Acre. Muitos deles foram fuzilados no caminho.

João Cândido foi um dos poucos sobreviventes. Expulso da Marinha, passou a viver em condições de penúria até o fim da vida, em 1969.

LEGENDA: Marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata são escoltados para a prisão. Foto de 1910.

FONTE: Reprodução/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.

91

Para saber mais

Boxe complementar:

Em memória ao Almirante Negro

A luta de João Cândido e dos demais marinheiros ficou esquecida por muitos anos, apesar dos esforços ocorridos nas décadas de 1930 e de 1960 para resgatar esse episódio, quando um livro e alguns poucos artigos jornalísticos trataram do assunto.

Em meio à ditadura civil-militar iniciada em 1964, um filme sobre a Revolta da Chibata começou a ser produzido. Alguns depoimentos chegaram a ser filmados, mas foram logo abandonados após a intensificação da repressão. Nos anos 1970, Aldir Blanc e João Bosco lançaram a música O mestre-sala dos mares, exaltando o caráter heroico da revolta e de seu líder, a quem o título homenageava. Em 1985, a canção se tornou enredo de uma escola de samba.

Atualmente, uma estátua de João Cândido, voltada para o mar, está instalada na Praça XV, na região central da cidade do Rio de Janeiro. Foi nesta praça que ele passou décadas vendendo peixe, depois de ser expulso da Marinha. A corporação chegou a anistiá-lo, por decreto, em 2008, porém, não aceitou sua reintegração, mesmo depois de morto.

LEGENDA: Estátua em homenagem a João Cândido localizada na Praça XV, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Foto de 2016.

FONTE: Luiz Souza/Fotoarena

Fim do complemento.

Movimento operário

Até 1907, aproximadamente, a cidade do Rio de Janeiro era a que mais tinha indústrias no país, seguida por São Paulo. Ambas concentravam 46% do capital investido no setor, empregando 39% dos trabalhadores de indústrias. Ainda na mesma década esse cenário se inverteu, e São Paulo assumiu a liderança, passando a ter um número maior de fábricas em funcionamento, operários empregados e dinheiro investido.

Das indústrias instaladas, aproximadamente 10% empregavam mais de 500 pessoas e usavam máquinas movidas a energia elétrica. As demais, porém, eram menores, empregando de 4 a 50 pessoas cada uma, muitas delas funcionando com maquinaria ou ferramentas manuais ou movidas a carvão.

Nesse período, o número de mobilizações e greves de trabalhadores aumentou. Não existiam leis que os protegessem e seu trabalho era intensamente explorado. Com essas manifestações, o operariado obteve algumas conquistas importantes ao longo da República oligárquica: descanso semanal, direito a férias, regulamentação do trabalho infantil e feminino e assistência ao trabalhador em casos de acidentes. No entanto, essa fase continuou marcada pela baixa remuneração e pelas diferenças salariais entre homens, mulheres e crianças, pela existência de ambientes insalubres, pelo assédio contra as trabalhadoras e pela repressão policial em caso de mobilização trabalhista.

Nessa época, diversos tipos de sindicato foram criados. Os mais comuns eram aqueles que reuniam trabalhadores com uma mesma qualificação, como tipógrafos, sapateiros, padeiros e marceneiros. Eram trabalhadores especializados, com elevado poder de negociação, pois era difícil encontrar outras pessoas com seus conhecimentos. A partir de 1917, os sindicatos que reuniam trabalhadores das grandes fábricas, independentemente da especialização, passaram a ter bastante importância no cenário de lutas por direitos.

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LEGENDA: Operários de fábrica na cidade de São Paulo em foto de 1910.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Além da repressão policial, geralmente acionada nos casos de comício e de greves que paralisavam fábricas ou até mesmo regiões de uma cidade, leis foram instituídas para enfraquecer a mobilização de trabalhadores. Dentre elas, a Lei Adolfo Gordo, de 1907, que regulamentava a expulsão dos estrangeiros que "comprometiam a segurança nacional e a tranquilidade pública". Uma mudança, aprovada em 1913, ampliava as possibilidades de expulsão dos estrangeiros envolvidos com a militância operária. Como no setor industrial predominavam trabalhadores imigrantes de diversas nacionalidades, essa lei dificultou sua mobilização.

Os diversos sindicatos usavam panfletos e jornais como instrumento de conscientização e informação. Muitos desses impressos eram escritos em italiano ou espanhol para atingir um número maior de pessoas.

Entre as diversas correntes políticas que se disseminaram entre as entidades trabalhistas, duas se destacaram, porém em épocas diferentes: o anarcossindicalismo e o Bloco operário e camponês.

O anarcossindicalismo foi adotado por diversos sindicatos e foi a corrente dominante em três congressos operários ocorridos nos anos 1906, 1913 e 1920. Combinava elementos do pensamento anarquista com a questão da luta de classes, conforme visão dos socialistas. Não acreditando que fosse possível transformar a realidade capitalista e a condição do operário através de leis e representações políticas, os anarcossindicalistas defendiam a ação direta dos trabalhadores contra aqueles que os exploravam e oprimiam. Na prática, isso significava a adoção de greves como principal instrumento de luta.

A greve geral ocorrida em junho e julho de 1917 foi uma das lutas mais emblemáticas promovidas pelos trabalhadores durante a República oligárquica. Foi deflagrada pelos operários de uma das maiores fábricas têxteis de São Paulo, mas acabou atingindo outras categorias e municípios vizinhos. Em seu ápice, envolveu cerca de 43 mil trabalhadores.

A motivação para a greve foram as extensas jornadas de trabalho e os baixos salários. Durante esse período, a indústria brasileira produzia a pleno vapor para abastecer o mercado interno e externo, ainda na esteira dos efeitos da Primeira Guerra Mundial,

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Leituras

Boxe complementar:

Leia o texto a seguir, que trata do papel das mulheres operárias nas primeiras décadas do século XX no Brasil na luta por melhores condições de trabalho nas fábricas e por outros direitos.

Mulheres anarquistas em São Paulo

A condição de opressão da mulher em geral foi tema da imprensa anarquista por jornalistas, escritoras e educadoras que se destacaram pela atuação em defesa da causa feminina. No início do século XX, Ernestina Lesina, anarquista, dedicada à defesa das mulheres operárias, foi uma das fundadoras do jornal operário Anima Vita em São Paulo. Considerada uma brilhante oradora junto aos trabalhadores, defendeu a emancipação das mulheres e da classe operária. Participou da formação da Associação de Costureiras de Sacos, em 1906, lutando pela redução da jornada de trabalho e pela organização sindical. Este fato de as mulheres trabalhadoras terem tido um papel decisivo nas greves de 1901 a 1917, denunciando os maus-tratos e exploração das costureiras e têxteis, foi digno de registro. Outra mulher de destaque na luta dos trabalhadores foi Maria Lopes; operária paulista, juntamente com outras anarquistas, como Teresa Carini e Teresa Fabri, assinou, em 1906, um Manifesto às trabalhadoras de São Paulo, publicado no jornal anarquista A terra livre, incentivando as costureiras a denunciarem as condições degradantes de vida, as longas jornadas de trabalho e os baixos salários.

MINARDI, Inês M. Trajetória de luta: mulheres imigrantes italianas anarquistas. Disponível em: www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/Ines%20M.%20Minardi.pdf. Acesso em: 20 jan. 2016.

LEGENDA: Reprodução da capa de uma edição de 1906 do jornal anarquista A terra livre.

FONTE: Biblioteca Digital Unesp/Universidade Estadual Paulista "Joelio de Mesquita Filho"

Fim do complemento.

que diminuiu a importação de artigos manufaturados, aumentando a produção das indústrias brasileiras e os lucros de seus proprietários.

Nesse contexto de alta produtividade, ligas operárias e sindicatos estavam se reorganizando após um breve período de enfraquecimento das mobilizações. Desde o início de 1917, nas cidades e nos bairros onde se concentrava o maior número de fábricas e trabalhadores, eram comuns comícios e pequenas paralisações contra o aumento da contratação de menores de idade, jornadas noturnas e baixos salários numa época de elevado custo de vida.

A greve começou em junho daquele ano, no Cotonifício Crespi, localizado em um bairro industrial da cidade de São Paulo. Inicialmente, contou com 400 operários, mas logo se espalhou para outras indústrias têxteis da vizinhança. Trabalhadores de outros setores e outras categorias também aderiram ao movimento e a greve passou a atingir aproximadamente 9 500 trabalhadores somente nos bairros fabris da zona leste da cidade. O movimento não se restringia à paralisação da produção, incluía piquetes e interceptação de cargas que saíam ou chegavam das fábricas. Essas estratégias colocaram as forças públicas da cidade contra os trabalhadores.

Glossário:

cotonifício: local em que se produzem tecidos de algodão; manufatura.

piquete: manobra de greve em que se interdita a entrada do local de trabalho.

Fim do glossário.

Em meados de julho, a morte do espanhol José Gimenez Martinez, militante anarquista e sapateiro, em confronto com a polícia, levou milhares de trabalhadores ao seu enterro. Dois dias depois, mais um operário e uma criança morreram em situação semelhante, aumentando a agitação e o número de greves.

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LEGENDA: Trabalhadores no cortejo fúnebre de José Gimenez Martinez, no centro da cidade de São Paulo. Foto de 1917.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Com as mortes, a cidade foi paralisada, tornando a situação crítica para os empresários e o poder público. Nessa circunstância, foi criado um Comitê de defesa do proletariado, reunindo sindicalistas de várias tendências. Unidos, eles conseguiram articular negociações com os empresários e as forças de segurança do estado de São Paulo. Em um documento assinado entre as partes, ficaram acordados o direito de reunião, aumentos salariais e a libertação dos operários e militantes presos em manifestações e confrontos. O retorno à normalidade se deu aos poucos, pois nem todos os empresários aceitavam os termos do acordo e buscaram novas negociações com os trabalhadores de suas indústrias.

Nos meses seguintes, entusiasmados com a força demonstrada pelos operários naqueles dias de julho, vários sindicatos e ligas operárias foram fundados ou refundados, em São Paulo e em outras cidades.

Ainda no ano de 1917, 50 mil trabalhadores participaram de uma greve na cidade do Rio de Janeiro. A manifestação foi fortemente reprimida pela polícia. Em setembro, os trabalhadores do Recife iniciaram um movimento de paralisação, exigindo jornada de oito horas, melhores condições de trabalho e abolição do trabalho infantil. Em 1919, uma grande greve voltou a acontecer em São Paulo, e também no Rio de Janeiro, em Porto Alegre, Salvador e Recife.

Nos anos 1920, ao mesmo tempo que a ideologia comunista continuou em expansão junto aos trabalhadores, houve a intensificação da ação do Estado no apoio a movimentos contrários (reacionários), a fim de enfraquecer o movimento operário e inibir a ação dos seus militantes.

O comunismo tomou força no cenário brasileiro após a Revolução Russa de 1917. Seu principal elemento de propagação foi o Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, no Rio de Janeiro. Para os comunistas, além das greves, a representação política dos trabalhadores era uma estratégia de luta. A adesão a este ideário foi lenta e bastante criticada. No entanto, em razão das dificuldades no avanço das conquistas trabalhistas após a grande greve de 1917 e a repressão que se seguiu contra os trabalhadores, os anarcossindicalistas passaram a perder as disputas pela direção de associações e sindicatos para as chapas comunistas. O PCB foi colocado na ilegalidade entre 1922 e 1927, mas lançou diversas candidaturas a postos do Legislativo e à Presidência da República nas eleições de 1930 por meio de uma associação denominada Bloco operário e camponês.

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Atividades

Retome

1. Leia o fragmento a seguir e faça o que se pede.

Iludidos por uma civilização de empréstimos; [...] tornamos [...] mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...

CUNHA, Euclides da. Os sertões. 1902. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000153.pdf. Acesso em: 28 abr. 2016.

a) A que o escritor Euclides da Cunha se refere quando fala em "civilização de empréstimos"?

b) Quem são os "rudes patrícios" citados por Euclides da Cunha? A que grupo histórico o autor os compara?

c) A quem se refere o sujeito oculto ("nós") da primeira frase do fragmento?

d) Os "três séculos" que separam Euclides da Cunha dos "rudes patrícios" se referem a um tempo cronológico? Justifique sua resposta.

2. Aponte duas semelhanças e duas diferenças entre as guerras do Contestado e de Canudos.

3. Aponte os fatores culturais, sociais, políticos e econômicos que propiciaram a elevação do padre Cícero à condição de líder político local.

Pratique

4. O fragmento abaixo é parte de um discurso proferido por Nympha de Vimnar durante a Jornada Internacional da Mulher Operária, em 4 de abril de 1926.

Em geral a mulher operária sob o regime capitalista é duplamente sacrificada.

Ainda que trabalhe 8 horas na fábrica ou ateliê, ela em chegando à casa (geralmente desconfortável), apesar de fatigada, além das exigências do companheiro por vezes indelicado, encontrará novos afazeres não menos fatigantes que instintivamente será forçada a fazer.

[...]


A mulher na oficina, trabalhando tanto quanto o homem, sofre a injustiça capitalista de receber a metade do salário. O patrão aproveitando-se da inconsciência das operárias procura substituir os homens por elas, a fim de pagar menos, obtendo as mesmas vantagens como se fossem homens.

E a operária, na inconsciência crassa, auxilia o seu algoz, traindo lamentavelmente os seus companheiros obreiros. Não há maior inimigo da operária que o capitalista.

Fingindo desconhecer os seus esforços sobre-humanos, ele exige da mulher a prática de trabalhos fatigantes, obrigando a posições forçadas no período de gestação, concorrendo para o aniquilamento do novo rebento e acarretando graves consequências para a sua saúde e bem-estar físico. [...]

Não pomos em dúvida o efeito ocasionado pela situação econômica pouco favorável. Mas o atraso industrial, a falta de instrução e disciplina, o menosprezo do homem para levar suas companheiras às reuniões, muito têm concorrido para o retardamento do conhecimento das vantagens adquiridas pelo regime comunista. [...]

E em verdade seja permitido dizer, as nossas mulheres não sofrem somente a opressão capitalista, elas são vítimas das próprias mulheres, que, longe de coadjuvarem, ainda procuram tolher os seus ingentes esforços, esquecendo que, desse modo, vêm concorrer para o seu próprio mal, dificultando o auxílio espontâneo. [...]

Quando a natureza dota a mulher proletária com traços de rara perfeição e formosura, o capitalista, zombando mais uma vez, vem com os seus milhões comprar aquela mulher como compraria um lindo cão ou outro animal de raça. Não raras vezes ela vai para o trono capitalista e lá se torna mais déspota que o seu comprador ou senhor.

Infeliz dela, se não puder fugir à finalidade e quiser concorrer para auxiliar os seus ex-companheiros de luta. Em pouco tempo será repudiada e considerada a louca que só a ação do desquite poderia afastá-la do lar [...].

Glossário:

desquite: separação judicial na qual bens e corpos são separados, mas o laço matrimonial permanece.

Fim do glossário.

Somente nós, operárias do Brasil, é que sob uma nostalgia doentia, dormimos o sono do esquecimento enquanto denodadas companheiras russas, inglesas, francesas, italianas, alemãs, norueguesas, trabalham para os P.C. tomando parte em suas reuniões, comentando as vantagens do comunismo e gozando os seus benefícios. [...] Que esses exemplos frisantes da elevação feminina sirvam de estímulo para despertar da letargia em que se encontram as nossas camaradas, eis o nosso mais ardente desejo.

A Classe Operária. São Paulo, 1º maio 1926.

Glossário:

denodadas : valentes, corajosas.

Fim do glossário.

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a) Por que a autora afirma, no início do texto, que a mulher operária é duplamente sacrificada?

b) Segundo a autora, quais são os dois principais algozes dos quais a mulher operária é vítima? Por quê?

c) Na visão da autora, que fator faz com que a mulher operária se submeta a essas condições? Qual é a solução que ela vislumbra para resolver o problema?

d) O texto enumera uma série de dificuldades enfrentadas pela mulher operária. Quais delas você acha que ainda são sentidas pelas trabalhadoras nos dias de hoje? Quais foram superadas?

Analise uma fonte primária

5. O documento abaixo, atribuído ao monge João Maria, foi publicado no jornal O Estado, de Florianópolis, Santa Catarina, em 4 de novembro de 1915. Teria sido encontrado no reduto de Pedras Brancas, um dos lugares de refúgio dos sertanejos de Contestado. Leia-o e faça o que se pede.

Precisa que a Irmandade saibam que esta guerra santa que é guiada pela minha vontade não é a Guerra de S. Sebastião. A qual ainda falta muitos anos para começar. Esta é a guerra que eu falava a 30 anos passados da liquidação dos limites dos Estados de Santa Catarina e Paraná. Como sabem todos aqueles que tiveram a felicidade de convelsar comigo que sempre disse que havia de vencer Sta. Catarina pelo motivo seguinte:

1) porque tem o nome de uma Santa muito milagrosa e protegida de S. Sebastião.

2) porque sendo menor em terras não se pode e nem se deve tirar de quem tem menos para dar ao mais rico que este é o ponto principal da religião de Deus.

3) porque foi no tempo da revorta para o sertão de Santa Catarina que eu mandei a irmandade com ajutório desta santa; era o único lugar onde a irmandade acharam sucego e agasalhos;

Glossário:

ajutório: ajuda.

Fim do glossário.

4) porque é onde se acha situado o divino e encantado serro que se chama Taió que eu pretendo repartir com todos os irmãos que até aqui tem trabalhado com fé e corage e com resignação;

5) porque é enfim o único lugar onde a irmandade poderá escapar quando começar a falada guerra de S. Sebastião e quem morar neste Estado ficará livre das pestes e mais castigos horríveis que Deus mandará contra os ereges. Espero tão bem a restauração da monarquia que já não veio devido às faltas e aos pecados dos irmãos e fica revogada para a volta de dom Luiz de Bragança que foi a Jerusalém ao santo sepulcro visitar sinais da ressurreição de Jesus Cristo.

a) Reescreva o texto adaptando-o à norma culta da língua portuguesa.

b) O texto atribuído ao monge João Maria fala de duas guerras, uma histórica e outra mítica. Identifique-as, indicando seus contextos.

c) Que relação o monge estabelece entre essas duas guerras?

d) É possível identificar no documento a tendência política do monge João Maria? Justifique sua resposta com elementos do texto.

e) Depois de ter sido encontrado, o texto atribuído a João Maria foi veiculado num jornal catarinense de grande circulação. Levante hipóteses para explicar os objetivos de sua publicação. Justifique sua resposta.

Articule passado e presente

6. Em 1909, estudantes da conceituada Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, organizaram o Congresso Brasileiro de Estudantes. Na ocasião, solicitaram à Secretaria da Justiça e Segurança Pública de São Paulo a presença de força policial para cuidar da segurança do evento. O secretário, contudo, negou o pedido, alegando que

uma reunião daquele caráter, pela educação e posição social das pessoas que nela tomam parte, e pela presença de estrangeiros de distinção que a ela vieram assistir, prescinde da presença da polícia.

Parecer da Secretaria da Justiça e Segurança Pública, ordem 3169. Apud: SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Paladinos da ordem: polícia e sociedade em São Paulo na virada do século XIX ao XX. Tese de Doutorado, FFLCH-USP, São Paulo, 2004.

a) Que argumentos o secretário utiliza para negar o pedido dos estudantes?

b) Por dedução, que tipo de evento necessitaria da presença da polícia, na visão do secretário? Por quê?

c) Com base nas respostas anteriores e no conteúdo deste capítulo, responda: o policiamento urbano, na época em que o texto foi escrito, seguia princípios republicanos?

d) Observe novamente a imagem de abertura do capítulo. Você acredita que, se os estudantes fossem da rede privada, a reação policial seria diferente? Na sua opinião, o critério "posição social" influenciou a atuação policial naquele momento?

e) Em sua opinião, a atuação policial nos centros urbanos brasileiros segue, hoje, preceitos republicanos?

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CAPÍTULO 5: A Crise de 1929 e o nazifascismo

LEGENDA: Manifestantes protestam nas ruas de Londres, em 19 de março de 2016. No cartaz azul, lê-se: "Eu sou azul. Eu sou igual a você". No cartaz vermelho e amarelo, as palavras de ordem são "Luta contra o racismo e a islamofobia". O evento, como outros na mesma época, pela Europa, foi uma resposta às manifestações populares a favor da expulsão dos refugiados estrangeiros e dos muçulmanos daquele continente.

FONTE: Mike Kemp/In Pictures/Getty Images

A intolerância foi uma das marcas do nazismo implantado na Alemanha no período entreguerras. Naquele momento, seguidores do regime político totalitário liderado pelo Partido Nazista de Adolf Hitler discriminaram judeus, homossexuais, ciganos e pessoas com deficiência. Amplos setores da população alemã foram coniventes com o aprisionamento e o assassinato dessas minorias nos campos de concentração sob comando do governo alemão. A postura da intolerância ainda é latente no mundo contemporâneo, até mesmo no Brasil. Intolerância racial, social e ideológica. O que colabora para que isso ainda ocorra? E como podemos combater tanta intolerância?

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1. Economia e política

Desde a Baixa Idade Média, com o desenvolvimento do comércio, as Bolsas de Valores ganharam vida negociando mercadorias e capitais. Nelas, os investidores buscam lucro, por meio da compra e da venda de papéis (ações) que representam frações do capital de empresas.

Nas Bolsas, a aplicação de capitais e a especulação - venda ou compra rápida com o objetivo de lucro na oscilação dos preços - firmam vínculos profundos com crescimento econômico e crises por todo o mundo.

O sistema capitalista convive com crises econômicas cíclicas desde o século XIX. Em 2007-2008, o mundo assistiu a mais uma crise financeira com consequências globais, a pior desde a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929.

Com as crises, a atuação do Estado ganha força. Um dos principais debates do século XX ocorreu em torno de qual deveria ser o papel do Estado na economia: ele deve intervir ou não? Qual é a relação entre crises econômicas e a ascensão das propostas autoritárias?

Na contemporaneidade, fascismo e nazismo são termos muito utilizados para fazer referência a situações marcadas pela violência, pelo autoritarismo e pela intolerância. Este capítulo, que abrange o período entreguerras (1919-1939), aborda a Grande Depressão, que abalou a economia capitalista mundial, e a implantação de regimes totalitários em países europeus, como o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha.

LEGENDA: Agricultores gregos protestam em frente ao Ministério de Agricultura, na cidade de Atenas, contra as taxas impostas sobre os produtos e equipamentos de cultivo. Desde 2009 o país sofre as consequências de um plano de austeridade econômica, que, entre outras medidas, envolve a redução de benefícios, como a aposentadoria, e o aumento de impostos. Foto de 2016.

FONTE: Michaud Gael/NurPhoto/Sipa/Associated Press/Glow Images

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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2. A crise da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão

Terminada a Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos se destacaram no capitalismo mundial: de maior devedor (3 bilhões de dólares), tornaram-se o maior credor mundial (11 bilhões de dólares). Em 1918 mais de um terço da produção industrial mundial estava nos Estados Unidos; em 1929 esse percentual chegava a mais de 42%. O país também continuava a atrair imigrantes: entre os anos 1900 e 1910, entraram nos Estados Unidos cerca de 9 milhões de europeus. A prosperidade econômica, entretanto, apresentava contradições que se tornavam cada vez maiores.

Após o mandato do presidente democrata Woodrow Wilson (1913-1921), os seus sucessores, até 1932, foram do Partido Republicano. Fiéis defensores do liberalismo econômico e do isolacionismo, eles se recusavam a intervir em assuntos internacionais que não envolvessem o continente americano. Não ratificaram, por exemplo, o Tratado de Versalhes e não participaram da Liga das Nações, deixando aos europeus a tarefa de solucionar os conflitos ocorridos na Europa.

Coerentes com essa política isolacionista, os governos republicanos aprovaram diversas leis restritivas à migração a partir de 1921, reduzindo drasticamente a entrada de estrangeiros no país. Ao mesmo tempo, deixaram de adotar medidas que resolvessem as crescentes contradições do desenvolvimento econômico.

Seus líderes argumentavam que as dificuldades que surgiam na economia do país seriam resolvidas pelo próprio mercado, o qual teria uma tendência à racionalidade e à superação dos problemas econômicos, não cabendo ao Estado interferir na ordem econômica.

O desenvolvimento econômico não foi acompanhado por aumento nos salários e na renda dos trabalhadores. Essa estagnação salarial, incompatível com o crescimento da produtividade, acentuou a desigualdade na distribuição da renda - apenas 5% da população detinham um terço da renda do país - e impossibilitava o aumento do consumo para a maioria dos estadunidenses. A dificuldade para expandir o consumo interno, enquanto a produção do país aumentava, resultou numa grande estocagem de mercadorias.

LEGENDA: Em 1919, foi aprovada a Lei Seca nos Estados Unidos, que proibia a produção e a venda de bebidas alcoólicas. Nessa época de crescimento econômico destacou-se o gângster Al Capone, líder da maior organização criminosa de Chicago e um dos grandes responsáveis pela venda clandestina de bebidas. A Lei Seca, no entanto, ficou desmoralizada depois de ter sido encontrada uma destilaria de uísque na fazenda do senador Morris Sheppard, justamente o autor da lei. Em 1933, a lei foi revogada pelo presidente Franklin Roosevelt. Na foto, barril de cerveja confiscado é derramado em uma boca de lobo.

FONTE: Universal History Archive/Getty Images

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A explosão da crise e o New Deal

A intensa atividade econômica nos Estados Unidos também impulsionou, a partir de 1928, a especulação financeira por meio da compra e venda de ações de grandes empresas na Bolsa de Valores de Nova York. Em meados de 1929, o valor das ações quadruplicou e cada vez mais investidores foram atraídos pela possibilidade de enriquecer facilmente.

A prosperidade econômica, contudo, tinha um limite físico. Por um lado, o mercado não acompanhava a expansão industrial, pois, devido à desigualdade na distribuição da renda, nem todos podiam consumir na mesma proporção. Por outro, os países da Europa, arrasados na Primeira Guerra Mundial, aos poucos se recuperavam e buscavam importar menos produtos estadunidenses, estabelecendo leis protecionistas.

Assim, a superprodução agrícola e industrial, que não escoava e gerava uma estocagem cada vez maior devido ao subconsumo, levou a especulação financeira ao limite: o valor das ações estava muito acima de seu valor real, baseado apenas na confiança de que esses papéis continuariam se valorizando e não nos lucros obtidos com as vendas da produção. Entretanto, o presidente Herbert Hoover (1874-1964), que governou os Estados Unidos entre 1929 e 1933, mantinha sua posição liberal, recusando uma intervenção estatal para estancar ou reverter a situação.

A crise explodiu em 24 de outubro, quando muitas pessoas tentaram vender suas ações e não encontraram compradores, o que provocou uma redução drástica dos preços. Os investidores, atemorizados, tentavam livrar-se dos papéis, originando uma avalanche de ofertas de ações que derrubou ainda mais os preços. Esse dia ficou conhecido como Quinta-feira Negra.

Do dia para a noite, empresários prósperos tornaram-se donos de papéis sem nenhum valor. A desordem econômica espalhou-se pelos meses seguintes e atingiu profundamente toda a sociedade estadunidense, da indústria à agricultura. A queda da renda real dos agricultores até 1932 foi superior a 50%; consequentemente, diversos bancos do sul e do meio-oeste dos Estados Unidos quebraram.

No conjunto, 85 mil empresas faliram, 4 mil bancos fecharam e cerca de 12 milhões de trabalhadores estadunidenses ficaram desempregados. Foi um período de pobreza e fome, não só nos Estados Unidos.

A crise de 1929 abalou o mundo inteiro, exceto a União Soviética, fechada em si mesma e orientada segundo os Planos quinquenais.

A difusão da crise contou com dois fatores básicos: a redução das importações pelos Estados Unidos, que afetou duramente os países que dependiam de seu mercado consumidor (o café brasileiro é um exemplo), e o repatriamento de capitais estadunidenses investidos em outros países.

Em meio à crise econômica, o Partido Democrata derrotou os republicanos nas eleições presidenciais em 1932. Eleito presidente, uma das primeiras providências de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) foi limitar o liberalismo econômico, intervindo na economia por meio do New Deal ("novo acordo"), plano elaborado por um grupo de renomados economistas e baseado nas teorias do economista inglês John Maynard Keynes (1884-1946).

LEGENDA: Desempregados em fila para receber refeições gratuitas em Nova York. Os efeitos da crise de 1929 podiam ser vistos em cenas como essa nas ruas das principais cidades dos Estados Unidos. Foto de 1930.

FONTE: Bettmann/Corbis/Latinstock

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Com o New Deal, o liberalismo de Adam Smith cedeu lugar ao keynesianismo, que defendia a intervenção do Estado para controlar o desenvolvimento da economia, de modo a combater crises e garantir empregos e direitos sociais. Roosevelt determinou grandes emissões monetárias, inflacionando deliberadamente o sistema financeiro; fez grandes investimentos estatais, como hidrelétricas; estimulou uma política de empregos por meio de obras públicas, entre outras medidas, o que promoveu o consumo e possibilitou a progressiva recuperação da economia.

O Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos, que caíra de US$ 103,7 bilhões para US$ 56,4 bilhões em 1932, recuperou-se lentamente, chegando a US$ 101,3 bilhões em 1939.

A política keynesiana da busca do pleno emprego para estimular as economias em recessão, posteriormente adotada em outros países industrializados, foi acompanhada pela instalação de modernos sistemas previdenciários, como a Lei de Seguridade dos Estados Unidos, aprovada em 1935. Ela serviu também de base para as políticas de bem-estar social desenvolvidas pelos países capitalistas, o Welfare State (Estado de bem-estar social), expressão que entrou em uso a partir dos anos 1940.

A política keynesiana predominou no cenário econômico internacional até o final dos anos 1970, quando a liberdade de mercado voltou a ganhar prestígio, defendida por teóricos como Friedrich von Hayek (1899-1992) e por membros da escola monetarista de Chicago, como Milton Friedman (1912-2006) e Robert Lucas.

Índices da crise de 1929

FONTE: Adaptado de: CAMERA, Augusto; FABIETTI, Renato. Elementi di storia 3. Bolonha: Zanichelli, 1999. p. 1 374.

A política econômica liberal foi adotada pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1925-2013) e pelo presidente estadunidense Ronald Reagan (1911-2004), entre outros políticos conhecidos como neoliberais.

A partir de 2008, em virtude da crise econômica internacional originada em parte das políticas neoliberais de não controle da economia pelo Estado, reacendeu-se o debate entre defensores do neoliberalismo e do keynesianismo. Desta vez, ao contrário do que ocorrera nos meses seguintes à crise de 1929, governos de muitos países optaram por intervir na economia para tentar diminuir os efeitos dessa crise.

Evolução da Bolsa de Nova York

FONTE: Adaptado de: CAMERA, Augusto; FABIETTI, Renato. Elementi di storia 3. Bolonha: Zanichelli, 1999. p. 1 374.

FONTE: Gráficos: Cassiano Röda/Arquivo da editora

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3. O ideário nazifascista

O nazifascismo caracterizou-se por ser um movimento essencialmente nacionalista, antidemocrático, antioperário, antiliberal e anticomunista. Sua ascensão na Europa ocorreu entre o final da Primeira e o início da Segunda Guerra Mundial, no contexto da crise dos países europeus desencadeada pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial e pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929.

Na Alemanha, o movimento foi representado por Adolf Hitler (1889-1945), cujo livro Mein Kampf (Minha luta), publicado em 1925, serviu como base teórica do governo nazista. A Itália foi outro polo do movimento, liderado por Benito Mussolini (1883-1945), que ascendeu ao governo em 1922.

Em outros países, regimes políticos semelhantes ao nazifascismo também foram adotados, como o franquismo na Espanha e o salazarismo em Portugal.

Esses novos governos representaram uma reação nacionalista às frustrações resultantes da Primeira Guerra Mundial e um modo de fortalecer o Estado, além de atender às aspirações de estabilidade diante das ameaças revolucionárias de esquerda e, sobretudo, diante da instauração do socialismo na União Soviética.

A doutrina nazifascista caracterizava-se basicamente pelos seguintes pontos:

- totalitarismo, em que o Partido Fascista ou Nazista confundia-se com o Estado, formando a síntese das aspirações nacionais;

- nacionalismo, propondo a subordinação do indivíduo aos interesses da nação;

- idealismo, acreditando no poder transformador das ideias e convicções;

- romantismo, que negava a razão como solucionadora dos problemas nacionais, defendendo, ao contrário, que somente a fé, o autossacrifício, o heroísmo e a força seriam capazes de superar as dificuldades;

- autoritarismo, segundo o qual a autoridade do líder - o Duce (na Itália) ou o Führer (na Alemanha) - era indiscutível;

- militarismo, que possibilitaria a salvação nacional por meio da luta e da guerra;

- anticomunismo.

No caso alemão, havia ainda o antissemitismo, isto é, a perseguição racista aos judeus, justificada pela afirmação de que, na Primeira Guerra Mundial, os alemães haviam sido traídos pelos judeus marxistas, o que teria provocado a sua derrota no conflito. Além disso, segundo os defensores do nazismo, os judeus, vistos como antinacionais e sem pátria, ameaçavam a formação da "grande raça ariana alemã". A ideia fundamental do nazismo era expressa pela máxima: Ein Volk, ein Reich, ein Führer (Um povo, um império, um líder).

Na Itália, o fascismo baseava-se no corporativismo: o povo, produtor de riquezas, organizava-se em corporações sindicais que governavam o país por meio do Partido Fascista, que se confundia com o próprio Estado. Ao contrário da visão marxista, negava-se a oposição entre classes na estrutura social, e o Estado corporativo deveria buscar a harmonização dos interesses conflitantes do capital e do trabalho nos próprios quadros das corporações.

Hitler e Mussolini contaram com o capital financeiro e o apoio da alta burguesia na edificação do Estado totalitário. No caso nazista, foi representado pela tradicional família Krupp, dona de indústrias no ramo de aço, munições e armamentos; e, na Itália, pela Confederação Geral da Indústria, pela Associação dos Bancos e pela Confederação da Agricultura.

LEGENDA: Pôster do filme O eterno judeu, de 1937, que pregava o antissemitismo.

FONTE: Peter Newark Military Pictures/The Bridgeman Art Library/Keystone

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O fascismo italiano

A Primeira Guerra Mundial deixou para a Itália enormes perdas financeiras e humanas e nenhum ganho territorial. Além do caos econômico - causado pela inflação, pelo alto índice de desemprego e pela paralisação de diversos setores produtivos -, o governo da Itália via-se também impotente em meio à agitação política e social revolucionária das esquerdas, com sucessivas greves e ocupações de fábricas e terras.

O governo parlamentar, composto pelo Partido Socialista e pelo Partido Popular, não chegava a um acordo quanto às grandes questões políticas, gerando impasses e impopularidade. Diante desse quadro de instabilidade na Itália, as elites do país passaram a apoiar a atuação das squadre d'azione (expressão italiana que significa "comandos de ação"), milícias armadas formadas pelos camisas-negras, membros do Partido Fascista criado por Benito Mussolini em 1919. Dois anos depois, os fascistas elegeram o maior número de representantes no Parlamento.

Apoiado na crise parlamentar e na ideia da "mediocridade democrática", Mussolini organizou o assalto ao poder. Em 1922, 50 mil camisas-negras, vindos de todas as regiões da Itália, dirigiram-se para a capital, exigindo o poder. O episódio ficou conhecido como Marcha sobre Roma. O rei Vítor Emanuel III cedeu à pressão, e o líder fascista assumiu o cargo de primeiro-ministro.

Em 1924, por meio de eleições fraudulentas, os fascistas ganharam maioria parlamentar. A oposição, liderada pelo deputado socialista Giacomo Matteotti (1885-1924), denunciou as irregularidades eleitorais, mas foi calada pela repressão generalizada, que culminou no sequestro e assassinato do deputado.

LEGENDA: O símbolo do fascismo era constituído de um feixe de varas amarradas por correias (fasce) vermelhas, que simbolizava a unidade do povo e servia de cabo para um machado, que representava a autoridade do Estado. O mesmo símbolo era usado pelas magistraturas de maior autoridade no Império Romano.

FONTE: Bettmann/Corbis/Latinstock

LEGENDA: Hitler e Mussolini passam em revista as tropas alemãs durante visita do ditador italiano à Alemanha, em 1937.

FONTE: Bettmann/Corbis/Latinstock

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No ano seguinte às eleições, Mussolini passou a ser chamado de Duce (guia), com o respaldo da Confederação Geral da Indústria, da polícia política fascista (Ovra) e de tribunais especiais, que julgavam e condenavam os dissidentes do regime. Concretizou-se, assim, um Estado totalitário, no qual os principais focos de oposição eram eliminados; ao mesmo tempo que se impunham leis de exceção, suprimia-se a imprensa oposicionista e a licença de todos os advogados antifascistas era cassada.

Em 1929, Mussolini ganhou também o apoio do clero ao assinar o Tratado de Latrão, que solucionava a antiga Questão Romana. Pelo tratado, o papa Pio XI (1857-1939) reconhecia o Estado italiano, e Mussolini, a soberania do Vaticano. O catolicismo tornou-se a religião oficial da Itália.

Glossário:

Questão Romana: conflito entre a Igreja católica e o Estado italiano. Surgiu com a conquista de Roma na Unificação Italiana, em 1871. O papa Pio IX não reconheceu a perda dos territórios e considerou-se "prisioneiro" no Vaticano.

Fim do glossário.

Após garantir para si plenos poderes e cercar-se das elites dominantes, o Duce buscou o desenvolvimento econômico do país. Centrado numa intensa propaganda de massa e na proibição de greves, seu governo obteve sucessos na agricultura e na indústria até que a depressão mundial de 1929 mergulhou o país novamente na crise.

Para superá-la, Mussolini intensificou a produção de armamentos e as conquistas territoriais, apoiado na ideia de restaurar o Império Romano. Voltando-se para a África, invadiu a Abissínia (atual Etiópia) e associou-se aos governos da Alemanha e do Japão em diversas agressões internacionais.

O totalitarismo fascista segundo Mussolini

O liberalismo coloca o Estado a serviço do indivíduo. [...] Para o fascista, tudo está no Estado, nada de humano ou espiritual existe fora do Estado. Nesse sentido, o fascismo é totalitário, e o Estado fascista, síntese e unidade de todo o valor, interpreta, desenvolve e dá potência à vida integral de um povo.

MUSSOLINI, Benito. A doutrina do fascismo, 1930. In: VVAA. Temas de História 72. Porto: Porto Editora, [s.d.], p. 244.

LEGENDA: Mussolini saúda milhares de manifestantes na Praça da Vitória, em Gênova, Itália. Foto de 1938.

FONTE: Ullstein Bild/The Granger Collection/Glow Images

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Boxe complementar:

Propaganda fascista

Observe abaixo alguns exemplos da propaganda fascista na imprensa. "Duce! Duce! Duce!" (1) era o brado de aclamação a Mussolini, conforme a ilustração da capa de uma revista da época. Página de um livro escolar italiano de 1931 (2), mostrando uma criança fazendo a saudação fascista. O texto diz: "Benito Mussolini ama muito as crianças. As crianças da Itália amam muito o Duce. Viva o Duce!". Capa de livro (3) italiano de 1932, cujo título é O grupo-líder Balilla. Balilla era uma organização fascista de crianças entre 8 e 14 anos.

1

FONTE: Reprodução/Coleção particular, Itália.

2

FONTE: Reprodução/Coleção particular, Itália.

3

FONTE: Reprodução/Coleção particular, Itália.

Fim do complemento.

O nazismo alemão

Assim como o fascismo italiano, o nazismo alemão emergiu da derrota na Primeira Guerra Mundial e das condições impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes. Com o final da guerra, o regime monárquico da Alemanha foi substituído pela República de Weimar (1918-1933), que herdou uma grave crise socioeconômica.

Em 1923, os governantes da República de Weimar decidiram cancelar os pagamentos impostos pelo Tratado de Versalhes. Em represália, os franceses invadiram o Vale do Ruhr, importante região mineradora e siderúrgica da Alemanha. Apoiados pelo presidente socialista Friedrich Ebert (1871-1925), mineradores e operários dessa região entraram em greve, negando-se a trabalhar para os franceses. Para sustentar a greve, o Parlamento alemão autorizou a emissão de papel-moeda. O resultado foi uma espiral inflacionária, que chegou a atingir o índice de 32 400% ao mês.

Alguns anos antes, em 1919, em Munique, um pequeno grupo de ultranacionalistas, entre os quais estava Adolf Hitler, fundou um partido totalitário, nos moldes do fascismo italiano, que adotou, logo depois, o nome de




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Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei), popularmente chamado de nazi. Com forte apelo ao sentimento nacional diante das dificuldades do pós-guerra, o novo grupo ganhou cada vez mais adeptos. Para intimidar os opositores, os nazistas atuavam com

A hiperinflação alemã

FONTE: Cassiano Röda/Arquivo da editora

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uma polícia paramilitar, as Seções de Assalto (SA) - os camisas-pardas.

Diante do agravamento da situação socioeconômica e da ineficiência do governo, Hitler e seus seguidores tentaram assumir o poder em novembro de 1923. Numa cervejaria de Munique, proclamaram o fim da República. Embora todos tivessem sido presos, ganharam ampla publicidade pelo país. O Putsch ("golpe", em alemão) de Munique, como o evento ficou conhecido, pareceu, por seu fracasso, o fim do nascente Partido Nazista. Foi, no entanto, apenas um recuo momentâneo na escalada nazista, que contaria mais tarde com circunstâncias propícias a seu reerguimento definitivo.

Na prisão, Hitler escreveu Mein Kampf, obra em que desenvolveu os fundamentos do nazismo:

- a ideia pseudocientífica da existência de uma raça "pura", a raça ariana - que seria descendente de um grupo indo-europeu mais puro;

- o nacionalismo exacerbado;

- o totalitarismo;

- o anticomunismo;

- o antissemitismo;

- o conceito de espaço vital (Lebensraum), domínio de territórios indispensáveis ao desenvolvimento do povo alemão, inclusive com a conquista da Europa oriental.

LEGENDA: Após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, a situação econômica e social da Alemanha se agravou, aumentando o número de desempregados e os índices de inflação. Na foto, de 1931, unidade móvel do exército atende aos pobres fornecendo refeição gratuitamente nas proximidades de Berlim.

FONTE: Austrian Archives/Corbis/Latinstock

LEGENDA: Adolf Hitler atravessa multidão de trabalhadores de uma fábrica alemã. Foto de novembro de 1933.

FONTE: Hulton-Deutsh Collection/Corbis/Latinstock

O nazismo ganhou impulso com a Grande Depressão, iniciada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. Em 1932, muitos dos 6 milhões de desempregados alemães engrossavam as fileiras do Partido Nazista, ao lado de ex-soldados, jovens estudantes e agricultores, descontentes com o governo democrático de Weimar. Outros, porém, alinhavam-se aos grupos políticos de esquerda, fato que amedrontou a elite e a classe média alemãs, que viram na proposta nazista a salvação nacional.

As tropas das SA passaram a agir livremente, e a popularidade nazista se impôs. Em 1932, nas eleições para o Parlamento, os nazistas conquistaram 230 cadeiras (em 1930, eram aproximadamente 30) e, em 1933, com a crise do sistema parlamentarista, o presidente Hindenburg (1847-1934) ofereceu a Hitler o cargo de chanceler.

Elevado ao poder, o líder nazista se lançou contra a oposição. Para tanto, usou diversos meios, entre os quais uma farsa: provocou um incêndio que destruiu o prédio do Parlamento em Berlim, o Reichstag, e colocou a culpa nos comunistas, acusando-os de tramarem um golpe. Isso lhe permitiu a instalação de uma ditadura totalitária. Os deputados e líderes das esquerdas foram presos e levados para campos de concentração - áreas de confinamento cercadas e vigiadas. Nesses lugares e nos campos de extermínio, muitos opositores do regime nazista e milhões de judeus foram assassinados, no genocídio conhecido como holocausto.

Para sustentar o poder hitlerista, foram criadas a Gestapo - polícia secreta do Estado - e as Seções de Segurança (SS), polícia política do partido, bem-treina - da, disciplinada e fiel ao líder.

No dia 21 de março de 1933, Hitler proclamou a criação do Terceiro Reich ("império"), sucessor do Sacro Império Romano-Germânico (962-1806) e do Império dos Kaiser Hohenzollern (1871-1919). Com a morte de Hindenburg,

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em 1934, Hitler acumulou a função de presidente e a de chanceler, adotando o título de Führer (chefe).

Hitler eliminou os partidos políticos, os jornais de oposição, os sindicatos e suspendeu o direito de greve. Em junho de 1934, no episódio conhecido como Noite dos Longos Punhais, eliminou vários líderes das SA que divergiam de sua autoridade absoluta. Cerca de 70 líderes e 5 mil outros nazistas foram mortos por soldados do exército, pelas SS e pela Gestapo.

A propaganda nazista ficou a cargo de Joseph Goebbels (1897-1945), que conquistou o apoio da maioria da nação aos planos grandiosos do Führer. A campanha racista criava um bode expiatório e aproximava a população alemã dos nazistas ao propor a purificação racial por meio do extermínio dos judeus. Para cumprir seu plano de genocídio denominado "solução final", os campos de concentração foram multiplicados e milhões de judeus assassinados. Toda a sociedade alemã foi envolvida no programa nazista do Terceiro Reich: das crianças aos adultos; nas escolas e nas instituições, todos eram induzidos a filiar-se à Juventude Hitlerista ou ao Partido Nazista.

A nazificação da Alemanha completou-se com o armamentismo e o total militarismo, que reativaram o desenvolvimento econômico baseado na indústria bélica. A militarização do país visava à expansão territorial e à conquista do "espaço vital", o que viria a constituir o estopim de um novo conflito europeu.

Leituras

Boxe complementar:

No texto a seguir, o historiador brasileiro Jorge Ferreira discute em que medida ocorreu a participação e o envolvimento da população alemã no holocausto. Leia-o com atenção.

A população alemã tinha conhecimento do extermínio dos judeus nos campos de concentração?

Assim, tanto na Alemanha quanto nos países invadidos sabia-se que os judeus eram enviados em vagões ferroviários para algum lugar. Mas sabiam para onde e para o quê? É verdade que não houve ordem explícita de Hitler ou de Goebbels para o extermínio - argumento muito utilizado pelos "revisionistas". Mas não foi preciso. O nazismo tomou uma infinidade de medidas que, isoladas e justapostas, permitiu que os alemães ignorassem, ou desejassem ignorar, o que estava acontecendo, diz [o historiador Marc] Ferro1. A compartimentação das atividades que envolviam o extermínio, desde o ponto de partida ao de chegada, assegurava que um profissional não soubesse a exata função do outro. Mas como os ferroviários poderiam desconhecer o destino dos passageiros amontoados nos vagões, os trabalhadores químicos não perceber para que fabricavam o gás cyklon, os juristas, os funcionários, os policiais, entre tantas outras categorias, ignorar a finalidade de suas funções? Sabemos que o nazismo tornou as câmaras de gás um segredo de Estado, mas a estratégia não impediu que milhares de pessoas conhecessem, ou ao menos suspeitassem, de sua existência. Se o número dos "executores diretos" do extermínio é calculado entre 300 mil e 400 mil pessoas, os "indiretos", sem dúvida, são multiplicados em muitas vezes. Portanto, pelo menos na Alemanha, é difícil garantir que "poucos sabiam".

FERREIRA, Jorge. Problematizando a Segunda Guerra Mundial. Tempo, v. 1, 1996, p. 193. Disponível em: www.historia.uff.br/tempo/resenhas/res1-2.pdf. Acesso em: 30 jun. 2017.

1 FERRO, Marc. História da Segunda Guerra Mundial. Tradução de Mauro Lando e Isa Mara Lando. São Paulo: Ática, 1995.

Glossário:

cyklon ou zyklon: produto à base de ácido cianídrico, cloro e nitrogênio usado inicialmente como pesticida e depois como o gás que provocou as mortes nos campos de concentração alemães, durante a Segunda Guerra Mundial.

Fim do glossário.

LEGENDA: Húngaros de ascendência judaica chegam a Auschwitz-Birkenau, um complexo de campos de concentração e de extermínio localizado na Polônia, ocupada pelos alemães desde setembro de 1939. Repare na estrela de Davi, identificação obrigatória que cada pessoa judia deveria portar. Foto de 1944.

FONTE: Galeria Bilderwelt/Hulton Archive/Getty Images

Fim do complemento.

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Dialogando com a Educação Física

A Educação Física e as práticas esportivas

A Educação Física, como prática social organizada, remonta às primeiras sociedades humanas que, por diversas razões, desenvolveram exercícios físicos de forma consciente. Na China antiga, por exemplo, a Educação Física voltava-se à preparação militar dos indivíduos mas também era praticada com fins terapêuticos e para a formação moral e religiosa.

Nos Estados nacionais modernos, a prática de exercícios físicos foi sistematicamente aperfeiçoada, cumprindo papéis variados: como atividade ligada à saúde e ao bem-estar individual e social, integrada à educação desde a infância, como instrumento para fortalecer a força física, como forma de treinamento para atividades esportivas e como preparação para a ação militar.

Em fins do século XIX, os Jogos Olímpicos, originários da Grécia antiga, foram atualizados, com o objetivo de promover a integração entre as nações, por meio de uma competição esportiva que incluía nove modalidades diferentes. Na época, as práticas esportivas associadas à educação escolar e ao fortalecimento espiritual e moral já eram amplamente difundidas em todo o mundo, devido ao surgimento de organizações da sociedade civil e à iniciativa dos próprios governos e Estados.

Corpos treinados para a guerra

A ascensão dos regimes fascistas na Europa, a partir da década de 1920, promoveu o incentivo às práticas esportivas, especialmente para crianças e jovens. A introdução de uma Educação Física militarizada nas escolas deveria colaborar para a formação do espírito guerreiro e nacionalista que unificaria a nação em torno do grande líder, tanto na Itália fascista, quanto na Alemanha nazista.

Além disso, as organizações de juventude nazifascista tinham por finalidade educar moral e fisicamente os seus integrantes, por meio de inúmeras atividades coletivas, como acampamentos, competições esportivas e paradas militares. A higiene e a saúde, assim como a força, a coragem e a disciplina eram cultuadas como qualidades dos verdadeiros seguidores do regime.

As atividades físicas tinham clara orientação militar e serviam para fortalecer a musculatura dos braços e das pernas, por meio da prática de exercícios de agachamentos, polichinelos, flexões e abdominais. Eram praticadas em agrupamentos meticulosamente ordenados, em filas, com todos os meninos e meninas uniformizados e realizando as atividades no mesmo ritmo.

A partir dos seis anos de idade, os meninos da Itália fascista e da Alemanha nazista eram submetidos ao treinamento militar. Carregavam nos ombros réplicas de armas de fogo em madeira, para marchar, correr, mirar ou se posicionar no chão com postura de tiro.

A pesquisadora Cristina Souza da Rosa, ao analisar o regime fascista na Itália de Mussolini, destaca:

As atividades físicas proporcionavam um controle sobre o próprio corpo estimulando o domínio dos centros nervosos e melhorando o uso da energia. O controle e o conhecimento do corpo eram fundamentais para a formação de um soldado, que, com isto, teria ciência dos seus limites e da sua capacidade física e mental.

ROSA, Cristina Souza da. Pequenos soldados do Fascismo: a educação militar durante o governo de Mussolini. Antíteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, p. 629. Disponível em: www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/2704. Acesso em: 16 mar. 2016.

Força física, forma moral

Na Alemanha, os currículos escolares foram reestruturados assim que Hitler chegou ao poder, no início da década de 1930. A Educação Física foi uma das grandes preocupações do regime nazista, considerada um poderoso instrumento para fortalecer os corpos e o caráter dos indivíduos da "raça ariana", segundo a ideologia que o nazismo pregava.

LEGENDA: Registro de desfile da Juventude Hitlerista em evento do Partido Nazista alemão em 1933. Destaque para as suásticas estampadas nas bandeiras carregadas pelos jovens e para a saudação feita pelos demais participantes.

FONTE: Stapleton Collection/Corbis/Latinstock

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LEGENDA: Jogadores da seleção alemã de futebol fazem a saudação nazista em partida contra a seleção inglesa em 1936.

FONTE: Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Latinstock

O ideal de beleza nazista impunha a remodelação dos corpos segundo os padrões estéticos supostamente inspirados nos gregos, considerados pelo Führer o modelo de civilização.

Esse corpo remodelado não representava apenas o indivíduo, mas o "corpo coletivo" da nação. Por isso, os jogos e torneios, as paradas militares e as diversas apresentações de atividades físicas eram eventos públicos organizados como cerimônias de Estado.

Os Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim, foram considerados a ocasião ideal para o regime nazista demonstrar a suposta "superioridade ariana". Seguindo os ideais de imponência e grandiosidade do regime de Hitler, áreas de lazer foram renovadas e um novo estádio olímpico foi construído para sediar as competições.

A abertura dos Jogos Olímpicos e as diversas competições contaram com participação massiva de público que atendia ao chamado do Führer, ele mesmo presente em diversos eventos.

A cineasta alemã Leni Riefenstahl (1902-2003), encarregada pelo regime de documentar os Jogos, lançou, dois anos depois, Olympia, filme que transformou os atletas olímpicos e as modalidades esportivas em espetáculo audiovisual. No entanto, a sua aproximação com o nazismo e a presença marcante de Hitler no documentário transformaram Olympia num filme de propaganda nazista. Posteriormente, tanto a cineasta como a sua obra produzida no período foram muito criticadas e Riefenstahl caiu no ostracismo por muitos anos.

A Alemanha liderou os Jogos Olímpicos: levou 36 medalhas de ouro, seguida dos Estados Unidos, com 24, e da Hungria, com 10. Contudo, a vitória germânica não serviu totalmente à ideologia da superioridade racial nazista graças a Jesse Owens (1913-1980), atleta negro estadunidense. Owens conquistou quatro medalhas de ouro nas modalidades de 100 m rasos, 200 m rasos, 4 x 100 m rasos e salto em distância. A sua conquista não questionou apenas a ideologia nazista, mas também o racismo e as políticas e práticas segregacionistas de diversos estados dos Estados Unidos no período.

Atividades

Em grupos de quatro ou cinco colegas discutam e reflitam sobre as seguintes questões:

1. O espírito competitivo de várias práticas esportivas contribui para intensificar os conflitos e as tensões da sociedade?

2. De que forma as práticas esportivas colaboram para a valorização da diversidade e o respeito às diferenças?

3. A criação dos Jogos Paralímpicos, em 1960, contribuiu para a divulgação das práticas esportivas de pessoas com deficiência? Justifique.

4. Como um evento esportivo poderia ser realizado na própria escola com o propósito de integrar os alunos, fortalecer as relações de amizade e companheirismo e combater possíveis preconceitos?

Anotem suas ideias e apresentem-nas para o restante da turma.

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Atividades

Retome

1. Entre 1921 e 1932, a presidência dos Estados Unidos foi controlada pelo Partido Republicano, que defendia a não intervenção do Estado na economia e rejeitava a participação do governo em assuntos internacionais que não envolvessem a América. De que maneira essas posições refletiram na política externa e na economia estadunidenses?

2. Enumere os fatores que contribuíram para a eclosão da recessão econômica dos Estados Unidos a partir de 1929, conhecida como Grande Depressão.

3. A recuperação da economia estadunidense foi resultado das políticas adotadas pelo presidente democrata Franklin Delano Roosevelt, a partir de 1932. Que medidas foram lançadas para superar a crise econômica que assolava os Estados Unidos?

4. Apesar de haver diferenças entre as realidades alemã e italiana nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, fatores semelhantes favoreceram a ascensão dos regimes nazista e fascista nos dois países. Identifique-os.

Pratique

5. Leia o texto a seguir com atenção e responda às questões que o acompanham.

As cifras sobre os campos de concentração até hoje são incertas. Calcula-se em dezoito milhões o número de pessoas que passaram pelos campos, das quais onze milhões teriam sido imoladas. Somente os judeus chegaram a ser quase seis milhões. Os fuzilamentos eram comuns, mas, aos poucos, o uso do gás foi sendo introduzido e "apreciado" como o meio mais eficaz de extermínio. Em Chelmno, somente em dezembro de 1941, em vagões que disfarçavam câmaras de gás, as SS assassinaram 150 mil judeus, obrigando comandos, formados inclusive por judeus, a realizar o serviço sujo. Em seguida, esses judeus eram também executados. Em Lublin, métodos semelhantes foram utilizados. Em Subibor, 250 mil judeus pereceram. Em Treblinka, fala-se em 700 ou 800 mil vítimas, sendo 80 mil delas remanescentes da insurreição do Gueto de Varsóvia.

Glossário:

imoladas: mortas em sacrifício.

Fim do glossário.

[...]

Auschwitz criou um complexo industrial, dirigido pelas SS. Com o apoio de empresas como IG-Farben, trinta e nove outros campos de trabalho eram-lhe dependentes. Os campos eram plurifuncionais, mas guardavam designações outras. Alguma diferença se estabelecia entre eles: em 1942, a mortalidade média alcançava 60% nos campos de trabalho e 100% nos campos de extermínio.

[...]

O trabalho forçado, como instrumento de produção e de extermínio, tem levado muitos autores a tomarem os campos como enormes reservas de mão de obra para a economia de guerra. Hannah Arendt registra depoimentos de sobreviventes sobre a inutilidade e a ineficiência dos trabalhos nos campos. Se se levar em conta essa possível racionalidade do trabalho nos campos de concentração, diz a autora, como entender que massas de trabalhadores utilizassem escassa e preciosa matéria-prima e construíssem dispendiosas fábricas para seu próprio extermínio? Ou então, considerando a necessidade de transporte, como pensar na prioridade concedida a prisioneiros judeus, ao invés de soldados alemães e armas de guerra necessárias às frentes de combate? Para completar o quadro, sabia-se que autoridades militares mostravam incompreensão diante das ordens secretas de eliminação dos operários judeus, necessários à manutenção da produção da indústria de guerra, que seriam substituídos por operários "arianos" sem a mesma qualificação profissional.

O irracionalismo racista antecede e orienta a política de trabalho para os prisioneiros do regime. O mercado "excedente" de mão de obra era principalmente capturado entre os trabalhadores estrangeiros obrigados a trabalhar na Alemanha. Em 1944, os trabalhadores estrangeiros chegariam a mais de cinco milhões, ganhando metade dos salários dos trabalhadores alemães. Graças a seu trabalho, Speer, ministro dos Armamentos, conseguiu elevar a produção ainda em 1944, já sob intensa ação destrutiva dos bombardeios aliados.

LENHARO, Alcir. Nazismo: o triunfo da vontade. São Paulo: Ática, 1986. p. 80-82.

a) De acordo com o texto de Alcir Lenharo, uma notável transformação aconteceu nos campos de concentração entre o início e o final da Segunda Guerra. Identifique essa transformação.

b) Por que Alcir Lenharo, no texto acima, defende que os campos de concentração nazistas eram guiados pela irracionalidade?

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Analise uma fonte primária

6. Observe a imagem abaixo e responda às questões.

LEGENDA: Pôster de propaganda nazista, datado de 1932. No topo, está escrito "Estamos construindo!" Abaixo, à esquerda, sob a indicação "Nossos tijolos", aparecem listados "Trabalho", "Liberdade" e "Pão". Do lado direito, sob a indicação "Projetos dos outros", nos papéis levantados pelas personagens


menores, lemos "promessas, mentiras, desemprego, degradação social, corrupção, terror e redução dos serviços".

FONTE: PVDE/The Bridgeman Art Library/Keystone Brasil

a) Compare a personagem à esquerda do pôster com as personagens à direita. Que diferença você destacaria entre elas?

b) Que significado pode ser atribuído à imagem dos tijolos empilhados?

c) Analise a imagem do pôster e explique por que a propaganda nazista pareceu tão atraente para a população alemã.

Articule passado e presente

7. Leia o artigo a seguir. Depois, responda às questões.

[...] a internet, como qualquer tecnologia, não é - em si - boa ou má. O uso que fazemos dela é o que define seu caráter. [...] Mas poucas pessoas têm consciência de que, na rede, as informações também podem ser manipuladas e que elas passam, a todo instante, por filtros automáticos que podem incidir profundamente sobre a formação da opinião.

[...]

Considere-se ainda que, além disso, na internet o fluxo de informações é contínuo, ininterrupto. Logo, se temos um fluxo permanente e se as informações que recebemos são filtradas, então a consequência é que teremos diante de nossos olhos, em pouco tempo, um volume imenso de informações sobre um mesmo assunto. No caso de uma mesma opinião, o efeito será o de consolidar uma visão de que "tá todo mundo dizendo isso".

Além disso, a recepção de um grande volume de informação a respeito de um mesmo tema termina por gerar uma sensação de urgência em relação a determinadas questões. Diversos estudos já demonstram como esses mecanismos incidem sobre o comportamento das pessoas em processos eleitorais, em campanhas publicitárias e mobilizações sociais. [...]

Então, quando as pessoas são levadas a participar de alguma polêmica, muitas vezes adotam um comportamento explosivo, replicando informações em grande quantidade em suas próprias redes, contribuindo para o sentimento coletivo de urgência e eliminando o tempo da reflexão. E como os filtros agem mecanicamente retirando boa parte do conteúdo contrário, o resultado pode ser o estabelecimento de um consenso artificial e perigoso. [...]

Compreender a dinâmica de funcionamento das redes sociais digitais e seus filtros é algo indispensável à adoção de uma postura crítica e equilibrada diante das polêmicas reproduzidas diariamente pela internet. Talvez estejamos tratando de um dos maiores desafios da democracia no século XXI.

WU, Vinicius. Radicalismos e intolerância na rede: os riscos do ciberativismo. Disponível em: http://leituraglobal.org/radicalismos-e-intolerancia-na-rede-os-riscos-do-ciberativismo/. Acesso em: 21 abr. 2016.

a) Na visão do autor, que mal existe no fato de a internet oferecer um fluxo contínuo de informações filtradas e, muitas vezes, do mesmo tema?

b) Na sua opinião, como a internet poderia ajudar a promover o debate de ideias e a combater a intolerância na sociedade?

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CAPÍTULO 6: Brasil: a crise da República oligárquica

LEGENDA: Integrantes do Movimento Sem Terra (MST) marcham em Belo Horizonte, Minas Gerais, reivindicando reforma agrária. Foto de 2015.

FONTE: Alex de Jesus/O Tempo/Agência Estado

Ao longo dos anos 1920, o poder das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais enfrentou forte oposição, tanto das oligarquias de outros estados quanto de setores urbanos. Em 1930, essa oposição pôs fim à República do café com leite. Mas será que a mudança política pôs fim à estrutura fundiária que sustentava o poder oligárquico no Brasil? E hoje? Ainda existem muitos latifúndios no país?

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1. A sociedade brasileira em transformação

Em 1920, o Brasil já não tinha apenas 14 milhões de habitantes, como em 1890. Em 1920, a população brasileira alcançou 27 milhões e em 1930 chegou a 33 milhões. Esse crescimento foi seguido de uma forte urbanização. As capitais dos estados cresciam rapidamente e algumas cidades transformaram-se em metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo. O país deixou de se assemelhar a uma grande fazenda sob o controle dos coronéis, como diziam os críticos da ordem oligárquica.

Apesar de a maioria da população ainda ser rural, a vida urbana trazia novos personagens, inventos, hábitos e costumes, como o telefone, o teatro, o rádio, o futebol, o automóvel e o avião. O Teatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado em 1909, é um exemplo do ritmo veloz de crescimento pelo qual o Brasil passava. Entre 1910 e 1930, o teatro abrigou o elevado número de 595 espetáculos líricos. Composições de autores italianos, franceses, alemães, brasileiros e russos foram apresentadas nesse período.

É ilustrativo dos novos tempos urbanos que o primeiro samba, gravado em 1916, tenha o título "Pelo telefone". Trata-se de uma composição de Ernesto dos Santos, o Donga, com letra do jornalista Mauro de Almeida.

Outro registro dos novos ares foi a introdução do futebol, atribuída a Charles William Miller (1874-1953), um paulistano filho de um engenheiro escocês que teria trazido o esporte para o Brasil em 1894. Inicialmente, o futebol era praticado no país como diversão e entretenimento da elite, como destaca a revista Sports em seu primeiro número, publicado em agosto de 1915:

[...]


o futebol é um esporte que só deve ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo.

[Se formos] obrigados a jogar com um operário [...] a prática do esporte torna-se um suplício, um sacrifício, mas nunca uma diversão.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, cultura, sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 63.

Contudo, enquanto eram criadas ligas de futebol que agregavam clubes de elite, surgiam também times improvisados por setores populares, apesar de dificuldades como preconceito, disponibilidade de gramados, custo dos uniformes, chuteiras e bolas, etc. Aos poucos, esses times foram ganhando seu espaço e o envolvimento da população com o esporte cresceu.

O clima de mudanças também chegou ao ensino. Diferentemente da América espanhola e inglesa, cujo acesso ao ensino superior deu-se ainda no período colonial, no Brasil, as primeiras faculdades foram fundadas somente com a vinda da família real portuguesa, no início do século XIX. Durante um longo período existiam apenas algumas poucas instituições de ensino superior. Foi só em 1920 que o presidente Epitácio Pessoa, que governou entre 1919 e 1922, criou, por decreto, a primeira universidade brasileira - a Universidade do Rio de Janeiro, reunindo as antigas faculdades de Medicina, Engenharia e Direito. Aos poucos, novas faculdades foram incorporadas a ela como a Faculdade de Filosofia e a Escola de Belas Artes, ampliando assim a oferta de cursos superiores no Brasil. Em 1927 foi fundada a Universidade de Minas Gerais. No entanto, esses poucos núcleos universitários continuaram predominantemente restritos a uma pequena parcela da população.

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

114

A Semana de Arte Moderna de 1922

Em fevereiro de 1922, em sintonia com as mudanças em curso, foi realizada em São Paulo a Semana de Arte Moderna. O objetivo do evento era apresentar inovações artísticas desenvolvidas na Europa. Artistas brasileiros mostraram ao público obras de arte influenciadas por elas. Ao mesmo tempo, esses artistas valorizavam a cultura nacional e desenvolveram uma arte com características próprias, distinta da europeia. A Semana de Arte Moderna contou com conferências, leituras de poemas, apresentações musicais e uma exposição de artes plásticas.

As reações da sociedade ao evento variaram bastante. Algumas pessoas elogiaram os novos valores estéticos. Outras, mais tradicionais, escandalizaram-se e condenaram a proposta, vaiando e até mesmo atirando objetos nos artistas.

Entre os artistas modernistas que participaram do evento estavam os poetas Oswald de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade (1893-1945) e Cassiano Ricardo (1894-1974), os pintores Anita Malfatti (1889-1964), Tarsila do Amaral (1886-1973) e Di Cavalcanti (1897-1976) e o músico Heitor Villa-Lobos (1887-1959).

Ainda em 1922, foi feita a primeira transmissão radiofônica realizada oficialmente no Brasil. Em 7 de setembro, o discurso de abertura que o presidente Epitácio Pessoa fez na inauguração da Exposição Internacional do Centenário da Independência foi transmitido para alguns receptores da capital e das cidades de Petrópolis, Niterói e São Paulo. As pessoas que se reuniram em frente ao Palácio das Grandes Indústrias também puderam escutar o discurso, via alto-falantes.

A transmissão prosseguiu com trechos da ópera O Guarani, de Antônio Carlos Gomes (1836-1896), apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A partir de então o rádio se transformou em importante veículo de comunicação e de integração do país.

LEGENDA: A estudante russa, óleo sobre tela de Anita Malfatti produzido em 1915 e exibido na Semana de Arte Moderna de 1922.

FONTE: Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo

LEGENDA: Anúncio da apresentação de Heitor Villa-Lobos na Semana de Arte Moderna de 1922. O músico se apresentou em três dias, com um espetáculo diferente em cada um deles.

FONTE: Reprodução/Arquivo da editora

LEGENDA: Primeira emissora experimental de rádio no Brasil, instalada no morro do Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro. Foto de 1922.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

115

2. Novos personagens e a ordem oligárquica

Mesmo com as dificuldades que o produto vinha encontrando, o café continuava sendo a principal fonte de recursos internacionais para o Brasil. Enquanto isso, porém, a atividade industrial crescia de modo significativo, especialmente desde a Primeira Guerra Mundial. Em 1920, existiam no país mais de 13 mil fábricas, com mais de 275 mil operários, que ansiavam por direitos trabalhistas e por melhores condições de trabalho.

Os novos grupos, ligados à industrialização e à urbanização (a burguesia industrial, o operariado e os grupos médios urbanos), apresentavam reivindicações distintas, de acordo com seus interesses.

A burguesia industrial cresceu graças aos lucros obtidos com a exportação do café, especialmente em São Paulo. Fica claro, então, que o crescimento industrial estava atrelado às oligarquias agroexportadoras, e os interesses desses dois setores geralmente eram comuns. Exemplo disso era a desvalorização da moeda brasileira, que barateou os produtos brasileiros no mercado internacional e favoreceu os cafeicultores. A desvalorização também beneficiava os industriais, tornando os produtos importados mais caros e, consequentemente, aumentando a produção interna de bens de consumo não duráveis, como tecidos e alimentos industrializados. Em contrapartida, porém, tornava a compra de máquinas muito cara, inviabilizando investimentos industriais.

Já para os grupos médios urbanos, a desvalorização da moeda, a elevação dos preços internos e as fraudes eleitorais eram motivos de insatisfações e críticas. Esses grupos pediam a instituição do voto secreto e a moralização do processo eleitoral. O operariado pressionava para obter melhores condições de vida e de trabalho, além de maior participação política. A partir de 1922, o recém-fundado Partido Comunista do Brasil (PCB) passou a disputar com os anarquistas o controle de organizações e movimentos operários, acabando por assumir sua liderança.

No mesmo ano de 1922, as eleições presidenciais foram tensas. As oligarquias que não eram de São Paulo ou Minas Gerais há muito tempo manifestavam posição contrária à continuidade do pacto político em curso (a chamada política do café com leite). Nessas eleições, elas se opuseram à candidatura de Artur Bernardes (1875-1955), formando a Reação Republicana, que lançou a candidatura de Nilo Peçanha (1867-1924).

LEGENDA: Operários de uma tecelagem em Salto, São Paulo. Foto de 1920, aproximadamente.

FONTE: Acervo Museu da Imigração/Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP.

LEGENDA: Foto dos fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB). De pé, da esquerda para a direita: Manuel Cendón, Joaquim Barbosa, Astrojildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Pérez e José Elias da Silva. Sentados, da esquerda para a direita: Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Na campanha eleitoral, a publicação de duas cartas com comentários desrespeitosos aos militares no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, ganhou destaque. Essas cartas ficaram conhecidas como "cartas falsas" e eram atribuídas a Artur Bernardes, que negava serem de sua autoria.

Artur Bernardes foi eleito, com respaldo da Política dos governadores. Porém, as denúncias de fraudes no processo eleitoral e as críticas do ex-presidente Marechal Hermes da Fonseca (1855-1923) ao então presidente Epitácio Pessoa (1865-1942) aumentaram a tensão. Pessoa determinou a prisão de Fonseca e o fechamento do Clube Militar, provocando diversas rebeliões em unidades do Exército.

116

O movimento tenentista e a resistência oligárquica

A década de 1920 foi marcada por diversos levantes militares liderados por jovens oficiais de baixa patente, principalmente tenentes e capitães. A maioria desses oficiais tinha origem nas camadas médias da população e acreditava que cabia ao Exército moralizar a política e derrubar a República oligárquica. Defendiam o voto secreto, o ensino obrigatório e as reformas políticas e sociais. Suas rebeliões serviram para diminuir ainda mais o poder da oligarquia paulista, atraindo a simpatia dos grupos de oposição ao governo.

A rebelião de um grupo de oficiais no forte de Copacabana, em 5 de julho de 1922, foi o primeiro movimento encabeçado pelos tenentes contra a posse, em novembro, do recém-eleito presidente Artur Bernardes.

LEGENDA: O forte de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro, foi o local onde teve início o movimento militar que iria contribuir para a queda da República oligárquica.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Os quartéis do Distrito Federal que se rebelaram logo foram controlados pelas forças de Epitácio Pessoa. A tropa sediada no forte de Copacabana foi a última a se render. Depois de serem duramente atacados, os poucos rebeldes que permaneceram em luta saíram marchando pelas ruas, onde muitos foram mortos a tiros. Apesar do desfecho, o episódio dos 18 do Forte de Copacabana, como ficou conhecido, trouxe imensa popularidade ao movimento dos tenentes.

A revolta não impediu que Artur Bernardes tomasse posse. Para enfrentar as agitações políticas, ele decretou estado de sítio várias vezes em seu governo, ordenando prisões arbitrárias, censura à imprensa e repressão policial.

Menos de três meses após a posse de Artur Bernardes, em janeiro de 1923, a Revolução Gaúcha explodiu no Rio Grande do Sul. Em 1922, Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961), herdeiro de Júlio de Castilhos do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), saía vitorioso nas eleições estaduais pela quarta vez. Uma ampla aliança das oligarquias gaúchas dissidentes lançou a candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938) para concorrer com Borges de Medeiros, que era aliado de Artur Bernardes. Borges foi reeleito; a oposição contestou e denunciou a existência de fraude.

No dia da posse de Borges teve início um movimento revolucionário que tentou derrubá-lo, mas ele se manteve no poder após diversos combates. Em dezembro de 1923, Borges teve de firmar o Pacto de Pedras Altas. Segundo esse acordo, ficavam proibidas as reeleições no estado após seu mandato. Muitos dos oposicionistas a Borges de Medeiros faziam parte do Exército ou tinham ligações com os tenentes.

LEGENDA: A foto registra um dos últimos momentos desse pequeno exército, determinado a impedir a posse de Artur Bernardes. À frente, da esquerda para a direita, os tenentes Eduardo Gomes, Siqueira Campos, Newton Prado e o civil Otávio Correia. Foto de 1922.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

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LEGENDA: Barricada rebelde no centro da cidade de São Paulo. Foto de 1924.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Em 1924, no segundo aniversário do Levante do Forte de Copacabana, os tenentes voltaram a se rebelar, dessa vez nos estados de São Paulo, Sergipe e Amazonas. As rebeliões do Norte e do Nordeste foram rapidamente sufocadas. Em São Paulo, tropas de revoltosos comandados pelo general gaúcho Isidoro Dias Lopes (1865-1949), e com participação do major Miguel Costa (1885-1959) e dos tenentes Joaquim Távora (1881-1924) e Eduardo Gomes (1896-1981), sobrevivente do episódio dos 18 do Forte de Copacabana, ocuparam vários pontos estratégicos da capital paulista. Entre as reivindicações apresentadas estavam o voto secreto, a obrigatoriedade do ensino primário e a deposição do presidente da República.

Os pelotões patrióticos, tropas fiéis ao governo, soldados do Exército, da Força Pública do estado e tropas armadas pelos coronéis e comerciantes, atacaram os rebelados. Após três semanas de batalhas, com diversos bombardeios sobre a cidade de São Paulo, os tenentes decidiram retirar-se para o interior. Cerca de seis mil soldados rebeldes dirigiram-se para a região de Foz do Iguaçu, no sudoeste do Paraná, e formaram um destacamento que ficou conhecido como Coluna Paulista.

Em outubro de 1924, cerca de 2 mil soldados gaúchos rebelados, liderados pelo capitão Luís Carlos Prestes (1898-1990), deixaram o Rio Grande do Sul e dirigiram-se a Guaíra, no Paraná, para se juntarem à Coluna Paulista. Parte desses soldados estava descontente com o governo de Borges de Medeiros e com o Pacto de Pedras Altas.

Após se reunirem em 1925, os dois grupos decidiram percorrer o interior do país sob o comando de Prestes. O objetivo deles era uma revolta popular contra o governo. Reunindo cerca de 1 500 homens, a Coluna Prestes, como ficou conhecida, percorreu mais de 24 mil quilômetros.

Contudo, eles não receberam o apoio popular que esperavam. No Nordeste, cangaceiros foram contratados e armados por coronéis e membros do governo para combater a Coluna. Por fim, os frequentes ataques das tropas do governo, de jagunços e coronéis debilitaram a Coluna Prestes. Em 1927, parte da Coluna, sob o comando de Siqueira Campos, se retirou para o Paraguai. Outro grupo, sob o comando de Prestes, dirigiu-se para a Bolívia. Nessa época, 800 homens faziam parte da Coluna.

A Coluna Prestes

FONTE: Adaptado de: BUENO, Eduardo. Brasil: uma História. São Paulo: Leya, 2010. p. 312.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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3. A Revolução de 1930

De acordo com o arranjo político do café com leite, a sucessão de Artur Bernardes coube a Washington Luís (1926-1930), carioca de nascimento com carreira política em São Paulo. Em 1929, já no final de seu governo, o país foi atingido pela crise provocada pela queda da Bolsa de Valores de Nova York.

Desde o final da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos eram o principal comprador e financiador da produção de café no Brasil. Com a crise, os negócios foram interrompidos, derrubando o preço do café e causando o fechamento de fábricas, desemprego e queda nos salários. A crise, que afetava a economia no final do governo de Washington Luís, passou a influenciar a sucessão presidencial. A decisão do presidente de apoiar o paulista Júlio Prestes (1882-1946) para sua sucessão, em vez do candidato mineiro Antonio Carlos Ribeiro de Andrada (1870-1946), como previa a regra oligárquica, provocou o fim da aliança entre o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM), piorando a situação.

LEGENDA: Charge publicada na revista O Malho, em 1º de fevereiro de 1930. Ela acompanhava um editorial intitulado Os dois extremos. Do lado esquerdo, temos os retratos do ex-presidente Washington Luís e do candidato governista Júlio Prestes. Do direito, temos Getúlio Vargas (sob a forca) e seu candidato a vice, João Pessoa, representados de forma satirizada.

FONTE: O Malho Revista/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

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Inicialmente, grande parte da oposição aceitou o resultado das eleições. Mas o assassinato de João Pessoa, provocado por conflitos pessoais e disputas em seu estado, a Paraíba, deu início a um movimento político-militar que pôs fim à República oligárquica. Organizado por tenentes e pelos políticos derrotados nas eleições, ficou conhecido como Revolução de 1930, nome dado por seus líderes e apoiadores.

O movimento começou no dia 3 de outubro de 1930, quando revoltas armadas foram iniciadas simultaneamente no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais, sob a liderança de Getúlio Vargas e Juarez Távora (1898-1975), respectivamente. Apesar da resistência nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pará, o presidente Washington Luís foi deposto em 24 de outubro de 1930. Em seu lugar assumiu uma junta pacificadora, que entregou o poder a Getúlio Vargas em 3 de novembro de 1930.

Tinha início um novo momento na história republicana brasileira, conhecido como República Nova, em oposição à República oligárquica ou Primeira República (grande parte dos historiadores, porém, convencionou chamar o novo período de Era Vargas). Os acontecimentos de 1930 deram origem a diversas interpretações historiográficas. As mais tradicionais acreditam que o ano da Revolução foi o fim do poder das oligarquias. Outras análises, entretanto, afirmam que a chegada de Vargas ao poder não representou uma ruptura histórica e sim um reordenamento das elites em oposição aos movimentos sociais e aos interesses da população, que cada vez se mostrava mais atuante e exigente. A frase "Façamos a revolução antes que o povo a faça", atribuída ao governante de Minas Gerais e "revolucionário" de 1930, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, dá sustentação a essa visão.

Segundo outra interpretação, a "revolução" não passou de um golpe composto por civis e militares que não representou um rompimento radical. De acordo o jurista e sociólogo Evaristo Moraes Filho,

[...] 30 não significou nenhum rompimento radical com o passado, nem remoto nem recente. As lideranças empresariais passaram intactas para o novo regime, como viria a acontecer igualmente com as lideranças operárias colaboracionistas e com as oligarquias estaduais. Tontearam um pouco, mas não chegaram a ir à lona; logo refeitas, retomaram as rédeas dos seus interesses, das suas associações ou de seus domínios regionais.

Prefácio da obra GOMES, Ângela de Castro. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil 1917-1937. Rio de Janeiro: Campus, 1979. p. 15.

LEGENDA: Charge publicada na revista Careta em 22 de novembro de 1930, alguns dias após a ascensão de Vargas ao poder.

FONTE: Revista Careta, 1930/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

LEGENDA: Ao chegar à cidade do Rio de Janeiro, as tropas "revolucionárias" gaúchas, num gesto simbólico, amarraram seus cavalos no obelisco da avenida Rio Branco. Começava a Era Vargas. Foto de novembro de 1930.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

120

Leituras

Boxe complementar:

Luís Carlos Prestes foi crítico da união entre os tenentistas e as oligarquias dissidentes. Ele recusou-se a apoiar o movimento e redigiu um manifesto contra a Aliança Liberal. A seguir temos dois textos: um trecho desse manifesto de Prestes e a resposta do líder tenentista Juarez Távora.

Trecho do Manifesto de maio, 1930, por Luís Carlos Prestes

[...]


Não nos enganemos. Somos governados por uma minoria que, proprietária das terras, das fazendas e latifúndios e senhora dos meios de produção e apoiada nos imperialismos estrangeiros que nos exploram e nos dividem, só será dominada pela verdadeira insurreição generalizada, pelo levantamento consciente das mais vastas massas das nossas populações dos sertões e das cidades.

Contra as duas vigas-mestras que sustentam economicamente os atuais oligarcas, precisam, pois, ser dirigidos os nossos golpes - a grande propriedade territorial e o imperialismo anglo-americano. Essas são as duas causas fundamentais da opressão política em que vivemos e das crises econômicas sucessivas em que nos debatemos.

O Brasil vive sufocado pelo latifúndio, pelo regime feudal da propriedade agrária, onde se já não há propriamente o braço escravo, o que persiste é um regime de semiescravidão e semisservidão.

[...]


O governo dos coronéis, chefes políticos, donos da terra, só pode ser o que aí temos: opressão política e exploração impositiva.

[...]


Citado em: FAORO, Raimundo. Os donos do poder. 11. ed. São Paulo: Globo, 1995. p. 680.

Declaração de Juarez Távora, maio, 1930

Discordo do último manifesto revolucionário do Gal L. C. Prestes. [...] Não creio na exequibilidade da revolução desencadeada pela massa inerme do proletariado. [...] A revolução possível no Brasil terá [...] de continuar a apoiar-se nos mesmos meios em que tem sido alicerçada até aqui [...] Deverá haver, assim, lugar em suas fileiras [...] para o burguês e para o proletário. Mas não creio que lá cheguemos, adotando o exotismo dos conselhos de operários, marinheiros e soldados, que nos aconselha o Gal. L. C. Prestes. [...] Creio, sim, no equilíbrio e excelência de um regime baseado na representação proporcional de todas as classes [...] erigido em regulador imparcial de suas dependências e interesses recíprocos [...], seguindo a diretriz já apontada por Alberto Torres [...] ou por um caminho paralelo, que busque as novas tendências e necessidades [...] do nosso meio.

Citado em: Nosso século. São Paulo: Abril, 1985. p. 36, v. 5.

LEGENDA: Luís Carlos Prestes em foto da década de 1930.

FONTE: Reprodução/Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil

LEGENDA: Juarez Távora em foto de 1930.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Fim do complemento.

121

Atividades

Retome

1. Quais foram os grupos urbanos que mais reivindicavam direitos e criticavam o regime oligárquico no Brasil dos anos 1920? Que fatores propiciaram o fortalecimento desses grupos? O que eles aspiravam?

2. A respeito do movimento tenentista:

a) Quem eram seus integrantes?

b) Que propostas defendiam?

c) Quais foram os principais levantes protagonizados pelo movimento? Indique onde, quando e por que ocorreram, bem como os seus resultados.

3. Sobre a Coluna Prestes:

a) O que foi e quais eram seus objetivos?

b) Quem a integrou?

c) Como foi derrotada?

Pratique

4. Leia o fragmento abaixo, escrito pelo geógrafo Gilmar Mascarenhas de Jesus, que relaciona, entre outros temas, industrialização, operariado e futebol. Em seguida, faça o que se pede.

[...] em 1902, os paulistas organizam o primeiro campeonato de futebol no Brasil. No mesmo ano, surgem os primeiros campos de várzea, que logo se espalham pelos bairros operários; e já em 1908/1910 a várzea paulistana congregava vários e concorridos campeonatos, de forma que São Paulo não é apenas pioneira nacional no futebol "oficial", mas também (e sobretudo) no "futebol popular". É nesta cidade que, não por acaso, surge em 1910 aquele que, dentre os grandes clubes do futebol brasileiro, foi o primeiro a se formar a partir de uma base popular: o Sport Clube Corinthians Paulista.

Inicialmente, o futebol varzeano era tomado como desordem, encontro de vadios a ser disciplinado ou mesmo perseguido pela polícia. A imprensa de época estabelece uma clara distinção entre o futebol das elites, elegante e bem organizado, e o futebol varzeano, como se fossem modalidades e práticas sociais completamente diferentes e até mesmo opostas. O próprio Corinthians encontrou grande resistência para ingressar na liga oficial da cidade. Por volta de 1920, entretanto, a atividade já havia se disseminado a tal ponto que não havia como reprimi-la. A difusão do futebol enquanto prática popular de entretenimento se insere na própria formação da classe operária paulistana, como elemento de sua cultura. Certamente, o grande número de imigrantes e operários contribuiu para a rápida popularização do futebol em São Paulo. Nas palavras de Fátima Antunes:*

* ANTUNES, Fátima Martin. Futebol de fábrica em São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH-USP, 1992. p. 92.

[...] A cidade vivia intensamente a experiência do trabalho fabril e passava a conhecer a necessidade imperativa de sociabilidade e lazer; sobretudo aos domingos. Os clubes de várzea mantinham equipes de futebol e promoviam atividades sociais. [...]

[...] O fato de esta cidade concentrar um crescente número de estabelecimentos industriais favoreceu a difusão do "futebol de fábrica", incentivado pelas próprias empresas, como forma de cooptação do trabalhador, fazendo-o vestir a camisa da empresa.

JESUS, Gilmar M. Várzeas, operários e futebol: uma outra Geografia. GEOgraphia. Niterói, vol. 4, nº 8, p. 88-89.

a) Que relações o autor estabelece entre a industrialização de São Paulo e a popularização do futebol nessa cidade?

b) Em que medida a prática do futebol refletia os conflitos sociais que marcaram o Brasil da Primeira República?

c) O que é várzea? Com base em seus conhecimentos de Geografia, levante hipóteses sobre os fatores topográficos e econômicos que teriam levado os clubes operários paulistanos a se estabelecer nessa região.

Analise uma fonte primária

5. Observe as duas obras reproduzidas a seguir.

LEGENDA: Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, óleo sobre tela de Almeida Júnior, 1891.

FONTE: José Ferraz de Almeida Júnior/Pinacoteca do Estado de São Paulo, SP.

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LEGENDA: Família, óleo sobre tela de Tarsila do Amaral, 1925.

FONTE: Coleção Torquato Saboia Pessoa, SP/Licenciado por Tarsila do Amaral Empreendimentos

Agora, faça o que se pede.

a) Qual é a principal semelhança entre as duas pinturas?

b) Aponte as principais diferenças das duas obras no tocante ao uso de cores, contrastes, nuanças, formas, representação do espaço. Que efeitos esses recursos produzem?

c) Com base na comparação acima, aponte as inovações introduzidas pelo Modernismo na pintura brasileira.

d) Compare as famílias representadas em cada obra (número de membros, disposição hierárquica no espaço, vestimenta, afazeres, origem étnica e social, ambiente em que se encontram, etc.). Além das pessoas, que elementos são usados para representar as famílias? Que adjetivos você usaria para qualificar cada uma delas?

e) É possível afirmar que a ruptura produzida pelo Modernismo se restringiu à linguagem? Justifique sua resposta.

Articule passado e presente

6. Neste capítulo, você estudou a Primeira República e os diferentes movimentos que lutaram contra a hegemonia das oligarquias do poder político no Brasil. Leia o texto a seguir, que trata da permanência das oligarquias na América Latina na atualidade e as suas consequências sociais.

Somente no México, onde ocorreu uma revolução burguesa a exemplo das revoluções europeias, e nos países que se dirigiram ao socialismo - Cuba e Nicarágua - as oligarquias foram violentamente arrancadas do poder. Nos outros países, elas permaneceram como grupo subordinado das classes dominantes nacionais, mas cujas propriedades são até hoje intocáveis.

[...] pode-se afirmar que, na imensa maioria dos países da América Latina, as "forças da permanência" estão presentes quando ao estudar essas sociedades conclui-se que os aspectos mais visíveis da realidade desses países são as desigualdades sociais, a pobreza, a persistência da exclusão, a violência política e social, etc.

A permanência da exclusão social comprova-se, por exemplo, quando os informes econômicos dão conta de que no Brasil aproximadamente um terço de toda a população não participa da economia capitalista, não forma parte do mercado de trabalho e tampouco do mercado consumidor. Estas cifras estão presentes em muitos países da América Latina em maior ou menor grau, o que atesta a permanência de características do sistema social oligárquico, que simplesmente excluía parte da população dos benefícios sociais. [...]

A segregação à qual está submetida grande parte do povo latino-americano também está relacionada com a manutenção da tradição oligárquica, principalmente no que se refere ao preconceito racial. Ainda que de forma velada, na maioria dos países latino-americanos, as elites dominantes mantém a concepção da superioridade da raça branca frente ao mundo indígena ou africano. E a apologia da mestiçagem, efetuada inclusive por pensadores progressistas como o mexicano José Vasconcelos, tende a redobrar a discriminação contra as minorias nacionais.

A existência de grandes desigualdades regionais também é fruto de uma permanência da tradição oligárquica. As regiões que acumularam capitais através do setor primário-exportador, e que foram privilegiadas no contexto político do sistema oligárquico, foram as que mais cresceram e se industrializaram e que seguem liderando grande parte das riquezas do país, dando origem a fortes atritos. No Brasil, esta região é o Sudeste cafeeiro; na Argentina, o porto de Buenos Aires; no Chile, a região mineradora, assim como no Peru e no México. [...]

Outro problema recidivo é o da dependência estrutural. Apesar das grandes discussões acerca da teoria da dependência, este fenômeno obviamente não desapareceu e constitui-se como uma das mais fortes características de nossas sociedades.

WASSERMAN, Claudia. A manutenção das oligarquias no poder: as transformações econômico-políticas e a permanência dos privilégios sociais. In: Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUC-RS, v. XXIV, n. 2, dez. 1998.

Agora, faça o que se pede.

a) Segundo a autora, de que modo as oligarquias latino-americanas foram afastadas do poder no início do século XX?

b) Que características atuais das sociedades latino-americanas a autora relaciona às "forças da permanência" da tradição oligárquica?

c) O texto foi escrito há quase 20 anos. É possível afirmar que a avaliação da realidade latino-americana feita pela autora continua válida para o Brasil? Justifique sua resposta.

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CAPÍTULO 7: Brasil: a Era Vargas

LEGENDA: Deputados contrários ao projeto de lei que flexibiliza as leis trabalhistas erguem carteiras de trabalho durante protesto na Câmara dos Deputados, em Brasília, Distrito Federal. Foto de 2015.

FONTE: André Dusek/Agência Estado

Criada em 1943, durante a Era Vargas, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) regeu as relações entre patrões e empregados no Brasil por mais de setenta anos, tendo sofrido poucas alterações ao longo desse tempo. Nos últimos anos, porém, diversos projetos de lei propuseram mudanças radicais na CLT. Adaptação aos novos tempos? Retrocesso nos direitos sociais? Qual é a sua opinião sobre o tema?

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1. Vargas à frente do governo

A Revolução de 1930 viabilizou-se com o apoio das oligarquias dissidentes que participaram da Aliança Liberal. A mobilização dos tenentistas, com Getúlio Vargas à frente, foi decisiva para destituir o presidente Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes. Vargas contou também com os anseios de grupos sociais urbanos que exigiam mudanças políticas.

A estabilização do novo governo ocorreu durante o entreguerras, período de turbulência política que sucedeu a ascensão dos governos totalitários nazifascistas e a consolidação stalinista.

O início do governo de Getúlio Vargas foi dedicado a resolver os efeitos da crise econômica mundial, iniciada em 1929, na economia brasileira. Isso teve de ser feito levando em conta os interesses das oligarquias, tanto as dissidentes, participantes da Aliança, como a poderosa oligarquia cafeeira, além das elites industriais de São Paulo e Minas Gerais.

LEGENDA: Getúlio Vargas assumindo o poder no Palácio do Catete, na cidade do Rio de Janeiro, 1930.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

FONTE: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Outras exigências faziam parte desse emaranhado de interesses: as dos tenentistas, que desejavam centralização e mudanças no sistema eleitoral; as dos setores médios urbanos, que queriam conquistar espaços e direitos; as dos operários, que lutavam por conquistas trabalhistas; e as da população rural em busca de melhores condições de vida e inclusão social. O setor rural tinha grande peso. De acordo com o censo1, o setor representava mais de 68% da população brasileira em 1940.

1 Dados disponíveis em: http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=POP122. Acesso em: 11 mar. 2016.

Para encarar o desafio de superar a crise econômica numa ordem mundial turbulenta, Vargas organizou um Estado centralizado e desenvolvimentista, sobrepondo-se ao predomínio da oligarquia cafeeira nas questões políticas.

Para manter-se no cargo, Vargas buscou o apoio de vários grupos sociais. Entre esses grupos, estava boa parte dos integrantes do movimento tenentista. Aqueles que defendiam reformas mais profundas, como Luís Carlos Prestes, foram desconsiderados, silenciados ou presos. Outros, simpatizantes das propostas fascistas que ganhavam força na Europa, fundaram as Legiões Revolucionárias, com membros em vários estados. Esses grupos apoiavam o governo de Vargas e atraíam segmentos populares.

A burguesia industrial e os grupos médios urbanos, inicialmente relutantes em apoiar o governo, em poucos anos juntaram-se a Getúlio. Nos dias seguintes à tomada do poder, apareceram as primeiras demandas paulistas, especialmente do




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Partido Democrático (PD). Porém, como veremos, da breve oposição nos anos iniciais, passaram a apoiar o regime, assim como as oligarquias agrárias não ligadas à cafeicultura. Todos tinham a expectativa de obter maior participação nas decisões governamentais, especialmente na área econômica.

Leituras

Boxe complementar:

No texto a seguir, o historiador brasileiro Boris Fausto apresenta aspectos do período entreguerras, no qual a implantação de regimes autoritários teve início na Europa.

Tempos de governos "fortes"

No mundo dos anos 1930, parecia não haver lugar para os liberais. O fenômeno da implantação de regimes autoritários começara a ocorrer na Europa, após a Primeira Guerra Mundial, com a ascensão do fascismo na Itália, em 1922. A crise aberta de 1929 iria potencializar essa tendência, na medida em que a suposta agonia do capitalismo vinha acompanhada da suposta agonia de seu correlato - a liberal-democracia. Os problemas da sociedade e do sistema político pareciam residir no individualismo; na política partidária, que fragmentava o organismo de uma nação; nos parlamentos ineficientes e representativos de interesses mesquinhos.

A resposta para esses problemas, oscilando entre o autoritarismo e o totalitarismo, tinha alguns traços básicos comuns: a crença nos governos "fortes", significando o reforço do poder do Estado, encarnado no Executivo e personificado por uma figura dominante central; a recusa a admitir como natural a diversidade de opiniões, um malefício a ser combatido com o cerceamento da liberdade de expressão; a crença na capacidade dos técnicos, a serviço da eficiência do governo, em detrimento da ação dos políticos; a opção pela representação de interesses na forma corporativa, sob o guarda-chuva do Estado, e a consequente descrença na representação política individual, expressa no sufrágio universal.

FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 69-70.

LEGENDA: Mussolini, líder fascista italiano, discursando para a juventude fascista. Foto produzida na década de 1930.

FONTE: Fox Photos/Getty Images

Fim do complemento.

126

A oligarquia cafeeira, a princípio oposta a Vargas por ter perdido o controle político, continuou tendo seus interesses econômicos atendidos pelo novo governo. Para amenizar os efeitos da crise mundial de 1929, o Estado comprava a produção excedente de café e a destruía. Isso diminuía a oferta do produto e garantia seu preço no mercado internacional. Entre 1930 e 1937 foram destruídos quase 80 milhões de sacas.

Em seu governo, Getúlio Vargas promoveu uma ampla reforma na legislação trabalhista. Entre as mudanças, estavam a legalização e o controle dos sindicatos. Criou também um conjunto de leis voltadas para atender anseios dos trabalhadores, além de órgãos para mediar os conflitos entre empregados e patrões (sindicatos). Com essas medidas, Vargas conseguiu o apoio de parte do operariado. Algumas dessas medidas são consideradas populistas e paternalistas. Elas criaram uma imagem positiva do presidente entre a população. Destacaremos essas práticas mais à frente.

Foram quinze anos seguidos de governo Vargas, com grandes transformações econômicas. Entre elas, destacam-se, o forte impulso industrial e urbano. Como veremos no Capítulo 10, Vargas ainda voltaria ao poder em 1951, deixando-o após seu suicídio em 1954. Além de sua influência na história brasileira, ele deixou um imenso manancial de fontes historiográficas. O professor Pedro Cezar Dutra Fonseca, do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aponta:

LEGENDA: Para aumentar a procura e diminuir a oferta do café, aumentando os preços, Vargas autorizou a queima da produção excedente. Na foto, queima de café em Santos, São Paulo, 1931.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

O fato de estar quase sempre à frente dos acontecimentos, desde líder estudantil, na primeira década do século 20, até seu segundo governo, na década de 1950, possibilita que jornais e revistas constituam preciosa fonte de pesquisa, com entrevistas, artigos, opiniões, críticas, discursos reproduzidos na íntegra ou em excertos.

Por outro lado, seus discursos mais importantes, desde a campanha presidencial de 1929, estão praticamente publicados, fruto da propaganda do Estado Novo. Neste período, muitas dessas obras eram fartamente distribuídas. Só a coleção A nova política do Brasil, com discursos e entrevistas principalmente da década de 1930, perfaz 11 volumes; e O governo trabalhista do Brasil, com material referente aos anos 50, compreende mais 4 volumes com mais de 2 mil páginas. Além destes, há outras publicações [...], as quais possibilitam uma riqueza ímpar de fontes para o estudo de seu pensamento. O fato de ter sido eleito membro da Academia Brasileira de Letras certamente contribuiu para este legado, pois a mesma tinha por hábito publicar toda a obra de seus imortais. Objeto de crítica pela oposição, hoje o vasto material enriquece o conhecimento histórico da chamada "Era Vargas".

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. As fontes do pensamento de Vargas e seu desdobramento na sociedade brasileira. Disponível em: http://professor.ufrgs.br/pedrofonseca/files/as_fontes_do_pensamento_de_vargas_e_seu_desdobramento_na_sociedade_brasileira.pdf. Acesso em: 24 fev. 2016.

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Vivendo naquele tempo

Boxe complementar:

Culturas urbanas no Rio de Janeiro

O rápido crescimento do Rio de Janeiro e a efervescência política provocada pela Revolução de 1930 transformaram radicalmente as práticas culturais urbanas, nas décadas de 1930 e 1940. A industrialização acelerada, a imigração europeia e o aumento populacional do Rio de Janeiro propiciaram o surgimento de atividades de lazer e cultura relacionadas ao cinema, ao teatro e aos espetáculos noturnos.

A ampliação da escolaridade, ainda que restrita aos setores médios, estimulou o mercado editorial, que se diversificou em diversas publicações de jornais, revistas e livros. Revistas semanais ilustradas, como O Cruzeiro, Fon Fon e Careta, circulavam a preços populares em bancas nas ruas, oferecendo notícias, análises políticas, curiosidades e muitas imagens.

O rádio era o grande veículo de comunicação de massa, popularizado graças ao desenvolvimento tecnológico e industrial que barateou os aparelhos. Todos os dias, as principais emissoras, como a rádio Mayrink Veiga, a Rádio Nacional e a Rádio Tupi, transmitiam episódios de radionovela e programas de calouros. Programas de música ao vivo também eram transmitidos e contavam com a presença de grandes intérpretes e compositores, como Francisco Alves (1898-1952), Dalva de Oliveira (1917-1972), Vicente Celestino (1894-1968), entre outros.

A indústria cultural nascente se diversificava, associada às tendências dos países centrais. Artistas e intelectuais brasileiros conviviam com cineastas, dramaturgos e pintores europeus e estadunidenses.

O Rio de Janeiro se tornava uma "vitrine" do país, internacionalmente conhecido graças às suas belezas naturais e à sua efervescência cultural. Novas salas de cinema e teatro eram inauguradas, surgiam revistas especializadas na vida das celebridades. Os hábitos de consumo de bens duráveis e eletrodomésticos dominavam os desejos dos setores médios.

A cidade se modernizava em meio a intensas contradições sociais e tensões raciais na vida cotidiana. Por um lado, o espaço público tornava-se o grande cenário da vida cultural carioca; por outro, os salões de festa e os clubes fechados ofereciam lazer para as elites e a alta classe média em busca de distinção social. A população pobre e negra vivia nos morros e nas regiões mais afastadas, em habitações inadequadas, ocupava os piores empregos e sofria com diversas formas de discriminação.

Ao mesmo tempo, ainda havia espaços para o convívio entre as classes sociais, especialmente por meio da música, do lazer na praia e do futebol nas ruas e áreas livres. Assim, a modernidade se constituiu na contradição entre, de um lado, as novidades e transformações da cultura de massas e, de outro, as desigualdades e exclusões da velha sociedade aristocrática e colonial.

LEGENDA: O cineasta estadunidense Orson Welles (1915-1985) durante o Carnaval no Rio de Janeiro, em 1942.

FONTE: Hart Preston/The LIFE Picture Collection/Getty Images

Fim do complemento.

128

2. Vargas e o Governo Provisório (1930-1934)

Na liderança da Revolução de 1930, Getúlio Vargas assumiu o poder e tomou medidas centralizadoras: suspendeu a Constituição em vigor e fechou o Congresso Nacional, as Assembleias Estaduais e as Câmaras Municipais. Também substituiu os governantes estaduais por pessoas de sua confiança - os chamados interventores, em geral tenentes - exceto no estado aliado de Minas Gerais.

Vargas criou ainda dois novos ministérios: o da Educação e Saúde Pública e o do Trabalho, Indústria e Comércio. Regulamentou direitos trabalhistas, como a limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias e férias anuais remuneradas de 15 dias. Além disso, proibiu o emprego de mulheres e crianças no período noturno e em locais insalubres.

A Revolução Constitucionalista de 1932

Como vimos, diversos interesses estavam envolvidos na Revolução de 1930. Nesse cenário, a nomeação por Getúlio do tenentista pernambucano João Alberto Lins de Barros (1897-1955) como interventor no estado de São Paulo aguçou as críticas dos paulistas. Os cafeicultores do Partido Republicano Paulista (PRP) e os membros do PD exigiam que um governante civil - Pedro de Toledo - assumisse no lugar do interventor João Alberto. Também buscavam diminuir a centralização do poder presidencial e defendiam uma nova constituição no lugar da que havia sido suspensa em 1930.

Em fevereiro de 1932, o PRP e o PD uniram-se formando a Frente Única Paulista (FUP). Por sua vez, Vargas buscou ampliar sua base de legitimidade instituindo por decreto, no mesmo mês, um novo Código Eleitoral para o país: o sistema de eleição passava a funcionar por sufrágio universal direto, voto secreto e representação proporcional. Todos os brasileiros alfabetizados, maiores de 21 anos, incluindo as mulheres, seriam eleitores.

LEGENDA: Passeata em apoio à causa paulista na cidade de São Paulo. Foto de 1932.

FONTE: Acervo particular/Arquivo da editora

Contudo, os ânimos dos paulistas continuavam acirrados. Manifestações a favor da elaboração de uma nova Constituição e contra o intervencionismo do governo federal multiplicavam-se em São Paulo. Em uma delas, em maio de 1932, quatro estudantes foram mortos: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo. As iniciais de seus nomes, MMDC, transformaram-se em símbolo da luta dos paulistas pela Constituição.

Em 9 de julho de 1932, teve início um levante armado em São Paulo contra o governo federal, sob a liderança de membros da FUP e de militares. O movimento contou com o apoio da Força Pública do Estado e da imprensa paulista, que convocou o povo ?à luta por meio de uma intensa propaganda em jornais, revistas e emissoras de rádio.

LEGENDA: Cartão-postal em homenagem aos estudantes mortos (MMDC), de 1932.

FONTE: CPDOC/CDA Roberto Costa

129

No começo da mobilização dos "voluntários", que se reuniam na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco desde a manhã do dia 10, a sensibilidade popular formulou outra interpretação da sigla MMDC: "mata mineiro, degola carioca", numa clara demonstração do regionalismo como atitude característica das estruturas políticas e ideológicas.

ABREU, Marcelo Santos de. Regionalismo e ação simbólica: a Revolução de 1932 como drama social. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 36, n. 1, p. 163-179. 2013. Disponível em: http://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/2791/2024. Acesso em: 30 mar. 2016.

Mais de 200 mil homens alistaram-se nas forças constitucionalistas, incluindo voluntários de outros estados, como Rio de Janeiro, Paraná e Pará. A população participou do esforço de guerra com a doação de "ouro para o bem de São Paulo", como era dito na campanha. As mulheres tiveram importante atuação, servindo de enfermeiras ou costurando uniformes para os combatentes.

O governo federal, por sua vez, contou com a ajuda de batalhões de diversos estados aliados. O conflito se encerrou após uma série de derrotas dos constitucionalistas, que se renderam em setembro de 1932.

Forças legalistas de 1932 e a resistência paulista

LEGENDA: Organizado pelo autor.

FONTE: Arrecadação de ouro para a Revolução, na Praça do Patriarca, na cidade de São Paulo, 1932.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Leituras

Boxe complementar:

Muitas das diversas publicações existentes sobre a Revolução Constitucionalista apresentam uma versão heroica dos fatos. Leia a seguir algumas observações do historiador Marcelo Santos de Abreu sobre esse assunto.

A Revolução Constitucionalista além dos memorialistas

É certo que a Revolução Constitucionalista não foi um movimento da "plutocracia" apenas, ou da "oligarquia", mas esteve muito longe da unanimidade que atravessava "todas as classes sociais" pretendida por seus memorialistas. Da mesma forma, [...] a "união sagrada dos paulistas" não era apenas a unidade em torno de um "ideal", mas uma coalizão das frações da classe dominante ou das facções da elite política tão débil quanto aquela que levara Getúlio Vargas ao poder em 1930. De fato, a história representada no memorialismo aproxima-se do mito uma vez que insistia em ressaltar a coesão social resultante de uma crise.

Glossário:

plutocracia: sistema de governo em que o poder é exercido pelo grupo mais rico. O termo vem do grego (ploutos: 'riqueza'; kratos: 'poder').

Fim do glossário.

Esta análise preliminar do memorialismo revolucionário e da historiografia crítica torna evidente que a produção da história em qualquer registro é análoga à dinâmica da memória social, feita de lembrança e esquecimento. E que a preocupação de narrar, mobilizando os recursos da memória para configurar um testemunho ou da razão para elaborar uma interpretação crítica dos acontecimentos socialmente relevantes, é feita de menção e silêncio.

ABREU, Marcelo Santos de. A Revolução Constitucionalista de 1932: memorialismo, historiografia, produção do silêncio. Disponível em: http://revistadiscenteppghis.files.wordpress.com/2009/05/marcelo-abreu-a-revolucao-constitucionalista-de-1932_-memorialismo-historiografia-producao-do-silencio.pdf. Acesso em: 30 mar. 2016.

Fim do complemento.

130

A Constituição de 1934

Com a vitória sobre os paulistas, Vargas adotou uma atitude conciliatória e convocou eleições para escolher parlamentares encarregados de elaborar uma nova Constituição. Nessas eleições, ocorridas em maio de 1933, mulheres puderam votar e ser votadas pela primeira vez na história brasileira.

Assim, em 1932, foi promulgado o novo Código Eleitoral (Decreto nº 21.076, de 24.2.1932) [...]. Estava assegurada a cidadania política às mulheres brasileiras, embora sem a exigência da obrigatoriedade do alistamento eleitoral e do voto.

Essa legislação permitiu que fosse eleita a primeira parlamentar de nossa história. Assim, no dia 13 de março de 1934, uma voz feminina se fez ouvir, pela primeira vez, no plenário do Palácio Tiradentes, sede da Câmara dos Deputados e dos trabalhos da Assembleia Constituinte. Tratava-se de Carlota Pereira de Queirós, uma médica paulista e primeira deputada federal do Brasil, eleita pelo voto popular: "Além de representante feminina, única nesta Assembleia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira, integrada nos destinos do seu país e identificada para sempre com os seus problemas [...]".

CÂMARA dos Deputados. Mulher e cidadania: 80 anos do voto feminino. Disponível em: www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/museu/exposicoes-2012/mulher-e-cidadania-80-anos-do-voto-feminino. Acesso em: 2 fev. 2016.

Os parlamentares eleitos formaram a Assembleia Constituinte, que iniciou os trabalhos em novembro de 1933. A nova Constituição foi promulgada em julho de 1934. Suas principais características eram:

- manutenção do regime federativo e presidencialista e da separação dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário);

- extinção do cargo de vice-presidente;

- voto secreto e eleições diretas para os poderes Executivo e Legislativo da União, dos estados e dos municípios;

- voto feminino;

- regulamentação de várias leis trabalhistas;

- criação do mandado de segurança para defender o cidadão contra abusos do Estado;

- ensino primário obrigatório e gratuito.

Após a promulgação da Constituição, a Assembleia Constituinte transformou-se em Câmara dos Deputados. Uma de suas atribuições era eleger o novo presidente da República. Getúlio Vargas foi o escolhido para um mandato de quatro anos, sem direito à reeleição.

LEGENDA: Instalação da Assembleia Constituinte de 1934, da qual participou a deputada Carlota Pereira de Queirós, primeira mulher a ocupar um cargo no Legislativo federal brasileiro.

FONTE: Coleção Carlota Queiroz/Arquivo da editora

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3. Governo Constitucional (1934-1937)

Quando Getúlio Vargas assumiu o cargo de presidente constitucional em julho de 1934, cresciam no cenário internacional os extremismos políticos e ideológicos, bem como o poderio estatal, o intervencionismo e o armamentismo. Nos Estados Unidos, o presidente Franklin Roosevelt colocava em prática as medidas do New Deal para enfrentar a depressão em curso. Na Europa, o fascismo e o nazismo se consolidavam. Simpatizantes do totalitarismo em avanço na Europa, o presidente e alguns de seus ministros aproximaram-se dos regimes fascistas de Mussolini, na Itália, e de Hitler, na Alemanha.

No Brasil também ocorria forte polarização. Diversos projetos políticos ganhavam apoio das populações urbanas. Em outubro de 1932, Plínio Salgado, um ex-deputado do PRP, fundou a Ação Integralista Brasileira (AIB). Inspirada no fascismo, a organização era apoiada por grandes proprietários, empresários, membros da classe média, parte do operariado e oficiais das Forças Armadas. Seus integrantes pregavam a criação de um Estado integral, isto é, uma ditadura nacionalista de partido único, e a luta contra o comunismo. Com o lema "Deus, Pátria e Família", o discurso integralista atraiu milhares de pessoas.

LEGENDA: Como os fascistas italianos e os nazistas alemães, os integralistas também tinham uma organização paramilitar. Seus paramilitares eram apelidados de "galinhas-verdes", por causa do uniforme com camisa verde. Possuíam como símbolo o Σ (sigma, décima oitava letra do alfabeto grego) e faziam a saudação Anauê!, com o mesmo gesto de braço estendido utilizado por extremistas de direita na Europa. Na foto, produzida na década de 1930, mulheres integralistas em Matão, São Paulo.

FONTE: Coleção particular/Arquivo da editora

Dois anos depois, comunistas, socialistas e liberais democratas uniram-se na Aliança Nacional Libertadora (ANL), que era formada por membros da classe média, do operariado e das Forças Armadas, a maioria de baixa patente. A organização pregava a reforma agrária, o estabelecimento de um governo popular democrático, a nacionalização de empresas estrangeiras e a suspensão definitiva do pagamento da dívida externa.

A ANL atraiu milhares de adeptos em todo o país. Porém, suas críticas ao governo federal e a defesa de um governo popular com características comunistas serviram para Getúlio Vargas declará-la ilegal em julho de 1935, com base na Lei de Segurança Nacional.

Glossário:

Lei de Segurança Nacional: conjunto de normas que determina quais atitudes e práticas são consideradas crimes contra a segurança nacional e suas respectivas penas. A lei foi aprovada como Lei nº 38 em abril de 1935 e, no ano seguinte, ganhou ainda maior rigor com o Tribunal de Segurança Nacional.

Fim do glossário.

Incorriam nos dispositivos da nova lei todos os que tentassem o recurso da força como meio de acesso ao poder, que estimulassem manifestações de indisciplina entre as forças armadas, que atentassem contra a vida das pessoas por motivos de ordem ideológica ou doutrinária e que tentassem executar planos de desorganização dos serviços urbanos e dos sistemas de abastecimento. A lei estabelecia sanções para jornais e emissoras de rádio que veiculassem matérias consideradas subversivas, previa a cassação de patentes de oficiais das forças armadas cujo comportamento fosse considerado incompatível com a disciplina militar e autorizava o chefe de polícia a fechar entidades sindicais suspeitas.

KELLER, Vilma. Direito e Literatura: Vargas, o Estado Novo, a Lei de Segurança Nacional e o habeas corpus em favor de Olga Benário Prestes. A História entre foices, martelos e tocas. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10245/direito-e-literatura-vargas-o-estado-novo-a-lei-de-seguranca-nacional-e-o-habeas-corpus-em-favor-de-olga-benario-prestes/1. Acesso em: 12 abr. 2016.

Em novembro de 1935, os comunistas liderados por Luís Carlos Prestes, que também era líder da ANL, tentaram promover uma revolução, denominada posteriormente Intentona Comunista. O objetivo da revolta era derrubar Getúlio Vargas e instaurar o comunismo no Brasil. A revolta foi rapidamente sufocada pelo governo federal, que decretou estado de sítio no país.

Glossário:

intentona: plano insensato ou revolta frustrada.

Fim do glossário.

132

LEGENDA: Tropas governamentais no combate à Intentona Comunista, novembro de 1935, na cidade do Rio de Janeiro.

FONTE: Arquivo/Agência Estado

Muitos líderes da Intentona foram perseguidos, presos e torturados. Prestes foi preso em 1936 e condenado a nove anos de prisão, em regime solitário. Derrotado, o levante comunista serviu como pretexto para Vargas endurecer o regime, obter do Congresso a aprovação de medidas de exceção, como o estado de guerra, e ampliar a repressão.

Glossário:

estado de guerra: situação que prolonga a vigência do estado de sítio, aumentando seu alcance e possibilitando o início de mobilização militar visando a operações de guerra.

Fim do glossário.

No campo: oligarquias, coronéis, miséria e religiosidade

O meio rural brasileiro, que reunia mais de 68% da população, segundo o Censo de 1940, pouco tinha mudado desde as primeiras décadas da República. Problemas como seca, miséria e condições desumanas de trabalho persistiam. Foi nesse quadro que na região do Crato, cidade do sertão do Ceará, o beato negro José Lourenço, seguidor do padre Cícero Romão Batista, instalou uma comunidade religiosa, Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. No final dos anos 1920, a comunidade passou a atrair inúmeros migrantes.

Não faltaram as acusações, já no início dos anos 1930, de que o Caldeirão seria uma nova Canudos, que formava um arraial de fanáticos e comunistas, além de acumular armas e munição e de ser uma ameaça ao Estado. Elites regionais, clérigos católicos, imprensa cearense e as autoridades federais se opunham à comunidade.

Em setembro de 1936, a comunidade foi fortemente atacada por uma expedição das Forças Armadas, que deixou centenas de mortos. O beato José Lourenço conseguiu escapar, refugiando-se com algumas famílias na serra do Araripe. Continuamente perseguidos, em 1937 foram atacados por terra e por ar, com metralhadoras e bombas, e totalmente dispersados. O beato José Lourenço escapou mais uma vez, falecendo na cidade de Exu, Pernambuco, em 1946. A estimativa do número de mortos varia de acordo com as fontes, indo de 200 a mil pessoas.

Na mesma época, os últimos bandos de cangaceiros foram encurralados ou abandonaram a luta. Lampião, o mais famoso deles, foi morto pela polícia alagoana em 1938.

LEGENDA: Mulheres, crianças e idosos capturados pela polícia e pelos militares durante o ataque à comunidade Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, em 1936.

FONTE: Reprodução/História Viva/Editora Duetto

133

Leituras

Boxe complementar:

O texto a seguir fala sobre o Levante potiguar, ocasião em que, durante alguns dias, em 1935, a cidade de Natal e outras cidades do interior do Rio Grande do Norte testemunharam um levante organizado pelos grupos comunistas.

Levante potiguar

Natal amanheceu tranquila naquele sábado, 23 de novembro de 1935. A capital do Rio Grande do Norte tinha, então, uma população de 40 mil habitantes. Na cidade pouco industrializada, o movimento portuário era intenso. Navios seguiam para a Europa carregando sal e algodão - os principais produtos da economia potiguar. A calmaria daquele dia começou a ser perturbada com a chegada de uma carta do chefe da Região Militar para o comandante do 21º Batalhão de Caçadores (BC). Nela, o general Manuel Rabello autorizava a dispensa de praças suspeitos de participação em assaltos a bondes.

A notícia da expulsão de quase 30 soldados causou silenciosa revolta no quartel. À tarde, militares do 21º BC reuniram-se com dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) estadual para examinar a situação. Às 19h30, no mesmo quartel, o cabo Giocondo Alves Dias, o sargento Quintino Clementino de Barros e o soldado Raimundo Francisco de Lima, muito bem armados, renderam o oficial de dia: -O senhor está preso, em nome de Luís Carlos Prestes".

Dominado, o quartel foi aberto para os civis que apoiavam o movimento. [...] No dia seguinte, domingo, Natal já estava integralmente sob controle dos insurretos.

[...]

A conquista do interior do estado passou para a ordem do dia, com a formação de três colunas de combatentes. Segundo Homero Costa, em seu livro A insurreição comunista de 1935, a primeira deveria seguir em direção a Mossoró; a segunda, até a divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba; e a última, para a cidade de Goianinha.

Os revolucionários ocuparam 17 dos 41 municípios potiguares e, quando possível, entregaram o poder a personalidades locais ligadas à Aliança Nacional Libertadora (ANL).

[...]


Em julho de 1935, Prestes lançou um manifesto que terminava assim: -Abaixo o fascismo! Abaixo o governo odioso de Vargas! Por um governo popular nacional revolucionário! Todo poder à ANL!".

O plano insurrecional contava com o apoio da Internacional Comunista (IC), que enviou alguns de seus assessores - Olga Benário entre eles - para o Brasil. A ação começaria com levantes militares a serem acompanhados pela mobilização de trabalhadores em greve em todo o território nacional.

Em princípio, no dia 23 de novembro, o PCB de Natal procurou convencer os militares subalternos do 21º BC a não se rebelar. Argumentou que ainda não era o momento. Ante a inevitabilidade do levante, os comunistas dele participaram e se tornaram os seus dirigentes. No dia 24, militares sublevaram-se em Recife, sendo vencidos um dia depois.

Pegos de surpresa pelo levante na capital do Rio Grande do Norte, a direção nacional do partido e os agentes da IC decidiram colocar em marcha movimentos no Distrito Federal e em alguns estados. Só conseguiram levar o plano adiante no Rio de Janeiro, sendo vencidos no fim da manhã do dia 27.

[...]

MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi L. de. Levante potiguar. História Viva. São Paulo: Segmento, ano VI, n. 62. p. 68, 70 e 71. [s.d.].

LEGENDA: Fachada do Quartel da Polícia Militar de Natal após o bombardeio ocorrido entre os dias 23 e 24 de novembro de 1935.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

Fim do complemento.

134

Vargas e o golpe para instalar o Estado Novo

O mandato constitucional do presidente Vargas deveria se estender até maio de 1938. Três candidatos se apresentaram no início de 1937 para disputar a sucessão: Armando de Salles Oliveira (1887-1945), ex-governador de São Paulo, lançado pelas elites paulistas; o escritor paraibano José Américo de Almeida (1887-1980), aparentemente apoiado pelo presidente; e o líder integralista Plínio Salgado (1895-1975).

Getúlio, governando em "estado de guerra", não estava disposto a deixar a Presidência. Um golpe de Estado foi arquitetado com o auxílio dos generais Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) e Góis Monteiro (1891-1963). O pretexto para o golpe foi a apresentação de um documento que anunciava uma insurreição comunista. O "documento" revelava um plano dos comunistas para tomar o poder, assassinar as principais lideranças políticas do país e incendiar as igrejas. No entanto, esse "documento" era falso. A farsa foi montada por alguns militares integralistas e membros do governo e ficou conhecida como plano Cohen, pois o autor do suposto plano de ação seria um comunista chamado Bela Cohen. A inventada ameaça comunista foi divulgada pelos jornais simpáticos ao governo e transmitida pelo rádio, em outubro de 1937, para justificar a prisão de opositores e a censura à imprensa. Em 10 de novembro de 1937, Getúlio determinou o fechamento do Congresso Nacional e dos legislativos estaduais e municipais, suspendeu a realização das eleições presidenciais, extinguiu os partidos políticos e revogou a Constituição de 1934. Era a instalação, assim, do período ditatorial de seu governo, chamado de Estado Novo.

LEGENDA: Charge de J. Carlos sobre o processo sucessório de 1937. Getúlio Vargas espalha cascas de banana diante do Palácio do Catete, sede da Presidência da República.

FONTE: Reprodução/Coleção particular

LEGENDA: Tropas do Exército cercam o Senado em 10 de novembro de 1937, dia do golpe do Estado Novo.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

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4. Vargas e a Ditadura do Estado Novo (1937-1945)

Logo após o golpe, entrou em vigor uma nova Constituição, elaborada pelo ministro da Justiça, Francisco Campos (1891-1968), e inspirada nas constituições fascistas da Itália e da Polônia - daí seu apelido de Polaca. Com ela o poder político concentrava-se completamente nas mãos do presidente da República, um ditador com plenos poderes numa época de governantes autoritários.

No livro Memórias do cárcere (1953), o escritor Graciliano Ramos (1892-1953), com ironia cáustica, afirmou que o Estado Novo era o "nosso pequenino fascismo tupinambá". Porém, mesmo sendo autoritário e centralizador, o Estado Novo foi distinto dos regimes nazifascistas europeus. Ele não integrava um partido político nem tinha, como os nazifascistas, uma certa legitimação por meio de uma visão histórica: restaurar o Império Romano, com Mussolini, ou a ideia do Terceiro Reich, o terceiro império alemão, com Hitler.

A Carta ditatorial foi outorgada por Vargas e nunca entrou plenamente em vigor, pois precisava ser referendada por um plebiscito que nunca ocorreu. Enquanto isso, o presidente governou por meio de decretos-lei.

Glossário:

decreto-lei: lei imposta pelo presidente da República, em vez de votada pelo Poder Legislativo.

Fim do glossário.

Em dezembro de 1937, Getúlio decretou o fechamento de todos os partidos do país - até mesmo da Ação Integralista Brasileira (AIB). Os integralistas romperam com Vargas e tentaram um golpe de Estado em 1938, atacando o Palácio da Guanabara, residência do presidente. Com a chegada de reforços militares, líderes e participantes do movimento integralista foram presos, encerrando a tentativa de golpe.

LEGENDA: A exemplo dos regimes totalitários da Europa, Vargas investiu em propagandas que o exaltavam durante o Estado Novo, na década de 1930.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)

Getúlio Vargas preocupou-se com a propaganda oficial do governo desde sua chegada ao poder no Governo Provisório. Em 1931, Vargas criou o Departamento Oficial de Publicidade e, em 1934, o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. O objetivo desses órgãos era divulgar uma imagem positiva do governo.

Já durante a ditadura, em 1938, o órgão da propaganda transformou-se no Departamento Nacional de Propaganda (DNP) e no ano seguinte no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Além de insistir numa imagem positiva do governo, o DIP também garantia o apoio da opinião pública e censurava os meios de comunicação (emissoras de rádio, jornais, livros, cinema) que fizessem oposição ao governo.

Em 1938, o governo lançou o programa Hora do Brasil, veiculado pela Rádio Nacional, emissora de propriedade do Estado brasileiro. Durante uma hora, eram divulgadas notícias positivas do governo, intercaladas com música brasileira. O programa existe até hoje, renomeado como A voz do Brasil.

A propaganda governamental e o culto à personalidade de Vargas eram feitos também por meio da imprensa, do cinema e de manifestações públicas organizadas em dias comemorativos, como o Primeiro de Maio - data que homenageia os trabalhadores. Nessas cerimônias, era proibida a utilização de bandeiras, hinos e outros símbolos estaduais. Somente os emblemas nacionais eram permitidos, a fim de reforçar a unidade do país e evitar manifestações federalistas.

Novos símbolos foram criados para reforçar a identidade do povo brasileiro, que passou a ser caracterizado pela mestiçagem. Foram valorizados elementos da cultura popular, como o samba, exaltado como o mais brasileiro dos ritmos, e também a capoeira, reconhecida como esporte nacional. Foram instituídas ainda datas cívicas, como o Dia da Raça (4 de setembro), e difundido o culto à Nossa Senhora da Conceição Aparecida, santa mestiça e padroeira do Brasil.

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A repressão durante o Estado Novo

Vargas utilizou a polícia política comandada por Filinto Müller (1900-1973), um notório admirador do nazismo e próximo dos integralistas, para reprimir as pessoas que se opunham à ditadura.

A tortura de presos foi investigada e descrita pelo jornalista David Nasser (1917-1980), inicialmente em seis reportagens publicadas na revista O Cruzeiro - a primeira delas em 29 de outubro de 1946 - e, depois, em livro de 1947. As publicações foram intituladas "Falta alguém em Nuremberg". Esse alguém era o capitão do Exército Filinto Müller (1900-1973), chefe de Polícia da capital de 1933 e 1942. Os principais instrumentos de tortura mencionados em depoimentos no Congresso e registrados por David Nasser eram: o maçarico, que queimava e arrancava pedaços de carne; os "adelfis", estiletes de madeira que eram enfiados por baixo das unhas; os "anjinhos", espécie de alicate para apertar e esmagar testículos e pontas de seios; a "cadeira americana", que não permitia que o preso dormisse; e a máscara de couro.

CARVALHO, José Murilo de. Chumbo grosso. Revista de História. São Paulo, n. 59, 11 ago. 2010. Disponível em: www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/chumbo-grosso. Acesso em: 3 mar. 2016.

Glossário:

Nuremberg: referência ao tribunal instalado na cidade alemã de Nuremberg ao final da Segunda Guerra Mundial para julgar os crimes de guerra da alta cúpula nazista.

Fim do glossário.

LEGENDA: Primeira página do jornal O Imparcial anuncia a deportação de Olga Benário em 29 de agosto de 1936.

FONTE: O Imparcial/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Intelectuais e artistas contrários ao regime foram perseguidos, como o historiador Caio Prado Jr. (1907-1990), o pintor Di Cavalcanti (1897-1976) e os escritores Graciliano Ramos, Jorge Amado (1912-2001) e Érico Veríssimo (1905-1975). Trabalhadores, líderes sindicais e militantes de organizações de esquerda foram presos e torturados. Muitos opositores ao regime foram mortos.

Merece destaque também o caso de Olga Benário Prestes (1908-1942), mulher de Luís Carlos Prestes. Presa em 1936, judia alemã de nascimento e agente soviética no Brasil, Olga foi deportada, grávida, para a Alemanha nazista, onde ficou presa em um campo de concentração. Poucos anos depois da prisão, em 1942, foi assassinada na câmara de gás do campo de Ravensbrück.

Vargas e os trabalhadores

Vargas mostrou-se hábil na aproximação com os trabalhadores urbanos, fortalecendo o poder do Estado e dando atenção à política trabalhista. Entre as leis trabalhistas criadas durante o seu governo destacam-se a implementação do salário mínimo e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que unificou toda a legislação trabalhista existente no Brasil. A CLT estabeleceu descanso semanal remunerado, férias, décimo terceiro salário, carteira de trabalho,

137

licença-maternidade e aposentadoria, entre outros direitos. Com várias alterações, ela regulamenta ainda hoje as relações entre patrões e empregados no país.

Apresentado como "pai dos pobres", Vargas mantinha um rígido controle dos trabalhadores por meio da submissão dos sindicatos ao Ministério do Trabalho. As lideranças escolhidas para o comando dos sindicatos eram pessoas fiéis ao regime. Foram apelidadas de pelegos, pois, da mesma forma como a pele com a lã do carneiro é usada sobre o dorso do cavalo para diminuir o atrito com a sela, os pelegos eram responsáveis por amortecer as pressões dos trabalhadores sobre o governo e os patrões. Assim, de um lado, Vargas atendia às reivindicações dos trabalhadores, aproximando-se das camadas populares, e de outro inviabilizava um movimento sindical independente. Acrescente-se que os sindicatos passaram a receber os recursos de um "imposto sindical", obrigatório a todos os trabalhadores e equivalente a um dia de trabalho por ano.

LEGENDA: Comemoração do Primeiro de Maio, com desfile de trabalhadores levando a bandeira nacional e o retrato de Vargas na cidade do Rio de Janeiro, 1942.

FONTE: Reminiscências/Acervo Iconographia

Leituras

Boxe complementar:

No texto a seguir, a historiadora Ângela de Castro Gomes nos fornece, com base em um depoimento, uma nova análise a respeito das relações entre o governo de Getúlio Vargas e os trabalhadores.

Trabalhadores e os ganhos com Getúlio

No pós-1930 havia um processo de controle dos trabalhadores, sem dúvida, mas havia também um processo de negociação, que eu queria ressaltar. Entrevistei para a minha tese o Seu Hílcar Leite, um gráfico comunista e depois trotskista, que me disse: "Eu ia para a porta da fábrica falar mal do Getúlio e quase apanhava. Os trabalhadores adoravam o Getúlio!". Ora, dizer que se vivia um processo de manipulação dos trabalhadores, que eram todos enganados durante tanto tempo, era algo insatisfatório para mim. Essas pessoas seriam completamente desprovidas de discernimento? Ou, afinal, tinham uma lógica em seu comportamento político que deveríamos encontrar e respeitar? Os trabalhadores, quando "gostam" de Vargas, entendem que há ganhos nessa negociação, e vão explorar essa possibilidade.

GOMES, Ângela de Castro. Liberdade não é de graça. Entrevista à Revista de História da Biblioteca Nacional, 30 mar. 2007. Disponível em: www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/angela-de-castro-gomes. Acesso em: 3 fev. 2016.

Glossário:

trotskista: corrente de esquerda formada pelos seguidores das ideias de Leon Trotsky (1879-1940), que criticava o modelo soviético stalinista.

Fim do glossário.

Fim do complemento.

138

A aproximação de Vargas com as camadas populares configurou uma prática apelidada de populismo. O termo é tomado muitas vezes como um insulto, uma referência a um governante que engana multidões para manter-se no poder. O populismo espalhou-se pela América Latina depois da Crise de 1929 e teve como seus maiores representantes Getúlio Vargas, no Brasil, e Juan Domingo Perón, na Argentina.

LEGENDA: Ilustração publicada na cartilha do DIP de 1941 para enaltecer as obras ferroviárias promovidas por Vargas.

FONTE: Coleção particular/Arquivo da editora

Vargas e a economia

Durante o Estado Novo, a industrialização foi bastante estimulada pelo governo, por meio de uma política de substituição de importações, com créditos e medidas protecionistas. Para o desenvolvimento da economia, prevaleceu o intervencionismo, com coordenação e planejamento do Estado. Esse tipo de atuação era tendência mundial da época, tanto no mundo capitalista como no socialista, negando o liberalismo.

Com o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, as importações de produtos industrializados sofreram muitas restrições, exigindo um aumento de sua produção no Brasil. O governo estimulou a implantação de novas fábricas e a ampliação das já existentes. Foram criadas também grandes empresas estatais de indústria de base, indispensáveis ao desenvolvimento dos demais setores industriais. Surgiram assim a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, RJ, e a Companhia Vale do Rio Doce, em Itabira, MG, para a extração e o processamento de minérios.

Glossário:

indústria de base: ramos industriais que produzem bens que são absorvidos por outras indústrias, como máquinas ou matéria-prima. Temos como exemplo a metalurgia, a siderurgia e a petroquímica.

Fim do glossário.

Leituras

Boxe complementar:

O texto a seguir apresenta uma reflexão do historiador Jorge Ferreira sobre o termo populismo.

Populismo: conceito ou insulto?

Há um grupo de historiadores convencidos de que populismo é realmente mais um insulto que um conceito teórico. É como chamar alguém de fascista, que não significa que se esteja acusando, estritamente, de seguidor do regime fascista. Tudo não passa de um termo usado para desqualificar o oponente. Populismo vem servindo para definir coisas muito diferentes. Cabe tanto um Getúlio Vargas quanto um Ademar de Barros, Jânio, Jango, JK, trabalhistas, até Fernando Collor de Mello. Não existe um conceito teórico que junte coisas tão distintas assim. Populista é sempre o adversário.

[...]

[a ideia de que o populista é aquele que engana o povo com promessas] Foi uma construção dos liberais derrotados e, depois, das esquerdas revolucionárias. Para os liberais, eles só poderiam ter perdido porque alguém se deixou ludibriar. Para as esquerdas, que queriam primazia nos movimentos populares, os populistas eram todos os demais, inclusive outros ramos marxistas. Além da direita e da esquerda, juntaram-se nessa poderosa aliança a universidade, tentando dar uma consistência teórica à definição, e a imprensa, difundindo e popularizando a caracterização. O princípio, totalmente improvável, é da existência de uma multidão de tolos, um bando de idiotas, a seguir um líder malicioso e poderosíssimo. Um sujeito capaz de enganar milhões e milhões de pessoas durante décadas. É uma afirmação da mesma família daquela outra: 'O povo brasileiro não sabe votar'. As multidões apoiaram Vargas e outros governos ditos populistas por entender que ganhavam com isso, melhoravam de vida. Preferiam esse projeto ao outro, batido nas urnas. O conceito de populismo não é uma coisa que sempre existiu, um dado como o sol e a chuva. É uma invenção humana, com história.

FERREIRA, Jorge. Todos populistas. Revista Época. Rio de Janeiro: Globo, 22 set. 2009. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI31162-15228,00-JORGE+FERREIRA+TODOS+POPULISTAS.html. Acesso em: 3 mar. 2016.

Fim do complemento.

139

Outro destaque foi a criação, em 1938, do Conselho Nacional do Petróleo, para controlar a exploração e o fornecimento desse produto e seus derivados. O primeiro poço petrolífero foi perfurado na Bahia, em 1939.

A deposição de Vargas

A participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial (assunto do próximo capítulo) criou uma situação contraditória que acabou enfraquecendo o governo: o mesmo Estado que lutava contra os nazifascistas mantinha um regime ditatorial. Foi nesse contexto que a oposição a Vargas ganhou força, realizando diversas manifestações.

Em outubro de 1943, políticos e empresários de Minas Gerais publicaram o Manifesto dos Mineiros, exigindo eleições gerais e a elaboração de uma nova Constituição. Censura e pressões se seguiram até o início de 1945, quando Vargas estabeleceu a data para as eleições: 2 de dezembro de 1945.

Além dessa, outras conquistas democráticas foram alcançadas no Brasil, como a libertação de presos políticos e o retorno de exilados. Foram organizados também novos partidos para a disputa eleitoral, entre os quais se destacavam:

- a União Democrática Nacional (UDN): de cunho liberal, reunia principalmente industriais, banqueiros, grandes proprietários, membros da classe média e da imprensa. Lançou a candidatura à presidência do brigadeiro Eduardo Gomes, ex-tenentista;

- o




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Partido Social-Democrático (PSD): formado basicamente pelos interventores estaduais e pela burocracia estatal que apoiava Getúlio;

- o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB): composto de setores do movimento sindical controlados por Getúlio Vargas. A coligação PTB-PSD lançou a candidatura do general Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra;

- o Partido Comunista do Brasil (PCB): retirado da ilegalidade, agregava os movimentos de esquerda. Tinha Yedo Fiúza como candidato à Presidência.

Entre os trabalhadores urbanos, a popularidade do presidente continuava alta e diversas manifestações de rua pediam sua candidatura à Presidência. Com o lema "Queremos Getúlio", o movimento queremista se espalhou por todo o país.

Temendo que Getúlio tramasse um novo golpe para se manter no poder, membros do alto escalão das Forças Armadas, liderados pelos generais Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, depuseram o presidente em 29 de agosto de 1945. A presidência foi ocupada por José Linhares, ministro do Supremo Tribunal Eleitoral. As eleições foram realizadas na data prevista e deram vitória a Dutra.

LEGENDA: Comício queremista no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, em 1945.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

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Atividades

Retome

1. Em que medida o contexto internacional dos anos 1930 favoreceu a ascensão de Getúlio Vargas ao poder?

2. O que foi a Revolução Constitucionalista de 1932? Quais foram seus resultados e desdobramentos? É possível afirmar que se tratou de uma revolução, considerando-se o significado histórico do termo?

3. É possível afirmar que os conflitos no campo, característicos da Primeira República, foram superados na Era Vargas? Justifique sua resposta.

4. Aponte semelhanças e diferenças entre o Estado Novo e os regimes nazifascistas europeus.

5. Que relações podem ser estabelecidas entre o fim da Era Vargas e o término da Segunda Guerra Mundial?

Pratique

6. Vimos que os direitos da mulher e o seu papel na sociedade foram alvo de intensos debates nos anos 1920. Mas quais foram os desdobramentos da chamada "questão feminina" durante a Era Vargas? Leia os fragmentos de texto a seguir para refletir sobre o assunto.

O ano de 1932 foi, certamente, um marco para as mulheres brasileiras, que conquistaram diversos direitos, tanto políticos, quanto sociais. O Código Eleitoral estipulou o direito de voto para as mulheres e diversos decretos introduziram avanços inegáveis na legislação trabalhista, favorecendo a população feminina que laborava na indústria e no comércio: concessão do direito à licença-maternidade; proibição do trabalho da mulher grávida durante quatro semanas antes e após o parto; direito da mulher em período de aleitamento a descansos diários; [etc.] [...].

Contudo, [...] algumas das medidas de proteção às mulheres revelavam uma intencionalidade que ultrapassava o mero desejo de consolidar a presença da população feminina no mundo do trabalho. A proibição do trabalho noturno às mulheres, e também em atividades consideradas insalubres ou perigosas, significava, na prática, estabelecer uma reserva de mercado aos homens, muitos dos quais clamavam pela restrição do emprego feminino, de modo a que estas não ocupassem vagas que pertenceriam aos chefes de família. Além desse aspecto, a medida possuía um cunho moralizante, dado que a presença feminina nas ruas, após o pôr do sol, poderia dar margem a certas liberdades, principalmente no campo sexual. Na prática, a proibição do trabalho noturno significou a demissão de um grande número de mulheres, principalmente em bares e restaurantes. Em 1933, garçonetes protestavam contra a perda dos seus empregos, alegando que a medida implantada configurava um "falso protecionismo". [...] A proibição do exercício de atividades insalubres e perigosas às mulheres só se justificava pelo desejo de preservar seus corpos para a função gestacional, dado que não poderia haver outra explicação para os homens serem autorizados a exercer funções vedadas à população feminina, abrangendo empregos que lidassem com: perigo de acidentes e de envenenamento, necessidade de trabalho atento e prudente, poeira e vapores nocivos (Anexo ao Decreto n. 21.417A, 17/05/1932). [...]

OSTOS, Natascha Stefania Carvalho de. A questão feminina: importância estratégica das mulheres para a regulação da população brasileira (1930-1945). Cadernos Pagu, n.39, jul-dez. 2012, p. 327-333.

Agora, responda às questões:

a) Por que o ano de 1932 foi importante para as mulheres brasileiras?

b) As conquistas femininas ocorridas nos anos 1930 atendiam às demandas de movimentos sociais bastante ativos no Brasil. Que movimentos eram esses?

c) Que advertência a autora do texto faz em relação a essas conquistas?

Analise uma fonte primária

7. Leia a seguir o trecho de uma carta escrita pelo colono Manoel Dias de Menezes, do núcleo colonial de São Bento, na estrada Rio-Petrópolis, ao presidente Getúlio Vargas, em 22 de novembro de 1940.

No momento, justamente em que V. Ex.ª está sacrificando sua própria vida, o seu repouso pelos longínquos sertões do Brasil, em prol do bem-estar do pobre do pequeno agricultor, aqui em Itaguaí, no lugar denominado mazomba, os pequenos agricultores estão sendo até despejados discricionariamente, sem direito de espécie alguma. Em uma partida local, há um árabe que se diz proprietário de uma grande área de terras (montanhas), que tem alguns terceiros que já perderam por completo o estímulo de trabalhar, porque é exigida a terça pelo modo mais humilhante, pois o árabe, que se chama Moisés Abrahão, ainda aplica nos tempos que atravessamos o sistema da chibata!

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[...] São tão pacatos esses pobres homens que receiam dizer qualquer cousa sobre seus prejuízos, porque acham que há conivência das autoridades com o tal árabe, enfim, eles contam com a proteção de V. Ex.ª [...]. Enquanto V. Ex.ª procura nos amparar como se fôssemos seus próprios filhos, as autoridades competentes do local consentem o que lá se está passando.

Apud REIS, José Roberto Franco. Não existem mais intermediários entre o governo e o povo: correspondências a Getúlio Vargas: o mito e a versão. Tese (Doutorado em História). Campinas: IFCH-Unicamp, 2002, p. 66, 154, 284-5).

a) Qual é o objetivo do autor da carta?

b) O que o documento revela acerca das relações de trabalho no mundo rural, durante a Era Vargas?

c) Retire do documento uma passagem que reforça o paternalismo de Vargas.

d) Uma das características do populismo é a relação direta do governante com o governado, sem intermediação de instituições ou do próprio Estado. Aponte dois elementos da carta que atestem o caráter populista do governo Vargas.

Articule passado e presente

8. Leia a seguir um trecho de uma entrevista com Benjamin Steinbruch, presidente interino da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo na época em que a entrevista foi concedida (2014).

O senhor sempre fala na flexibilização de leis trabalhistas. Fala que é necessário acompanhar a experiência de outros países do mundo sobre esse tema. Objetivamente, quais alterações pontuais o senhor acha que são necessárias e urgentes na área da regulação do emprego?

Eu acho que, como você bem sabe, nós estamos numa lei que é da época de Getúlio Vargas, que foi de vanguarda naquele momento e que nos serviu até hoje. Agora, o Brasil mudou. As condições de emprego mudaram. Então a gente tem que se adaptar a uma nova realidade, se possível ainda de vanguarda.

Fale um item da CLT [Consolidação das Leis de Trabalho] que deveria ser eliminado ou alterado, e de que forma.

O custo do emprego não pode ser o dobro [do salário]. Porque você paga para o empregado x, você tem 2x de custo indireto. Tem que ser flexível.

Vamos lá. Fundo de Garantia do Tempo de Serviço [FGTS]: isso deve ser mantido ou deve ser eliminado?

Não, eu acho que os direitos devem ser mantidos. O que você tem que fazer é flexibilizar a lei trabalhista.

Mas, como?

A jornada pode ser flexível, a idade pode ser flexível (a idade de o empregado poder trabalhar).

Trabalhar mais jovem?

Trabalhar mais jovem, em condições ideais. A gente pode ter por parte do empregador e do empregado uma convergência de interesse. A gente hoje está engessado, está penalizando tanto o empregador quanto o empregado.

[...]

Mas o senhor enxerga algum Congresso (porque isso teria que ser aprovado pelo Congresso, porque está na lei), algum Congresso - Câmara e Senado - aprovando uma redução do horário legal de almoço?

Se for vontade dos empregados, por que não? Será que o pessoal gosta de ficar uma hora para almoçar sendo que pode almoçar em meia hora, e essa meia hora podia ser aproveitada para voltar antes para casa? Será que não é mais legal para ele voltar antes para casa do que ficar uma hora sem ter o que fazer porque a lei exige que tenha esse tempo determinado de almoço? Eu estou falando isso em benefício do empregado também, entendeu?

Mas o senhor está falando num item que realmente teria algum benefício, talvez, para o empregador. Mas ainda assim, em relação ao que você paga de INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], os vales (transporte, alimentação), Fundo de Garantia [do Tempo de Serviço], um terço de férias, todos esses direitos, o senhor acha que algum deles deveria ser facultativo entre patrão e empregado? Ou não, você acha que devem ser mantidos na lei?

Eu acho que pode ser negociado.

Quais?

Todos. Porque tem que ver se o empregado quer também, entendeu? Se você propõe para o empregado, por exemplo, se reduzir metade dos direitos que ele tem e outra metade vai para o bolso dele, eu te garanto que os empregados vão querer que metade vá para o bolso. Então tem um espaço enorme. O custo é muito grande, e o empregado não tem o benefício equivalente.

Disponível em: http://tvuol.uol.com.br/video/integra-da-entrevista-com-benjamin-steinbruch-57-min-04024C9B3764C4915326. Acesso em: 1º maio 2016.

Agora, responda às questões:

a) Que críticas o empresário Benjamin Steinbruch faz à CLT?

b) Que mudanças ele propõe na legislação?

c) Muitos críticos da CLT afirmam que ela é ultrapassada, pois foi lançada durante a Era Vargas. Em sua opinião, as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores nos anos 1930, as quais a CLT procurou minimizar, são muito diferentes das atuais? Justifique sua resposta.

142

CAPÍTULO 8: A Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

LEGENDA: Na imagem, instalação no Museu e Memorial de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, mostra roupas de prisioneiros que estiveram naquele campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Esse museu foi criado em 1947 (dois anos após o fim da Segunda Guerra) e recebe, anualmente, visitantes do mundo todo. Foto de 2015.

FONTE: Ilia Yefimovich/Getty Images

A Segunda Guerra Mundial foi um conflito de grandes proporções que envolveu diversas nações do planeta. Além das batalhas que deixaram cidades em ruínas, essa guerra foi marcada pelo extermínio de milhões de pessoas de grupos sociais minoritários nos campos de concentração da Alemanha nazista.

Em 2015, a imprensa mundial noticiou os 70 anos do fim dos campos de concentração nazistas (fala-se em "libertação dos campos"). Quais teriam sido as intenções do governo nazista ao construir campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial? Por que é importante, hoje, que tragédias como essa sejam relembradas e discutidas em museus e memoriais, como no exemplo da foto desta página?

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1. Justificando a guerra

Durante as guerras, é comum que cada lado em confronto "demonize" o inimigo para convencer sua população de que a guerra é legítima. Dessa forma, o conflito torna-se, simbolicamente, uma luta do bem contra o mal, da civilização contra a barbárie, e assim por diante. Tal discurso costuma encobrir os interesses reais - geralmente econômicos e políticos - por trás da guerra. Entre os jornalistas, costuma-se repetir a frase "Na guerra, a primeira vítima é a verdade", atribuída ao dramaturgo grego Ésquilo (c. 525 a.C.-456 a.C.) e também ao senador estadunidense Hiram Johnson (1866-1945) e ao jornalista Harold Thomas Henry Carter (1898-1944).

A Segunda Guerra Mundial foi um conflito no qual as atrocidades cometidas por um dos lados (especialmente as da Alemanha nazista) foram muito impactantes. O massacre sistemático e organizado de minorias, como judeus, ciganos, homossexuais, etc., em campos de extermínio é um exemplo dessas atrocidades.

É interessante pensar até que ponto o bloco vencedor do conflito também não cometeu atrocidades. Essa constatação não serve para minimizar os crimes praticados pelo regime nazista e muito menos para estabelecer uma contabilidade baseada em quem teria matado mais ou menos. Porém, é importante pensar que a guerra quase sempre resulta em barbárie, e que a eventual "justiça" de um conflito armado não pode servir para encobri-la.

LEGENDA: Portão de entrada de Auschwitz, campo de concentração construído na Polônia ocupada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Sobre o portão, a frase em alemão Arbeit macht frei ("O trabalho liberta"). Foto da década de 1940.

FONTE: Mondadori/Portfólio/Getty Images

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

144

2. A guerra reaparece no horizonte

Os efeitos da crise mundial de 1929 exacerbaram os conflitos originados do Tratado de Versalhes (1919). A reação às condições de paz disseminou um forte sentimento nacionalista na Alemanha e na Itália que culminou no totalitarismo nazifascista. Para evitar um confronto, líderes políticos da França e da Inglaterra adotaram uma política de concessões, a política de apaziguamento. Essa política, contudo, não foi suficiente para garantir a paz internacional.

A Liga das Nações, na prática, revelou-se um órgão frágil, com pouca força para mediar e evitar a emergência de novos conflitos. Assim, as pequenas nações - lesadas em seus direitos territoriais e políticos - ficavam à mercê dos Estados mais fortes.

Na Ásia, em 1931 o Japão invadiu a Manchúria (região da China) e avançou pelas ilhas do Pacífico. Na África, a Itália tomou a Abissínia (atual Etiópia) em 1935. Na Europa, a Alemanha reincorporou o Sarre (1935) e ocupou militarmente a Renânia (1936), zonas da fronteira com a França, desmilitarizadas pelo Tratado de Versalhes. Para evitar confrontos, algumas nações europeias foram tolerantes com essas ações de força. A falência da Liga das Nações e da paz internacional administrada por ela se confirmava a cada novo movimento expansionista dos Estados totalitários que ascenderam no período entreguerras.

Na Espanha, o general golpista Francisco Franco (1892-1975) chegou ao poder logo após vencer as forças republicanas na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Durante o conflito, Hitler e Mussolini apoiaram militarmente as tropas de Franco e puderam testar novos armamentos produzidos por seus países, consolidando o Eixo Berlim-Roma.

O Japão logo se uniria aos alemães e italianos, formando com eles o Eixo Roma-Berlim-Tóquio. Os três países assinaram o pacto anti-Komintern em 1936, que visava combater o comunismo internacional.

A primeira manifestação significativa da expansão nazista na Europa ocorreu na Áustria, anexada ao Terceiro Reich em 1938, na operação conhecida como Anschluss, aprovada pela maioria da população austríaca. A meta seguinte era a região dos Sudetos, pertencente à Tchecoslováquia, sob o pretexto de que a região contava com um grande contingente de alemães.

Autoridades da Inglaterra e da França reuniram-se, então, com Hitler e Mussolini. Para evitar um confronto geral, concordaram que os nazistas anexassem os Sudetos, ampliando o território da Alemanha em direção ao leste. Em troca, o governo alemão comprometia-se a não realizar nenhuma nova anexação sem o consentimento franco-britânico, confirmando a política de apaziguamento. Esse tratado ficou conhecido como Acordo de Munique (1938).

LEGENDA: "Ajude a Espanha", manifesto do pintor surrealista espanhol Joan Miró (1893-1983) dirigido aos franceses, em 1937. Pedia apoio à resistência antifranquista e combate às tropas golpistas de Franco apoiadas pelos países do Eixo (Alemanha e Itália).

FONTE: Reprodução/Museu de Arte Moderna de Nova York., EUA.

LEGENDA: Estátua de Francisco Franco é removida de um quartel militar em Valência. A Lei da Memória Histórica, aprovada em 2007, obriga a retirada de todos os símbolos do regime franquista das vias públicas espanholas. Foto de 2010.

FONTE: Heino Kalis/Reuters/Latinstock

LEGENDA: Soldados alemães cruzam a ponte de Colônia durante a ocupação da Renânia, em 1936.

FONTE: Hulton-Deutsch Collecion/Corbis/Latinstock

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A expansão territorial da Alemanha nazista

LEGENDA: O mapa representa os movimentos da política de agressão hitlerista sobre os países vizinhos da Alemanha a partir da segunda metade da década de 1930.

FONTE: Adaptado de: ATLAS da história do mundo. São Paulo: Folha de S.Paulo, 1995. p. 265.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

A Alemanha cobiçava ainda conquistar o "corredor polonês", faixa de terra que atravessava o norte da Alemanha e dava saída para o mar à Polônia, onde se localizava o porto de Dantzig (Gdansk, em polonês). Veja o mapa acima.

Em 1939, Hitler assinou com Stalin o Pacto Germano-Soviético. Com ele, as duas nações garantiam a não agressão entre ambas por dez anos e o governo da União Soviética não se oporia a uma invasão da Polônia pelo governo da Alemanha, enquanto este último não reagiria contra uma invasão da Finlândia pelos soviéticos. As diferenças ideológicas, políticas e sociais entre o nazismo e o socialismo soviético e os interesses dos trabalhadores de todos os países foram relegados a segundo plano.

LEGENDA: Uma mulher de Cheb, Tchecoslováquia, faz a saudação nazista em prantos diante da invasão das tropas alemãs. Foto de 1938.

FONTE: Bettmann/Corbis/Latinstock

3. O desenvolvimento do conflito

Hitler invadiu a Polônia em 1º de setembro de 1939. Os governos da Inglaterra e da França reagiram, dando início à Segunda Guerra Mundial.

Em poucos dias, as tropas polonesas foram destruídas e o país foi ocupado pelos nazistas. Conforme havia sido combinado no Pacto Germano-Soviético, o governo alemão aceitou a ocupação soviética de territórios poloneses a leste (além dos estratégicos Estados bálticos). Mais tarde, em 1940, o governo soviético ordenou a execução de milhares de prisioneiros de guerra poloneses, no episódio conhecido como Massacre de Katyn.

Em abril de 1940, as tropas alemãs prosseguiram com a Blitzkrieg ("guerra-relâmpago"), estratégia que empregava maciçamente veículos blindados (as divisões Panzer) e aviões (Luftwaffe - Força Aérea Alemã) visando a vitórias rápidas. O avanço militar nazista foi fulminante: em pouco tempo, a Alemanha ocupou a Dinamarca, a Noruega, os Países Baixos e a Bélgica.

Paris, a capital francesa, foi ocupada pelos nazistas em junho de 1940. Seguiu-se a rendição da França, com a ocupação militar do país pelos alemães e o estabelecimento de um regime "fantoche" na cidade de Vichy, no centro-sul do país. O marechal Pétain, herói da Primeira Guerra Mundial, chefiava o regime pró-alemão de Vichy.

Enquanto isso, o território da Inglaterra enfrentava bombardeios da aviação alemã. No norte da África, os ingleses rebatiam os ataques da Itália. Os italianos tentavam tomar o controle do Canal de Suez para romper as ligações da Inglaterra com suas colônias. Italianos e alemães atacaram também a Grécia e a Iugoslávia, controlando os Bálcãs.

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LEGENDA: Soldados alemães em ofensiva durante a Batalha de Moscou, em 1941. Na foto, podemos observar um dos tanques da divisão Panzer.

FONTE: Fotógrafo alemão anônimo/The Bridgeman Art Library/Keystone

Em junho de 1941, Hitler desrespeitou o pacto com Stalin e ordenou a invasão da União Soviética (Operação Barbarossa). Depois de um ataque-surpresa, os alemães obtiveram rápidas vitórias nas primeiras batalhas travadas em território soviético.

As tropas nazistas alcançaram os subúrbios de Moscou, a capital soviética. Inicialmente, o exército soviético pouco pôde fazer para deter o avanço dos invasores, mas sua força numérica, o vasto território e a resistência das tropas e da população civil reverteram esse cenário. A partir do final de 1941, e principalmente em 1942, os alemães experimentaram duras e decisivas derrotas.

LEGENDA: Cartaz com a ilustração de um samurai, guerreiro japonês, destruindo navios aliados.

FONTE: Reprodução/Coleção particular

No Pacífico, a tensão entre os governos dos Estados Unidos (que até então mantinham sua neutralidade em relação ao conflito) e do Japão crescia, especialmente após a ocupação japonesa da Indochina. Em 7 de dezembro de 1941, os japoneses atacaram Pearl Harbor, base naval norte-americana no Pacífico Sul. No dia seguinte, o Congresso dos Estados Unidos declarou guerra ao Japão, oficializando o confronto no Pacífico.

Os domínios do Eixo (1939-1945)

LEGENDA: As potências do Eixo chegaram a dominar grandes extensões territoriais na Europa, na Ásia e na África.

FONTE: Adaptado de: FRANCO JR., Hilário; ANDRADE FILHO, Ruy de O. Atlas história geral. São Paulo: Scipione, 2000. p. 73.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Um dos aspectos mais controversos da participação dos Estados Unidos na guerra foi o tratamento dado à população estadunidense de origem japonesa. Desconfiando de sua lealdade, o governo deteve milhares de pessoas em campos de internamento durante o conflito. A população norte-americana de origem alemã ou italiana não sofreu o mesmo tipo de tratamento durante a Segunda Guerra, sugerindo que a detenção de nipo-americanos teve fundamento racista.

Até o início de 1942, a Alemanha, a Itália e o Japão dominaram a guerra, conquistando regiões da Europa, África e Ásia. A partir de então, iniciou-se a derrocada do Eixo Roma-Berlim-Tóquio, pondo fim à expansão totalitária.

O confronto entre nazistas e soviéticos na Batalha de Stalingrado (atual Volgogrado) durou vários meses e levou ao aniquilamento da ofensiva alemã em fevereiro de 1942. A situação da guerra se inverteu e passou a ser de progressivo avanço soviético contra a Alemanha. Formava-se a primeira frente aliada, que marcharia em direção a Berlim.

No norte da África, em 1943, um exército anglo-americano derrotou as tropas do Eixo na Batalha de El Alamein, no Egito. A vitória deu aos aliados o controle do Mediterrâneo e possibilitou o desembarque de tropas na Itália, abrindo uma segunda frente aliada de avanço sobre a Alemanha. Em setembro do mesmo ano, a Itália se rendeu depois de o rei italiano destituir Benito Mussolini do poder. No mês seguinte, o novo governo italiano declarou guerra à Alemanha.

LEGENDA: Soldado soviético hasteia a bandeira de seu país em edifício de Berlim, em maio de 1945.

FONTE: Yevgeny Khladei/Corbis Latinstock

A terceira frente aliada foi criada a partir do Dia D, em 6 de junho de 1944, quando mais de 100 mil soldados ingleses e norte-americanos desembarcaram nas praias da Normandia, no norte da França, na Operação Overlord. Pouco depois, Paris foi libertada, enquanto as três frentes convergiram sobre a Alemanha.

A primeira frente aliada foi a primeira a chegar a Berlim, dando o golpe final sobre o Terceiro Reich. Em 1º de maio de 1945, a bandeira vermelha da União Soviética foi hasteada no alto do Reichstag, o antigo Parlamento alemão. Hitler e Mussolini morreram poucos dias antes da rendição final (8 de maio), em circunstâncias dramáticas. O Duce, justiçado por populares em Milão; o Führer, por suicídio, em Berlim.

LEGENDA: O Dia D: forças aliadas desembarcam na Normandia, costa noroeste francesa, abrindo uma terceira frente de avanço contra a Alemanha. Na foto, desembarque de soldados norte-americanos na praia de Omaha, em junho de 1944. No detalhe, soldados nos navios de desembarque da operação.

FONTE: Corbis/Latinstock

FONTE: Bettmann/Corbis/Latinstock



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No Oriente, o conflito persistiu por mais dois meses. Os Estados Unidos avançaram progressivamente, cercando o Japão, e passaram a dominar o conflito no Pacífico. Em 6 de agosto de 1945, os norte-americanos lançaram um novo e poderoso artefato bélico sobre a cidade de Hiroxima: a bomba atômica. Três dias depois, outra bomba atômica foi lançada sobre Nagasáqui. A rendição incondicional do Japão foi obtida em 19 de agosto, que oficializou o final da guerra.

Leia no boxe abaixo uma experiência com a bomba, idealizada pelo físico Robert Oppenheimer (1904-1967) como parte do projeto Manhattan.

Boxe complementar:

A criação da bomba atômica

No final da guerra, o projeto Manhattan era maior do que toda a indústria automobilística dos Estados Unidos. Mas esse foi apenas o trabalho de preparação - o suprimento do material necessário [...]. Surgiam problemas científicos em escala jamais encontrada antes. Para essa tarefa, seria necessário reunir as maiores inteligências científicas do país. [...]

A escuridão da última hora da noite foi subitamente interrompida por um clarão intenso e ofuscante, seguido de uma estranha e silenciosa rajada de calor. Formou-se uma imensa nuvem em formato de cogumelo, subindo gradualmente 12 km em direção à atmosfera. A aterrorizada face esquelética de Oppenheimer estava consciente das palavras do Bhagavad-Gita que lhe vinham à mente:

Transformei-me na Morte, A destruidora de mundos.

STRATHERN, P. Oppenheimer e a bomba atômica. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 44 e 70.

LEGENDA: O bombardeiro Enola Gay lançou a bomba às 8 horas e 16 minutos da manhã do dia 6 de agosto de 1945, em Hiroxima, dando início à ameaça atômica sobre a humanidade. Três dias depois, foi a vez de Nagasáqui (foto de agosto de 1945). Centenas de milhares de pessoas foram exterminadas em instantes.

FONTE: Corbis/Latinstock

Fim do complemento.

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O Brasil na Segunda Guerra Mundial

A Segunda Guerra Mundial envolveu combates em todos os continentes e mares do planeta. Daí a importância estratégica do Brasil, com seu vasto litoral atlântico e com o litoral nordeste projetando-se em direção à África.

Inicialmente, o presidente Getúlio Vargas não definiu a posição do governo brasileiro em relação à guerra. Ora pendia para os Aliados, ora para o Eixo, acompanhando as tendências de seus auxiliares mais próximos no início da guerra. Filinto Müller, chefe de polícia, Lourival Fontes, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Francisco Campos, ministro da Justiça, e o general Eurico Gaspar Dutra, chefe do Estado-Maior do Exército, inclinavam-se para o Eixo. Do outro lado, Osvaldo Aranha, ministro do Exterior e ex-embaixador em Washington, defendia o alinhamento com o governo dos Estados Unidos e os Aliados.

Em 11 de junho de 1940, Vargas pronunciou um discurso saudando o sucesso nazista enquanto a Alemanha ocupava e rendia a França. Temerosos, os Estados Unidos intensificaram as tentativas de aproximação com o Brasil. Já em setembro, o governo norte-americano autorizou um empréstimo de 20 milhões de dólares ao governo brasileiro, com o objetivo de iniciar a construção da usina siderúrgica de Volta Redonda. A decisão forçou uma definição de Vargas, que acabou favorável aos Aliados.

Ainda que os Estados Unidos tivessem permanecido em posição de neutralidade até dezembro de 1941, sua participação no conflito mundial era considerada inevitável. Portanto, um dos objetivos da diplomacia norte-americana, nos anos que precederam a entrada oficial do país na guerra, foi garantir o apoio de todo o bloco americano aos Aliados. No caso do Brasil, esse apoio foi conseguido também com o empréstimo para a siderúrgica.

Em janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo, e em agosto declarou guerra, após o afundamento de diversos de seus navios por submarinos alemães. Imediatamente após a declaração de guerra, iniciou-se a preparação de um contingente militar para ser enviado à frente de batalha na Europa. A Força Expedicionária Brasileira (FEB) foi organizada, com o recrutamento de aproximadamente 25 mil homens. Entre julho de 1944 e o final da guerra, a FEB e a FAB (Força Aérea Brasileira) participaram da campanha da Itália, integrando o Quinto Exército norte-americano.

Apesar de as lutas dos brasileiros terem sido travadas contra tropas alemãs de segunda linha, mal equipadas e desabastecidas, tratava-se de uma tropa latino-americana que combatia num conflito muito intenso, em território europeu. Considerando essas condições, seu desempenho foi bastante satisfatório.

LEGENDA: Soldado brasileiro da FEB confraterniza com crianças italianas. A menina tem uma bandeira dos Estados Unidos nas mãos; o menino imita os adultos. Foto de 1944.

FONTE: Reprodução/Coleção particular

4. Balanço da guerra

A Segunda Guerra Mundial deixou um saldo devastador: um custo material superior a 1 bilhão e 300 milhões de dólares (em dólares de 1945, mais valorizados do que os de hoje), mais de 30 milhões de feridos e mais de 50 milhões de mortos. Cerca de 6 milhões de judeus morreram em campos de concentração nazistas, como os de Auschwitz, Treblinka e Sobibor, onde ocorria o assassinato em massa de prisioneiros, incluindo o uso de câmaras de gás e fornos crematórios.

O grau de destruição material do conflito foi inédito. Grandes cidades da Alemanha e do Japão foram devastadas por ataques aéreos arrasadores. Centenas de milhares de civis morreram nesses bombardeios. Foi a primeira vez que a população civil foi colocada em larga escala na linha de frente da guerra. O ponto culminante de tais práticas foi o ataque nuclear ao Japão.

Antes do término do conflito, as grandes potências firmaram acordos sobre seu encerramento. O primeiro deles ocorreu na Conferência de Teerã, no Irã, em novembro de 1943, em que participaram Josef Stalin, da União Soviética, Winston Churchill, da Inglaterra, e Franklin Roosevelt, dos Estados Unidos. Decidiu-se que as forças anglo-americanas interviriam na França, completando o cerco à Alemanha, juntamente com as forças orientais soviéticas.

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Essa decisão se concretizou no desembarque dos Aliados na Normandia. Deliberou-se também sobre a divisão da Alemanha e sobre as fronteiras da Polônia. Os governantes dos Estados Unidos e da Inglaterra reconheceram ainda a fronteira soviética no Ocidente, com a anexação da Estônia, da Letônia, da Lituânia e do leste da Polônia.

Em fevereiro de 1945, realizou-se a Conferência de Yalta, na Crimeia (União Soviética). Novamente reunidos, Roosevelt, Churchill e Stalin discutiram a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Definiram também a partilha mundial: o poder da União Soviética seria predominante na Europa oriental, incorporando territórios alemães a leste. Estabeleceu-se ainda a divisão da Coreia, país que o governo japonês pretendia conquistar, em áreas de influência soviética e norte-americana.

Em agosto, realizou-se nos subúrbios de Berlim a Conferência de Potsdam. Com a rendição alemã, Stalin, Harry Truman (sucessor de Roosevelt) e Clement Attlee (sucessor de Churchill) criaram o Tribunal de Nuremberg para julgar os crimes de guerra, e estabeleceram a desmilitarização da Alemanha.

A principal medida, contudo, foi a divisão da Alemanha em quatro zonas de ocupação: inglesa, francesa, norte-americana e soviética. A cidade de Berlim, na zona soviética, também foi dividida em quatro partes. Em 1949, o conjunto das zonas inglesa, francesa e norte-americana deu origem à Alemanha Ocidental (República Federal da Alemanha), capitalista. Nesse mesmo ano, a zona soviética originou a Alemanha Oriental (República Democrática Alemã), socialista.

A divisão da Alemanha em quatro zonas de ocupação (1945-1949)

FONTE: DUBY, Georges. Grand atlas historique. Paris: Larousse, 2004.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

LEGENDA: Da esquerda para a direita, sentados, Churchill, Roosevelt e Stalin reunidos em Yalta, em 1945.

FONTE: Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Latinstock

LEGENDA: Civis alemães entre os escombros da Segunda Guerra Mundial. Foto de março de 1945.

FONTE: Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Latinstock

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5. A Europa no pós-guerra

Depois de 1945, as grandes potências não só conservaram seus exércitos como desenvolveram ainda mais a indústria bélica. Com o término da Segunda Guerra Mundial, a Europa deixou de ser o eixo do poder mundial e Washington e Moscou tornaram-se os novos centros, reativando o confronto entre capitalismo e socialismo.

Nas décadas seguintes, o planeta seria marcado pela Guerra Fria, um período de insegurança dominado pela polarização entre os países capitalistas, liderados pelos Estados Unidos, e os países socialistas, capitaneados pela União Soviética.

Na qualidade de superpotência, os Estados Unidos despontaram como uma nação superior a qualquer outra em recursos materiais, financeiros e tecnológicos, detentora da bomba atômica e do domínio nuclear. O país tinha ainda a vantagem de não ter sofrido a devastação da guerra em seu território.

Para a União Soviética, a outra superpotência, era importante igualar-se aos norte-americanos na área de armamentos bélicos para que sua versão do socialismo, acentuadamente autoritária, perdurasse. Tendo saído da guerra com um saldo catastrófico, o país tinha como metas prioritárias a reconstrução nacional e a corrida nuclear. Em 1949, alcançava parte de seus objetivos ao lançar sua primeira bomba atômica.

A prosperidade das duas décadas posteriores à guerra promoveu grandes avanços sociais, com a incorporação de projetos social-democratas reformistas por vários países capitalistas industrializados. Essas reformas criaram na Europa ocidental os Estados de Bem-Estar Social, uma nova configuração social que combinava o capitalismo com extensas redes de proteção aos trabalhadores e estabelecia uma distribuição de renda mais justa e equitativa. Do outro lado, os governos que se alinharam ao bloco comunista tiveram que se sujeitar à interferência direta do governo soviético em diversas ocasiões.

LEGENDA: O enfrentamento Leste-Oeste numa charge de Jean Plantu produzida em 1978.

FONTE: © Jean Plantu/Acervo do cartunista

LEGENDA: Charge de Lurie, produzida em 1973, representando a corrida bélica entre as duas potências hegemônicas do período da Guerra Fria.

FONTE: Reprodução/Jornal, Tóquio, Japão. The Asahi Shimbun

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INFOGRÁFICO

A fundação da ONU

A Organização das Nações Unidas (ONU) passou a existir oficialmente em 24 de outubro de 1945. Seus objetivos principais são manter a paz e a segurança internacionais, promover a cooperação entre os povos na busca de soluções para problemas econômicos, sociais, culturais e humanitários e assegurar o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Destinada a substituir a fraca e ineficiente Liga das Nações, a ONU obteve relativo sucesso, especialmente na área de justiça, embora não tenha conseguido solucionar satisfatoriamente os grandes conflitos internacionais nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial.

Assembleia Geral

A Assembleia Geral é composta de todos os países-membros (193, atualmente). Sua função é discutir os assuntos relacionados com a paz, a segurança, o bem-estar e a justiça no mundo. Não pode tomar decisões, tendo apenas função consultiva.

Secretariado

Tem por função administrar a organização. É dirigido pelo secretário-geral, indicado pelo Conselho de Segurança e votado pela Assembleia Geral.

FONTE: Fonte: Revista Nova Escola. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/fundamental-2/serve-conselho-seguranca-onu-639933.shtml. Acesso em: 25 nov. 2015.

LEGENDA: Reunião do Conselho de Segurança da ONU. Foto de 2015.

FONTE: Hulton-Deutsch Collection/ Corbis/Latinstock

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Conselho de Segurança

O Conselho de Segurança, seu órgão mais importante, tem cinco membros permanentes - os países Aliados na Segunda Guerra Mundial -, com direito de veto: Estados Unidos, Rússia (antes de 1991 era a União Soviética), Reino Unido, França e China (inicialmente a China Nacionalista, Formosa, e, a partir de 1971, a China continental, comunista). Outros dez membros são eleitos pela Assembleia Geral, com mandato de dois anos. A escolha desses dez membros temporários segue um critério de divisão regional equitativa, como mostra o esquema na página ao lado.

O direito de veto das grandes potências limitou o caráter da ONU, retirando a credibilidade que deveria ter como uma organização que representa todos os países do mundo. Na segunda metade do século XX, teve início uma ampla discussão sobre a reformulação do Conselho de Segurança, com a possível inclusão de novos membros.

A ação das forças de manutenção da paz, tropas multinacionais que atuam em zonas de conflito armado, depende da aprovação do Conselho de Segurança. Os integrantes das forças de manutenção de paz são conhecidos como capacetes azuis.

LEGENDA: Soldados da Força de Segurança da ONU nas Filipinas, em 2013.

FONTE: Rouelle Umali/Xinhua Press/Corbis/Latinstock

Conselho Econômico e Social

A ONU também tem um Conselho Econômico e Social ao qual estão ligadas diversas agências especializadas, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), etc.

LEGENDA: O projeto da sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York, nos Estados Unidos, contou com o trabalho de uma equipe internacional de arquitetos. Entre eles, o brasileiro Oscar Niemeyer. Foto de 2010.

LEGENDA: O secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, discursa na sede da instituição, em Nova York, nos Estados Unidos, em 2012.

LEGENDA: De cima para baixo, logotipos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

FONTE: Thimothy A. Clary/Agência France-Presse

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Um caso distinto ocorreu na Iugoslávia. Sob o comando de Josip Broz Tito (1892-1980), líder guerrilheiro da resistência à ocupação alemã, o governo iugoslavo pretendia formar uma Federação dos Bálcãs, composta de Albânia, Bulgária, Grécia, Hungria, Iugoslávia e Romênia, com Estados livres e baseados no desenvolvimento regional autônomo. Esse projeto contestava a hegemonia soviética. Stalin opôs-se a ele e, em 1948, o Kremlin - sede do governo soviético - condenou o regime de Tito, rompendo com a Iugoslávia em 1950. A partir de então, a Iugoslávia assumiu uma posição neutra no conflito Leste-Oeste, aproximando-se dos países não alinhados do Terceiro Mundo.

De origem croata, Tito firmou o centralismo estatal sob o controle de um partido único e conseguiu harmonizar a convivência das diversas etnias do país, estabelecendo, em 1970, a presidência rotativa entre as seis repúblicas iugoslavas: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Montenegro e Macedônia.

Com sua morte, em 1980, emergiram várias manifestações de descontentamento, que se ampliaram com as transformações que ocorriam no Leste Europeu, na crise do socialismo real. No início da década de 1990, os desentendimentos entre os grupos étnicos acentuaram-se e desembocaram em sangrenta guerra civil, opondo as repúblicas antes formadoras da Iugoslávia.

Glossário:

socialismo real: refere-se aos países comandados pelos partidos comunistas no pós-guerra. A palavra "real" foi introduzida na expressão para indicar as profundas diferenças entre o socialismo definido por Marx e Engels e o totalitarismo burocrático imposto pelo stalinismo à União Soviética e ao restante do bloco comunista.

Fim do glossário.

LEGENDA: O marechal Tito discursa para a população da cidade de Skopje, na então Iugoslávia, atual Macedônia, em outubro de 1953.

FONTE: Bettmann/Corbis/Latinstock

LEGENDA: Propaganda do Plano Marshall na Alemanha. No pôster, de 1949, lê-se: "Abram caminho para o Plano Marshall".

FONTE: Pulfer/Interfoto/Latinstock

Na região alemã ocupada por França, Inglaterra e Estados Unidos (Alemanha Ocidental a partir de 1949), a recuperação econômica contou com a ajuda do Plano Marshall, anunciado em 5 de junho de 1947 pelo secretário de Estado norte-americano George Marshall (1880-1959) e destinado a reconstruir a devastada Europa ocidental por meio de grandes investimentos.

No Extremo Oriente, o Japão foi ocupado pelos norte-americanos (1945-1952). Os zaibatsu - fortes grupos econômicos - foram dissolvidos e, com eles, a grande propriedade e as indústrias bélicas, como parte do plano de desmilitarização. Além disso, em 1947 uma Constituição parlamentar foi imposta ao Japão, que limitava os poderes do imperador Hiroíto.

A Europa aderiu à nova bipolarização mundial. Países da Europa ocidental, como Inglaterra, França e Itália, se alinharam com os Estados Unidos. Já nos países da Europa oriental, houve a instalação e o fortalecimento de regimes comunistas.

Por causa do avanço socialista no Extremo Oriente a partir da década de 1950, com o triunfo da Revolução Chinesa de 1949, a política de ocupação do Japão foi alterada, visando à reabilitação do país, que passou a ser aliado dos Estados Unidos. Entre 1955 e 1956, a produção industrial japonesa dobrou em relação à situação anterior à guerra. Seu desenvolvimento econômico quase ininterrupto consolidou a economia japonesa como uma das mais fortes do mundo no final do século XX.

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Atividades

Retome

1. Explique o significado da política de apaziguamento e comente seu papel na manutenção da paz mundial, bem como o da Liga das Nações, na década de 1930.

2. Explique em que consistia a expansão territorial da Alemanha nazista, no período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, e qual é a relação entre esse processo e o conflito mundial iniciado em setembro de 1939.

3. Para entender o desenvolvimento da Segunda Guerra Mundial, em especial a partir de 1942, é comum estudarmos as características das frentes aliadas.

a) Até 1942, que nações estavam dominando o conflito?

b) Identifique as três frentes aliadas, formadas a partir de 1942, explicando, de forma sintética, o papel de cada uma no conflito.

4. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a vitória dos Aliados, realizaram-se algumas conferências, como a de Yalta e a de Potsdam. Comente as principais medidas estabelecidas nessas conferências.

Pratique

5. O depoimento a seguir foi escrito pelo jovem Edward Niesobski, aos 16 anos, em 1939. Edward registrou em seu diário alguns acontecimentos do início da Segunda Guerra Mundial. Leia o texto e faça as atividades propostas.

19 de setembro de 1939

Fui para a escola de bonde vestindo um uniforme limpo (tive de voltar a pé e amanhã terei de ir a pé, sem dinheiro para o bonde). São 15 moças e 18 rapazes, de ambos os ginásios. Tivemos três aulas, o mesmo que ontem. Revisão, basicamente. [...]

Às cinco da tarde, ouvi Hitler no rádio. Ele falava de "die befreite Stadt Danzig - [em alemão, "a cidade liberada de Danzig"] depois de uma ovação da multidão. O discurso mostrou que ele não merece sua fama de grande estadista. Ele se agitava, gritava, insultava, implorava, adulava, mas sobretudo mentia e mentia. Mentiu que a Polônia tinha começado a guerra, mentiu sobre a perseguição aos alemães na Polônia ("Barbaren!"). Mentiu sobre suas lindas intenções pacíficas, etc. Começou então uma enfiada de insultos contra as autoridades polonesas [...]. Falou da injustiça do Tratado de Versalhes [...]. No fim, falou de suas boas relações com a Rússia (...) e da impossibilidade de um conflito germano-russo. [...]

[...]

22 de setembro de 1939

A cidade não mostra indícios de que haja uma guerra; é a volta à normalidade. As escolas estão abertas novamente desde 11 de setembro. Há muitos cartazes alemães nos muros e bandeiras de Hitler por toda parte. Sinto-me um estranho em meu próprio país. Não há muita comida [...] e as pessoas passam horas na fila da batata. [...]

WALLIS, Sarah; PALMER, Svetlana (Org.). Éramos jovens na guerra: cartas e diários de adolescentes que viveram a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 26-27.

a) O jovem Edward vivia com sua família no interior da Polônia. Com base nas datas do diário, explique o que ocorria na Polônia naquele período.

b) Que meio de comunicação era utilizado pelas pessoas que queriam obter notícias sobre a guerra?

c) O que significa dizer que Hitler falava, em seu discurso, sobre a "injustiça do Tratado de Versalhes"? Se necessário, retome outros capítulos deste volume para responder.

d) Por que Hitler disse, no discurso ouvido pelo jovem Edward, que a Alemanha nazista tinha "boas relações com a Rússia" de então? Essas "boas relações" tiveram continuidade? Por quê?

e) Ainda de acordo com as datas do diário, Edward estava certo ao dizer que sua cidade, na Polônia, estaria vivendo uma "volta à normalidade"? Por quê?

6. Leia, a seguir, parte de uma entrevista que uma revista de jornalismo científico realizou com Shozo Motoyama, historiador especializado em História da Ciência.

ComCiência - O senhor acha que é possível afirmar que existe um impulsionamento cíclico entre guerra e ciência?

Motoyama - Não há dúvida de que, se observarmos a história, existe uma interfecundação entre a ciência e a guerra. [...]

As guerras testam e aplicam, de uma maneira muito urgente e emocional, necessidades que são atendidas pela aplicação da ciência e, com isso, é possível haver um aperfeiçoamento posterior que

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permita que a ciência e a tecnologia se desenvolvam ainda mais. A [Segunda Guerra Mundial] demonstrou que o computador era possível [...].

O mesmo pode-se dizer com relação à bomba atômica. Em 1920, mesmo os grandes cientistas não acreditavam na possibilidade da aplicação da energia nuclear para objetivos práticos. [...] Vinte anos depois já existia uma aplicação para algo lamentável, a bomba atômica. Isso fez com que houvesse uma corrida para a utilização da energia nuclear para fins pacíficos [...]. Todo esse desenvolvimento na parte tecnológica e na aplicação da ciência poderia ser obtido sem essa mediação da guerra. O que acontece na guerra é que o financiamento se torna farto [...].

Para Shozo Motoyama, sociedade deve discutir o desenvolvimento de armas. ComCiência, 10 jun. 2002. Disponível em: www.comciencia.br/entrevistas/guerra/motoyama.htm. Acesso em: 15 abr. 2016.

a) Segundo o trecho, qual é a opinião do historiador sobre a relação entre guerra e ciência? Explique.

b) Depois de tratar da tragédia da bomba atômica, o historiador considera que esforços em pesquisas descobriram usos pacíficos para a energia nuclear. Dê um exemplo desse uso e explique-o.

c) Para o historiador, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia poderia ser feito sem a guerra?

Analise uma fonte primária

7. Observe a charge a seguir e faça as atividades propostas.

LEGENDA: Charge de J. Carlos produzida em 1944 e publicada na revista Careta, de 23 de dezembro de 1944. O expedicionário encontra um soldado alemão, condecorado com a Cruz de Ferro (uma condecoração militar comum à época no exército da Alemanha).

FONTE: /Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Careta Revista

a) Levando em conta o título da charge ("Nas montanhas italianas"), explique o contexto da Segunda Guerra Mundial que está sendo representado. Ao elaborar sua resposta, explique quem eram os expedicionários.

b) Qual é o humor contido na charge? Explique.




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Articule passado e presente

8. Reúna-se com um colega e leiam o trecho de reportagem a seguir.

Cerca de 300 sobreviventes de Auschwitz regressam nesta terça-feira [27 de janeiro de 2015] ao lugar onde viveram um dos piores horrores da história humana, para advertir contra a repetição de um crime semelhante, 70 anos depois da libertação do campo nazista pelo exército soviético, em 27 de janeiro de 1945. [...]

Trata-se do maior e mais mortífero campo de extermínio e de concentração nazista e o único preservado tal como foi abandonado pelos alemães que fugiram do Exército Vermelho. Outros campos de concentração nazistas na Polônia, como Sobibor, Treblinka ou Belzec, foram destruídos completamente pelos alemães para eliminar as provas.

Após 70 anos, últimos sobreviventes não esquecem horrores de Auschwitz. G7, 27 jan. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/apos-70-anos-ultimos-sobreviventes-nao-esquecem-horrores-de-auschwitz.html. Acesso em: 14 abr. 2016.

Agora, faça o que se pede:

a) Retomem o Capítulo 5, "A crise de 1929 e o nazifascismo", deste volume e expliquem a origem dos campos de concentração na Alemanha nazista.

b) C om base no trecho da reportagem, o campo de concentração de Auschwitz acabou sendo preservado. O que as autoridades nazistas fizeram com os outros campos de concentração, após 1945? Por quê?

c) Ainda em dupla, escrevam um texto sobre a importância dos testemunhos dos sobreviventes de Auschwitz para as sociedades atuais. Complementem o texto com as impressões e o significado da instalação observada na imagem de abertura deste capítulo (p. 142).

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Enem e vestibulares

Enem

1. A primeira metade do século XX foi marcada por conflitos e processos que a inscreveram como um dos mais violentos períodos da história humana. Entre os principais fatores que estiveram na origem dos conflitos ocorridos durante a primeira metade do século XX estão:

a) a crise do colonialismo, a ascensão do nacionalismo e do totalitarismo.

b) o enfraquecimento do Império Britânico, a Grande Depressão e a corrida nuclear.

c) o declínio britânico, o fracasso da Liga das Nações e a Revolução Cubana.

d) a corrida armamentista, o terceiro-mundismo e o expansionismo soviético.

e) a Revolução Bolchevique, o imperialismo e a unificação da Alemanha.

2. A depressão econômica gerada pela Crise de 1929 teve no presidente americano Franklin Roosevelt (1933-1945) um de seus vencedores. New Deal foi o nome dado à série de projetos federais implantados nos Estados Unidos para recuperar o país, a partir da intensificação da prática da intervenção e do planejamento estatal da economia. Juntamente com outros programas de ajuda social, o New Deal ajudou a minimizar os efeitos da depressão a partir de 1933. Esses projetos federais geraram milhões de empregos para os necessitados, embora parte da força de trabalho norte-americana continuasse desempregada em 1940. A entrada do país na Segunda Guerra Mundial, no entanto, provocou a queda das taxas de desemprego, e fez crescer radicalmente a produção industrial. No final da guerra, o desemprego tinha sido drasticamente reduzido.

EDSFORD, R. America's Response to the Great Depression. Blackwell Publishers, 2000 (tradução adaptada).

Considerando o texto, conclui-se que

a) o fundamento da política de recuperação do país foi a ingerência do Estado, em ampla escala, na economia.

b) a crise de 1929 foi solucionada por Roosevelt, que criou medidas econômicas para diminuir a produção e o consumo.

c) os programas de ajuda social implantados na administração de Roosevelt foram ineficazes no combate à crise econômica.

d) o desenvolvimento da indústria bélica incentivou o intervencionismo de Roosevelt e gerou uma corrida armamentista.

e) a intervenção de Roosevelt coincidiu com o início da Segunda Guerra Mundial e foi bem-sucedida, apoiando-se em suas necessidades.

3. Os regimes totalitários da primeira metade do século XX apoiaram-se fortemente na mobilização da juventude em torno da defesa de ideias grandiosas para o futuro da nação. Nesses projetos, os jovens deveriam entender que só havia uma pessoa digna de ser amada e obedecida, que era o líder. Tais movimentos sociais juvenis contribuíram para a implantação e a sustentação do nazismo, na Alemanha, e do fascismo, na Itália, Espanha e Portugal.

A atuação desses movimentos juvenis caracterizava-se:

a) pelo sectarismo e pela forma violenta e radical com que enfrentavam os opositores ao regime.

b) pelas propostas de conscientização da população acerca dos seus direitos como cidadãos.

c) pela promoção de um modo de vida saudável, que mostrava os jovens como exemplos a seguir.

d) pelo diálogo, ao organizar debates que opunham jovens idealistas e velhas lideranças conservadoras.

e) pelos métodos políticos populistas e pela organização de comícios multitudinários.

4. O autor da constituição de 1937, Francisco Campos, afirma no seu livro O Estado nacional que o eleitor seria apático; a democracia de partidos conduziria à desordem; a independência do Poder Judiciário acabaria em injustiça e ineficiência; e que apenas o Poder Executivo, centralizado em Getúlio Vargas, seria capaz de dar racionalidade imparcial ao Estado, pois Vargas teria providencial intuição do bem e da verdade, além de ser um gênio político.

CAMPOS. F. O Estado nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940 (adaptado).

Segundo as ideias de Francisco Campos,

a) os eleitores, políticos e juízes seriam mal-intencionados.

b) o governo Vargas seria um mal necessário, mas transitório.

c) Vargas seria o homem adequado para implantar a democracia de partidos.

d) a Constituição de 1937 seria a preparação para uma futura democracia liberal.

e) Vargas seria o homem capaz de exercer o poder de modo inteligente e correto.

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5. De março de 1931 a fevereiro de 1940, foram decretadas mais de 150 leis novas de proteção social e de regulamentação do trabalho em todos os seus setores. Todas elas têm sido simplesmente uma dádiva do governo. Desde aí, o trabalhador brasileiro encontra nos quadros gerais do regime o seu verdadeiro lugar.

DANTAS, M. A força nacionalizadora do Estado Novo. Rio de Janeiro: DIP, 1942. Apud BERCITO, S. R. Nos tempos de Getúlio: da revolução de 30 ao fim do Estado Novo. São Paulo: Atual, 1990.

A adoção de novas políticas públicas e as mudanças jurídico-institucionais ocorridas no Brasil, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, evidenciam o papel histórico de certas lideranças e a importância das lutas sociais na conquista da cidadania. Desse processo resultou a

a) criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, que garantiu ao operariado autonomia para o exercício de atividades sindicais.

b) legislação previdenciária, que proibiu migrantes de ocuparem cargos de direção nos sindicatos.

c) criação da Justiça do Trabalho, para coibir ideologias consideradas perturbadoras da "harmonia social".

d) legislação trabalhista que atendeu reivindicações dos operários, garantindo-lhes vários direitos e formas de proteção.

e) decretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que impediu o controle estatal sobre as atividades políticas da classe operária.

Vestibulares

6. (UEL-PR) A Grande Guerra de 1914 foi uma consequência da remobilização contemporânea dos anciens regimes [antigos regimes] da Europa. Embora perdendo terreno para as forças do capitalismo industrial, as forças da antiga ordem ainda estavam suficientemente dispostas e poderosas para resistir e retardar o curso da história, se necessário recorrendo à violência. A Grande Guerra foi antes a expressão da decadência e queda da antiga ordem, lutando para prolongar sua vida, que do explosivo crescimento do capitalismo industrial, resolvido a impor a sua primazia. Por toda a Europa, a partir de 1917, as pressões de uma guerra prolongada afinal abalaram e romperam os alicerces da velha ordem entricheirada, que havia sido sua incubadora. Mesmo assim, à exceção da Rússia, onde se desmoronou o antigo regime mais obstinado e tradicional, após 1918-1919 as forças da permanência se recobraram o suficiente para agravar a crise geral da Europa, promover o fascismo e contribuir para a retomada da guerra total em 1939.

MAYER, A. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 13-14.

De acordo com o texto, é correto afirmar que a Primeira Guerra Mundial:

a) Teria sido resultado dos conflitos entre as forças da antiga ordem feudal e as da nova ordem socialista, especialmente depois do triunfo da Revolução Russa.

b) Resultou do confronto entre as forças da permanência e as forças de mudança, isto é, do escravismo decadente e do capitalismo em ascensão.

c) Foi consequência do triunfo da indústria sobre a manufatura, o que provocou uma concorrência em nível mundial, levando ao choque das potências capitalistas imperialistas.

d) Foi produto de um momento histórico específico em que as mudanças se processavam mais lentamente do que fazem crer os historiadores que tratam a guerra como resultado do imperialismo.

e) Engendrou o nazifascismo, pois a burguesia europeia, tendo apoiado os comunistas russos, criaram o terreno propício ao surgimento e à expansão dos regimes totalitários do final do século.

7. (Ufpel-RS) Manifesto de Luís Carlos Prestes (maio/1930):

[...] Mais uma vez os verdadeiros interesses populares foram sacrificados vilmente, mistificado todo o povo, por uma campanha aparentemente democrática, mas que, no fundo, não era mais do que a luta entre os interesses contrários de duas correntes oligárquicas, apoiadas e estimuladas pelos dois grandes imperialismos que nos escravizam e aos quais os politiqueiros brasileiros entregam, de pés e mãos atados, toda a Nação. Fazendo tais afirmações, não posso, no entanto, deixar de reconhecer entre os elementos da Aliança Liberal grande número de revolucionários sinceros, com os quais creio poder continuar a contar na luta franca e decidida que ora proponho contra todos os opressores. [...] Contra as duas vigas mestres que sustentam economicamente os atuais oligarcas, precisam, pois, ser dirigidos os nossos golpes - a grande propriedade territorial e o imperialismo anglo-americano. Essas, as duas causas fundamentais da opressão política em que vivemos e das crises econômicas em que nos debatemos. [...] O governo dos coronéis, chefes políticos, donos da terra, só pode ser o que aí temos: opressão política e exploração não positiva.

TÁVORA, Juarez. Memórias: uma vida e muitas lutas. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1973.

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De acordo com o texto e com seus conhecimentos, é correto afirmar que o Manifesto se posiciona:

a) a favor de uma república comunista, nos moldes da soviética, e, para tanto, apoia a Aliança Liberal, que ganhou as eleições de 1930.

b) contra a Aliança Liberal, por ela manter os privilégios oligárquicos associados ao imperialismo anglo-americano, defendendo a ideia de uma revolução popular no Brasil.

c) contrário à Aliança Liberal, mantenedora da estrutura oligárquica de poder, ao defender, entre outros pontos, o "voto de cabresto" e o livre comércio externo.

d) de forma neutra, uma vez que havia, na formação da Aliança Liberal, os Partidos Republicanos Paulista, Rio-grandense e Mineiro, representantes da política do "café com leite".

e) em prol da Aliança Liberal como meio para os trabalhadores urbanos e rurais chegarem ao poder, seguindo o modelo do comunismo pregado por Mao-Tsé-Tung, quando da realização da "Longa Marcha".

8. (UFRN) No dia 10 de fevereiro de 1944, uma crônica publicada no jornal O Diário retratou aspectos do cotidiano da cidade de Natal, nos seguintes termos:

Meio displicente o cronista entrou no café. [...] tipos de uma outra raça, a que a uniformidade das fardas cáquis emprestava um tom militar, enchiam as mesas. [...] A algaravia que se falava era estranha. [...] Sobre a fala de alguns quepes, o brasão de Suas Majestades Britânicas, ou as iniciais simbólicas da RAF canadense. A maioria, porém, era de gente da América [...]. O cronista olhou para os lados, curioso. Brasileiro, ele apenas. Sim, também as pequenas garçonnettes [...]. No entanto, aquele era um simples e muito nortista "café" da rua Dr. Barata, por mais que a paisagem humana se mesclasse de exemplares de terras diferentes...

Adap.: PEDREIRA, Flávia de Sá. Chiclete eu misturo com banana: carnaval e cotidiano de guerra em Natal. Natal: EDUFRN, 2005. p. 217.

Considerando-se o fragmento textual acima e as informações históricas sobre o período a que ele se refere, é correto afirmar:

a) Pela proximidade com a África e por ter sediado importantes bases militares dos Estados Unidos, Natal foi alvo de esporádicos ataques das tropas da Alemanha.

b) Os natalenses passaram a rejeitar, paulatinamente, os hábitos dos estrangeiros, como os estilos musicais norte-americanos, o uso de roupas informais e de palavras da língua inglesa.

c) O início da guerra e a ameaça de bombardeios aéreos mudaram o clima de festa em que Natal vivia e acirraram, ainda mais, as rivalidades entre brasileiros e norte-americanos.

d) A presença de um grande contingente de militares de outros países e a circulação de moeda estrangeira agitaram, de forma significativa, a vida da outrora pacata Natal.

9. (UFC-CE) Morte à gordura!

morte às adiposidades cerebrais!

Morte ao burguês-mensal!

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!

Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!

"- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?

- Um colar... - Conto e quinhentos!!!"

[...] Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

O trecho acima, transcrito do poema Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, foi recitado na Semana de Arte Moderna, realizada de 11 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Sobre esse movimento, é correto afirmar que:

a) teve como princípio uma arte baseada na estética romântica e realista.

b) tentou traduzir a cultura e os problemas nacionais através da arte.

c) gerou uma valorização da arte europeia em detrimento da arte brasileira.

d) foi uma tentativa de renovar as manifestações artísticas no Brasil Império.

e) foi um grupo de poetas e escultores que reafirmaram o parnasianismo no Brasil.

10. (UFPA) A crise social e política que abalou a estabilidade da República Velha (1889-1930) quebrou a hegemonia das oligarquias no poder e preparou o terreno para a Revolução de 1930 foi motivada pelo(a):

a) aprofundamento das cisões oligárquicas, pelas rebeliões tenentistas, pela insatisfação das classes médias urbanas excluídas da representação política e pela pressão reivindicatória das classes operárias.

b) aliança política entre a burguesia industrial, as classes médias urbanas e o operariado fabril contra o sistema liberal e democrático da República Velha, controlado pelas oligarquias agrárias.

c) quebra do compromisso político entre as oligarquias agrárias e os trabalhadores rurais, o que, durante toda a República Velha, impediu o desenvolvimento dos setores industriais e a organização do movimento operário.

d) fortalecimento da união entre as oligarquias paulistas e mineiras na indicação de Júlio Prestes à sucessão presidencial em 1930, o que desagradou as oposições constituídas pelas classes médias urbanas e operariado, defensores de Getúlio Vargas.

e) descontentamento da burguesia industrial com o tratamento dado pelas oligarquias.

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UNIDADE 2: Da Guerra Fria ao século XXI

Após a Segunda Guerra Mundial, seguiu-se a Guerra Fria, período em que o mundo viveu sob forte tensão decorrente das disputas entre Estados Unidos e União Soviética, países com grandes arsenais nucleares. Entretanto, a difícil manutenção da paz foi acompanhada de relativa prosperidade nos países centrais, seguida da formação de uma periferia mundial empobrecida, o "Terceiro Mundo". O final abrupto da Guerra Fria, com a derrocada da União Soviética em 1991, criou uma situação nova e potencialmente instável, marcada pelo ressurgimento das lutas nacionalistas, da ascensão do fundamentalismo religioso, de políticas econômicas que concentram cada vez mais a renda, dos atos de terrorismo e do aumento das migrações e de refugiados pelo mundo. Outra importante característica da nova ordem mundial tem sido o fenômeno da globalização.

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Saber histórico

O nosso tempo

LEGENDA: Em 13 de novembro de 2015, uma série de atentados terroristas do Estado Islâmico ocorreu em Paris, na França. Cerca de 150 pessoas foram mortas e centenas ficaram feridas. Na imagem, homenagem às vítimas em um dos locais dos ataques, a casa de espetáculos Bataclan. No cartaz, lê-se: "Eu sou muçulmana e contra o terrorismo". Foto de 2015.

FONTE: Jacky Naegelen/Reuters/Latinstock

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1. A crise do eurocentrismo

Do século XV até o século XIX, a violência do colonialismo e do imperialismo das potências europeias contra os habitantes da África, Ásia e América era explicada como uma tarefa civilizadora que devia ser cumprida pelos povos "mais desenvolvidos".

Pretendia-se, com isso, ensinar aos povos dessas regiões que eles deveriam seguir o exemplo "superior" e "civilizado" dos europeus, imitando seus modelos morais, políticos, religiosos e econômicos.

No século XX, esse argumento começou a ser desmontado principalmente durante as guerras mundiais, iniciadas por conflitos entre os europeus que se espalharam por todo o mundo. Eram os povos "civilizados" que empreendiam matanças em escala nunca vista antes.

Em 1945, os Estados Unidos lançaram bombas atômicas sobre a população civil japonesa, destruindo as cidades de Hiroxima e Nagasáqui. O sofrimento causado pelas bombas se manteve por décadas, por causa da radiação atômica e das doenças e deformações causadas por ela nos sobreviventes e em seus descendentes.

No início da segunda metade do século XX, a Europa, arrasada pela guerra, deixou de ser o principal centro político e econômico do mundo e tornou-se zona de influência dos Estados Unidos e da União Soviética, os dois polos hegemônicos da Guerra Fria.

Para além dessa bipolaridade, ganhou força o movimento pela emancipação política e econômica de um "terceiro mundo", composto de países que pretendiam não se alinhar aos Estados Unidos ou à União Soviética, protagonistas da Guerra Fria. Esse movimento teve início em 1955, na Conferência Afro-Asiática, realizada na cidade indonésia de Bandung. Conhecido como Movimento dos Países Não Alinhados, era liderado pelos governos do Egito, da Índia e da Indonésia.

As nações que compunham esse bloco haviam sido libertadas recentemente do domínio imperialista e nelas predominavam a pobreza, dívidas financeiras e outros impasses. Situadas principalmente abaixo da linha do equador, elas lançaram novas questões e desafios para a história ao manter viva a luta pela própria soberania.

LEGENDA: Forças alemãs conquistam a Namíbia, na África. Ilustração para a edição de 21 de abril de 1904 do periódico francês Le Petit Journal.

FONTE: Coleção particular. Fotografia: Leemage/Getty Images

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2. O relativismo cultural

A difusão da ideia de relativismo cultural, criada pelo antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942) nas primeiras décadas do século XX, contribuiu para a crise do eurocentrismo. Segundo essa ideia, é impossível medir o valor de uma ou de várias culturas com base nos valores de apenas uma delas.

Boas negava, assim, a hierarquia entre culturas, a visão de que todas as culturas evoluíam em etapas, progredindo das mais primitivas às mais avançadas até alcançar o topo da evolução, representado pela civilização ocidental. Em outras palavras, ao assumir a diversidade, o relativismo cultural estabelece que qualquer crença ou atividade humana deve ser interpretada nos termos de sua própria cultura. Para Boas, a civilização não é um valor absoluto, mas relativo.

O relativismo cultural foi uma das bases da Organização das Nações Unidas (ONU), entidade internacional criada em 1945 que busca integrar todas as nações, promover o diálogo, evitar novas guerras e solucionar os grandes problemas humanitários.

3. A sociedade de consumo e o meio ambiente

Após a Segunda Guerra Mundial, os governos dos países centrais, sobretudo os Estados Unidos, estudavam formas de impulsionar a economia. A ambientalista Annie Leonard comenta:

O analista de vendas Victor Lebow articulou uma solução que se tornaria norma para o sistema todo. Ele disse: "Nossa enorme economia produtiva exige que façamos do consumo nosso modo de vida, que transformemos a compra e o uso de bens em rituais, que busquemos nossa satisfação espiritual, a satisfação do nosso ego, no consumo. Precisamos que as coisas sejam consumidas, destruídas, substituídas e descartadas em um ritmo cada vez mais acelerado". O conselheiro econômico do presidente Eisenhower afirmou: "A finalidade principal da economia americana é produzir mais bens de consumo".

Mais bens de consumo? Não é providenciar cuidados médicos, educação ou transportes seguros, sustentabilidade ou justiça? Bens de consumo?

Traduzido de Story of stuff: referenced and annotated script. Disponível em: http://storyofstuff.org/wp-content/uploads/movies/scripts/Story%20of%20Stuff.pdf. Acesso em: 31 mar. 2016.

A organização da extração de matérias-primas, a industrialização e a distribuição de bens materiais passaram progressivamente a se articular à lógica do consumo e do descarte rápido. A cultura de massas encarregou-se da parte ideológica dessa tarefa, ou seja, de criar modas e tirá-las de cena, tornando obsoletos os objetos comprados para acompanhá-la.

O Brasil entrou nessa lógica durante a década de 1970, com o chamado Milagre Econômico do governo militar. Entretanto, a desigualdade na distribuição de renda mantinha os benefícios da sociedade de consumo restritos às classes média e alta, percentualmente pequenas no total da população. Diante do crescimento populacional e, mais recentemente, da redução das desigualdades, a parcela de brasileiros envolvidos no consumismo expandiu-se nos últimos anos.

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LEGENDA: A publicidade estimula o consumo exagerado, motivando consumidores a descartar aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos e substituí-los por novos modelos. O descarte desses aparelhos tornou-se um sério problema ambiental. Na imagem, monitores usados são postos à venda à beira de uma estrada em Nova Délhi, Índia. Foto de 2015.

FONTE: Kuni Takahashi/Bloomberg/Getty Images

Com a globalização, quase toda a economia mundial passou a buscar os altos padrões de consumo norte-americano. Isso nos levou a um impasse ambiental, pois os recursos do planeta são finitos e, caso esses padrões de consumo sejam adotados por todos os países, estarão esgotados daqui algum tempo.

Outro grande dilema dos nossos dias é a aparente contradição entre a preservação da natureza e a necessidade de sustentar o crescimento econômico. Para superá-lo, foi criado o conceito de desenvolvimento sustentável, considerado fundamental para o crescimento econômico com base em novos modelos de desenvolvimento e em fontes de energia que não degradem o meio ambiente. No entanto, objetivos como a diminuição do uso de combustíveis fósseis, a redução das emissões de CO2 e a preservação de recursos naturais nos continentes e nos oceanos ainda se chocam com os interesses de consumo das sociedades centrais e dos países em desenvolvimento.




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4. Novos sujeitos na política

O debate político e os projetos nacionais e internacionais pretendiam ser válidos para toda uma sociedade ou conjunto de sociedades. Entretanto, principalmente nos anos 1960, tais projetos pareciam não mais resolver questões "pontuais", cujas soluções eram sempre adiadas.

LEGENDA: As mobilizações contra a Guerra do Vietnã, a expansão do feminismo e a luta do movimento negro por direitos civis são exemplos de questões que marcaram os anos 1960. Jovens marcham pelas ruas de Londres em protesto contra a Guerra no Vietnã. Foto de 1968.

FONTE: Mirrorpix/Corbis/Latinstock

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O inconformismo impulsionou o ativismo pelos direitos de negros, mulheres, homossexuais, estudantes, minorias étnicas e outros grupos sociais. A mobilização contra a guerra e a opressão disseminou comportamentos e valores morais, com críticas ao poder autoritário dos pais sobre os jovens, à desigualdade de direitos entre homens e mulheres, aos valores machistas, etc.

Nessa época, debates sobre temas como a história das mulheres, a história dos vencidos, enfim, a história "vista de baixo", como ficou conhecida, ganharam força na historiografia. A pesquisa histórica desses temas foi reforçada, procurando-se demonstrar a importância desses personagens no processo histórico.

5. A história imediata

Durante muito tempo, os historiadores acreditaram que, para escrever a história de determinado tema, era necessário estar distante dele no tempo. Segundo esse ponto de vista, com o historiador isento de qualquer tipo de paixão ou interesse, seria possível escrever uma história imparcial. O debate historiográfico, porém, mostrou que a pretendida neutralidade do historiador em relação a seu objeto de estudo não era possível. Mais do que isso, as conclusões dos historiadores deixaram de ser entendidas como verdades definitivas e indiscutíveis.

Nas últimas décadas, a História tem considerado a possibilidade de tornar o tempo presente, os acontecimentos e seus desdobramentos mais imediatos, um objeto de análise e interpretação. Surgiu assim uma corrente de pensamento denominada história imediata ou história do tempo presente. Além de estudar a relação dos acontecimentos contemporâneos com o passado, essa corrente analisa também os acontecimentos que estão sendo vivenciados e que influenciam as condições de existência da humanidade no mesmo momento em que o historiador realiza seus estudos.

LEGENDA: Milhares de pessoas se mobilizaram em várias cidades brasileiras contra o aumento das tarifas de ônibus, trem e metrô. Foto de junho de 2013 em São Paulo (SP).

FONTE: Pedro Paulo Ferreira/Fotoarena

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CAPÍTULO 9: O mundo da Guerra Fria

LEGENDA: Após meio século de antagonismo político, Cuba e Estados Unidos retomaram relações diplomáticas em julho de 2015. Em 2016, o então presidente norte-americano Barack Obama realizou uma visita à ilha com o intuito de retomar relações comerciais e turísticas com os cubanos e dar fim ao bloqueio econômico imposto àquele país. Na foto, de 2016, cartaz afixado em rua de Havana comemora a visita dando as boas-vindas a Obama.

FONTE: Alexandre Meneghini/Reuters/Latinstock

A Guerra Fria refere-se ao período de confronto indireto entre Estados Unidos e União Soviética, superpotências que emergiram após o fim da Segunda Guerra Mundial. Diferenças ideológicas entre capitalismo e socialismo fizeram com que outros países se alinhassem a uma ou a outra superpotência. Focos de tensão do período, como a Revolução Cubana e a Guerra da Coreia, têm relação direta com esse cenário. Entre 20 e 22 de março de 2016, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, visitou oficialmente Cuba. Considerado histórico, o evento recebeu muita atenção da mídia internacional, de pesquisadores e historiadores. Por que uma visita como essa foi "histórica"?

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1. Centro e periferia

Como já ressaltamos, duas superpotências tornaram-se polos antagônicos do poder político, econômico e militar após a Segunda Guerra Mundial. De um lado, os Estados Unidos, capitalista. De outro, a União Soviética, socialista. Essa polarização atraiu o alinhamentos de outros países a um ou a outro lado.

Ao estudar este capítulo, reflita sobre os processos que levaram a essa distribuição de forças. Lembre-se de que também existia outro tipo de divisão: a existente entre os países centrais (Estados Unidos e Europa ocidental, de economia industrial desenvolvida) e uma periferia constituída por países pobres ou em desenvolvimento. Em sua opinião, que grupos sociais, nos países periféricos, mostravam apoio ou simpatia por este ou aquele bloco de poder e por que razões?

LEGENDA: Em março de 2014, milhares de manifestantes foram às ruas de Moscou com bandeiras russas e ucranianas em protesto contra as políticas do então presidente russo Vladimir Putin para a Ucrânia.

FONTE: Alexander Zemlianichenko/Associated Press/Glow Images

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

2. A Guerra Fria

Os Estados Unidos e a União Soviética terminaram a Segunda Guerra Mundial como aliados. Sua atuação conjunta contra o Eixo foi decisiva para livrar a Europa do nazifascismo. Entretanto, as relações entre ambos se deterioraram rapidamente. Após 1947, especialistas começam a falar em Guerra Fria, que consistia em um confronto indireto entre as duas superpotências.

O motivo mais claro do rompimento era ideológico. Capitalismo e socialismo, antagônicos em sua forma de entender o mundo, levaram ao desacordo os Estados Unidos e a União Soviética quanto às liberdades individuais, à economia de mercado, às finalidades da ordem política mundial e aos métodos de atuação para alcançá-las.

A Guerra Fria duraria menos que meio século; a confirmação de seu fim se deu com o esfacelamento da União Soviética, em 1991.

Em março de 1947, o presidente estadunidense Harry Truman (1884-1972) fez um discurso contra a União Soviética, no qual afirmou que os Estados Unidos defenderiam as nações livres contra ameaças "totalitárias". No mesmo ano, seu secretário de Estado, George Marshall (1880-1959), lançou o Plano Marshall, programa de investimentos e recuperação econômica para os países europeus em crise após a guerra.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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LEGENDA: A Guerra Fria foi um enfrentamento ideológico, além de um confronto entre modelos de organização do Estado e da sociedade. Na foto, de 1948, crianças alemãs acenam para avião cargueiro aliado que leva suprimento para a população de Berlim oriental, que estava sob bloqueio russo.

FONTE: Bettmann/Corbis/Latinstock

Esse oferecimento estendeu-se aos países do Leste Europeu, libertados do nazismo pelo exército da União Soviética. Em todos eles, os partidos comunistas haviam tomado o poder. Entretanto, os governos dos países que desejassem receber essa ajuda precisavam se abrir para os investimentos estadunidenses. Essa condição não foi aceita pelos países do Leste Europeu. Somente a Iugoslávia, que se libertou dos nazistas sem a intervenção do exército soviético e rompeu com Stalin em 1948, recebeu investimentos do Plano Marshall.

LEGENDA: O Muro de Berlim, foi um dos principais símbolos da Guerra Fria. Pessoas procuram ver amigos e parentes do outro lado do muro, ainda em construção. Foto de 1961.

FONTE: Rudolf Dietrich/ullstein bild/Getty Images

Para a União Soviética, o Plano Marshall era uma tentativa de diminuir sua esfera de influência na Europa. Em resposta, foram criados o Kominform, organismo encarregado de coordenar a ação dos partidos comunistas europeus, e o Comecon em 1949, uma réplica do Plano Marshall para os países socialistas, voltado para sua integração econômico-financeira.

Glossário:

Kominform: sigla de Kommunistítcheskaia Informátsia, ou Comitê de Informação dos Partidos Comunistas Operários.

Comecon : sigla de Council for Mutual Economic Assistance , ou Conselho para Assistência Econômica Mútua.

Fim do glossário.

Diante da recuperação econômica da Alemanha Ocidental, graças aos investimentos do Plano Marshall e à unificação administrativa de seu território (antes dividido entre os aliados capitalistas), o governo da União Soviética impôs, em 1948, um bloqueio terrestre à cidade de Berlim, situada em território alemão controlado pelos soviéticos. O Ocidente capitalista respondeu com o abastecimento a Berlim capitalista por via aérea, acirrando os ânimos e criando grande tensão internacional. No ano seguinte, as duas Alemanhas eram instituídas, a Ocidental - República Federal da Alemanha - e a Oriental - República Democrática Alemã.

Em agosto de 1961, o Muro de Berlim foi construído pelos governos soviético e da Alemanha Oriental, que separou os dois lados da cidade e se tornou um emblema da divisão alemã e da Guerra Fria. Sua derrubada, em 1989, constituiria o marco simbólico do final desse período. A reunificação da Alemanha ocorreu em seguida, no ano de 1990.

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Divisão da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial (1945-1990)

LEGENDA: O mapa mostra como a Alemanha foi dividida após a Segunda Guerra Mundial. Observe no detalhe como o muro dividia a cidade de Berlim.

FONTE: Adaptado de: DUBY, Georges. Atlas historique mondial. Paris: Larousse, 2007.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

Outros fatos significativos somaram-se à crescente tensão internacional do período. Um deles foi a criação, em abril de 1949, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança político-militar dos países ocidentais, opondo toda a Europa ocidental à União Soviética. Em 1955, a União Soviética instituiu o Pacto de Varsóvia, aliança militar dos países socialistas. A bipolarização mundial avançava e se consolidava.

Em 1949, em meio a essa tensa situação, eclodiu a Revolução Chinesa e os soviéticos explodiram a sua primeira bomba atômica. No ano seguinte, iniciava-se a Guerra da Coreia (1950-1953), um dos ápices da Guerra Fria. Nesse conflito, a União Soviética e a China apoiaram a Coreia do Norte, socialista, que lutava contra a Coreia do Sul, apoiada pelas potências ocidentais. A divisão entre os dois países continua até hoje.

3. A Revolução Chinesa

A República chinesa, proclamada em 1911, quase nada pôde fazer diante das potências imperialistas que controlavam diversas áreas do país desde o século XIX. O governo republicano, liderado por Sun Yat-sen (1866-1925), do Partido Nacionalista (Kuomintang), sofria pressões dos chefes militares locais pela autonomia de suas regiões, além do domínio internacional.

No início da década de 1920, o governo do Kuomintang contou com o apoio do Partido Comunista Chinês (PCC). Em 1925, porém, Chiang Kai-shek (1887-1975) assumiu o comando das tropas do Kuomintang e iniciou uma política agressiva contra o Partido Comunista. Após derrotas nas cidades de Xangai e Pequim, os comunistas, liderados por Mao Tsé-tung (1893-1976) e Chu Teh (1886-1976), retiraram-se para o sul do país, onde organizaram bases de apoio entre os camponeses.

Em 1931, tropas do Japão invadiram a Manchúria, no norte da China, onde estabeleceram um Estado-satélite o Manchukuo. O Kuomintang passou a sofrer dupla pressão: do imperialismo japonês e da ameaça do avanço comunista no interior do país.

Em 1934, os nacionalistas lançaram uma grande campanha militar contra os comunistas. Para fugir das tropas do Kuomintang, os 100 mil homens do Exército Popular de Libertação, liderados por Mao, percorreram 10 mil quilômetros a pé, até o norte do país (veja no mapa da página seguinte). Esse episódio é conhecido como Longa Marcha (1934-1935). Ao fim de um ano, restavam apenas 9 mil homens.

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Diante do avanço japonês, em 1937 o Kuomintang e o PCC fizeram um acordo que priorizava o combate ao inimigo externo. Até o final da Segunda Guerra Mundial, essa frente única deu ao PCC o controle de parte do exército chinês.

Após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, Chiang Kai-shek decretou uma mobilização nacional para eliminar definitivamente o "perigo vermelho". Para isso, contava com recursos militares e financeiros dos Estados Unidos, enquanto a União Soviética deixava o Exército Popular de Libertação sem apoio.

Apesar disso, o exército do PCC continuou seu avanço, até entrar vitorioso em Pequim, em janeiro de 1949. Em outubro, a República Popular da China foi proclamada. Chiang Kai-shek e seus seguidores refugiaram-se na Ilha de Formosa (atual Taiwan), onde instalaram o governo da China Nacionalista, que recebeu apoio estadunidense. Ao mesmo tempo, o governo dos Estados Unidos isolou a China, negando-lhe reconhecimento diplomático e intercâmbio econômico, situação que se manteve até a década de 1970.

LEGENDA: Forças comunistas desfilam em Pequim, em junho de 1949, ao final da guerra civil na China, que durou de 1946 a 1949. No alto do caminhão uma estrela com a imagem de Mao ao centro.

FONTE: Baldwin H. Ward & Kathryn C. Ward/Corbis/Latinstock

O imperialismo na China e a Longa Marcha

LEGENDA: O Japão, mesmo recriminado pela frágil Liga das Nações por sua agressão à China, continuou a ampliar suas conquistas militares e a consolidar domínios, avançando da Manchúria em direção ao sul. O governo imperial japonês chegou a declarar oficialmente seu interesse por todo o território chinês. O confronto entre o Japão e a China durou de 1931 até 1945, quando a Segunda Guerra Mundial terminou.

FONTE: Adaptado de: BARRACLOUGH, G. (Ed.). The Times Concise Atlas of World History. London: Times Books, 1986. p. 122-123.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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4. A Guerra da Coreia (1950-1953)

Durante a Segunda Guerra Mundial, para acelerar a rendição japonesa e para que suas tropas desocupassem o território da Coreia, determinou-se que o paralelo 38º Norte seria o limite geográfico para atuação militar de soviéticos e estadunidenses.

Quando a guerra terminou, no entanto, esse limite transformou-se em divisão real, surgindo dois Estados coreanos sob ocupação de cada uma das duas potências: a República da Coreia, ao sul, sob domínio de tropas dos Estados Unidos, e a República Popular Democrática da Coreia do Norte, sob ocupação soviética.

A região tornou-se área de sucessivos conflitos armados, devido às divergências político-ideológicas entre os dois Estados e à tensão gerada pela Guerra Fria. A vitória dos comunistas liderada por Mao Tsé-tung na China, no final de 1949, motivou os coreanos do norte a invadir o sul do país, em 1950, visando à unificação territorial da Coreia.

Na ONU, os Estados Unidos e seus aliados consideraram a Coreia do Norte agressora e intervieram para conter seu avanço. Os governos da China e da União Soviética apoiaram os norte-coreanos, deixando evidente a bipolarização na região. Diante do risco de uma guerra indesejada, as potências envolvidas forçaram iniciativas para obtenção de um acordo de paz.

A morte do líder soviético Stalin, em março de 1953, abriu espaço para mudanças na política externa soviética. A eleição do novo presidente estadunidense, o republicano Dwight Eisenhower (1890-1969), também acelerou as negociações para um armistício.

Finalmente, em 27 de julho de 1953, foi assinado um acordo de paz em Panmunjon, que restabeleceu as fronteiras sobre o paralelo 38º Norte e aproximou a União Soviética e os Estados Unidos. Encerrava-se a fase crítica.

Para a Coreia, entretanto, a manutenção da divisão em Norte e Sul preservou o clima de confrontação e atritos fronteiriços ao longo das décadas seguintes.

Enquanto a Coreia do Sul, com investimentos e tecnologia estrangeira, ascendeu à posição de Tigre Asiático, a Coreia do Norte manteve sua estrutura política e econômica fechada, mesmo após o colapso da URSS. Nos últimos anos, com o governo Kim Jong-un, a Coreia do Norte tem oscilado entre a aproximação com a Coreia do Sul e a retórica agressiva, especialmente com sua política de armamentismo nuclear, recebendo condenação internacional.

Glossário:

Tigres Asiáticos: denominação atribuída a um conjunto de países da Ásia que na década de 1980 apresentaram um desenvolvimento elevado e repentino, com uma economia voltada para a exportação. Fazem parte do grupo: Hong Kong, Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan.

Fim do glossário.

LEGENDA: Refugiados se deslocam após soldados norte-americanos tomarem a importante cidade portuária de Inchon, localizada, hoje, na Coreia do Sul. Foto de 1950.

FONTE: Bert Hardy/Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Latinstock

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5. Os Estados Unidos e a União Soviética durante a Guerra Fria

O armamentismo e a tensão crescente entre os blocos capitalista e socialista, que caracterizavam a Guerra Fria, sofreram uma reversão parcial em 1953, com a morte do ditador soviético Josef Stalin, com a política do presidente estadunidense Dwight Eisenhower e com o armistício de Panmunjon, na Coreia. Instaurou-se então um período de aproximação entre os governos da União Soviética e dos Estados Unidos, conhecido como Coexistência pacífica. Esse período teve início com uma série de reuniões entre os dirigentes das duas superpotências para acordos sobre a limitação de armamentos.

LEGENDA: Plateia ouve pronunciamento durante a Conferência de Bandung, na Indonésia, 1955.

FONTE: Lisa Larsen/Time Life Pictures/Getty Images

Em 1955, a Conferência de Bandung, na Indonésia, reuniu 23 países asiáticos e seis africanos com o objetivo de criar um novo bloco político de âmbito global. Esses países, independentes mas economicamente subdesenvolvidos, foram chamados de Não Alinhados (ou Terceiro Mundo). Eram partidários do não alinhamento a uma das duas superpotências. Como meta prioritária, assumiram o desenvolvimento econômico para superar dificuldades sem se envolver na bipolarização Estados Unidos-União Soviética.

No bloco socialista, após a morte de Stalin, Nikita Kruschev (1894-1971) assumiu o poder em 1953, e iniciou um processo de "desestalinização", alterando profundamente a política interna e externa soviética. Ele foi o grande responsável pela política de Coexistência pacífica.

Embora servisse como canal de entendimento no mundo organizado em dois blocos, a Coexistência pacífica não pôs fim aos conflitos entre capitalismo e comunismo. A aproximação entre estadunidenses e soviéticos e até mesmo a paz mundial foram ameaçadas por novos focos de tensão: a Guerra do Vietnã, a descolonização do continente africano, a Revolução Cubana, a invasão da Hungria pelos soviéticos e o rompimento da União Soviética com a China.

Os estadunidenses de 1945 a 1969

Com a morte de Roosevelt, em 1945, o vice-presidente, Harry Truman, assumiu a liderança dos Estados Unidos. Seu governo caracterizou-se pelo início da Guerra Fria. Difundiu-se por todo o país a ideia de que qualquer oposição ao governo era sinal de antiamericanismo ou comunismo, produto de sabotagem e traição nacional. À frente dessa histeria política, estava o senador Joseph McCarthy (1908-1957), do qual deriva a palavra macarthismo, sinônimo de intolerância.

O macarthismo atingiu seu auge com o caso Rosenberg, em que o casal judeu Ethel e Julius Rosenberg, acusado de passar segredos da bomba atômica aos soviéticos, foi preso e julgado. Depois de um tumultuado processo, e apesar dos pedidos de clemência vindos de muitos países, ambos foram executados em 1953.

A febre macarthista atingiu todo o país, com julgamentos e condenações de muitos intelectuais, cineastas, escritores e artistas. Vários deles, entre os quais Charles Chaplin (1889-1977), foram obrigados a sair do país devido às perseguições. O macarthismo só se extinguiu por volta de 1956, durante o governo de Dwight Eisenhower.

Eleito em 1952 pelo Partido Republicano, Eisenhower foi reeleito em 1956, governando os Estados Unidos até 1960. Na política externa, oscilou entre o enfrentamento da Guerra Fria e a prática da Coexistência pacífica. Comandou uma política agressiva contra os soviéticos, estabelecendo pactos militares com países alinhados contra o comunismo. Ao mesmo tempo, retomou as relações com o governo soviético, que originaram os primeiros acordos do pós-guerra.

Eisenhower promoveu a construção de mísseis e estimulou a exploração espacial, a fim de ultrapassar os soviéticos, que em 1957 lançaram o primeiro satélite artificial da Terra, o Sputnik. Além disso, recebeu Nikita Kruschev em 1959, nos Estados Unidos, para conversações confidenciais e amigáveis.

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Nas eleições presidenciais de 1960, John Kennedy (1917-1963), do Partido Democrata, venceu o republicano Richard Nixon (1913-1994). Ao assumir a Presidência, Kennedy e o seu governo viram a vitória de Fidel Castro (1926-) em Cuba, em 1959, como nova ameaça no contexto da Guerra Fria. A Revolução Cubana anulou a tradicional hegemonia estadunidense na ilha, grande produtora de açúcar e charutos e apreciado local turístico.

Em 1961, Fidel Castro proclamou a adesão de Cuba ao socialismo. O governo dos Estados Unidos respondeu com o rompimento das relações diplomáticas com o governo cubano e colocou em prática um plano de invasão à ilha, elaborado pela Agência Central de Inteligência, a CIA (Central Intelligence Agency, órgão do governo estadunidense dedicado à espionagem e ações clandestinas). Nos termos desse plano, um grupo de exilados cubanos e mercenários norte-americanos desembarcou na baía dos Porcos, em Cuba, para derrubar o governo de Fidel Castro. A invasão, entretanto, fracassou, e Kennedy foi obrigado a assumir pessoalmente a responsabilidade da ação.

Kennedy temia novos episódios de rebeldia na América Latina, onde o descontentamento causado pelo subdesenvolvimento e pelas graves dificuldades econômicas era evidente. Criou, então, a Aliança para o Progresso, um programa de ajuda econômica aos países do continente, que garantia a supremacia das ideias, valores e interesses norte-americanos na região.

Em 1962, o governo dos Estados Unidos decretou o bloqueio econômico de Cuba, impedindo que países de sua esfera de influência comerciassem com a ilha. No mesmo ano, outro fato pôs em risco a aproximação Leste-Oeste e até mesmo a paz mundial: satélites dos Estados Unidos revelaram que mísseis soviéticos apontados para os Estados Unidos estavam sendo instalados em Cuba, a cerca de 160 km de distância.

Ameaçando invadir a ilha, o governo estadunidense exigiu a retirada dos mísseis. Diante da gravidade do incidente e de suas possíveis consequências, Kruschev, que assumira compromissos de defesa dos cubanos, preferiu recuar, desmontando as rampas de lançamento de mísseis instalados na ilha.

LEGENDA: Armas utilizadas pelos soldados mercenários cubanos e norte-americanos que desembarcaram em Cuba na tentativa de golpe contra Fidel Castro, em foto de 1961.

FONTE: Keystone-France/Gamma-Keystone/Getty Images

Na política interna, o presidente Kennedy adotou medidas voltadas para o bem-estar da população de seu país nas áreas de educação e saúde e tornou a discriminação racial ilegal. Sua carreira política foi encerrada em 22 de novembro de 1963, ao ser baleado durante uma visita oficial à cidade de Dallas, no Texas.

O vice-presidente Lyndon Johnson (1908-1973) assumiu o governo e foi reeleito para o período de 1964 a 1968. Durante o seu mandato, manteve uma atitude ofensiva contra o comunismo, distanciando-se dos soviéticos, e envolveu os Estados Unidos na Guerra do Vietnã, chegando a enviar mais de 500 mil soldados para a região. Essa participação provocou grandes manifestações de protesto contra a guerra e o intervencionismo do governo estadunidense no Sudeste Asiático.

LEGENDA: Lançamento de foguete que levava o satélite espacial soviético Sputnik 1, em 1957.

FONTE: Sovfoto/UIG/Getty Images



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LEGENDA: O presidente John Kennedy, momentos antes de ser atingido por uma bala que o mataria, em Dallas (Texas), no dia 22 de novembro de 1963. Esse crime nunca chegou a ser totalmente esclarecido: conspiração ou ato isolado de um delinquente?

FONTE: Reuters/Latinstock

Ainda no governo Kennedy, as manifestações do movimento negro contra o racismo se intensificaram, sob a liderança do pastor Martin Luther King (1929-1968). Desde o final da década de 1950, suas pregações reuniam milhares de simpatizantes e sobrepuseram-se às organizações radicais, como a liderada por Malcolm X (1925-1965) e a dos Black Panthers ('Panteras negras').

Luther King seguia a doutrina do indiano Mahatma Gandhi (1869-1948), que defendia a desobediência civil e a não violência como meios de obter conquistas sociais. Boicote aos meios de transporte exclusivos dos brancos, no sul do país, movimentos políticos de intelectuais e de sindicatos, e marchas pelos direitos civis foram alguns dos recursos usados pelo movimento negro em sua luta. Pouco a pouco, o movimento ganhou a adesão da maioria branca, e algumas decisões favoráveis foram obtidas nos tribunais.

Ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1964, Luther King foi assassinado em 1968. No mesmo ano, como reflexo de um agitado período de lutas políticas e sociais, o senador Robert Kennedy, irmão de John Kennedy, também foi assassinado. Ao condenar abertamente a Guerra do Vietnã, tornara-se o preferido na campanha presidencial em curso. Seu assassinato, cometido por um palestino, foi tido como um protesto contra a proteção dada pelo governo dos Estados Unidos ao Estado de Israel durante os conflitos árabe-israelenses no Oriente Médio.

LEGENDA: Martin Luther King, líder do movimento contra a segregação racial e pela igualdade de direitos civis da população negra dos Estados Unidos, numa manifestação em Washington D.C., em 1963.

FONTE: Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Latinstock

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Vivendo naquele tempo

Boxe complementar:

A nova classe média estadunidense

As transformações econômicas e sociais no pós-guerra mudaram significativamente a estrutura social dos países capitalistas, especialmente a dos Estados Unidos, cujo crescimento econômico foi favorecido pela Segunda Guerra Mundial.

O desenvolvimento das cidades e a multiplicação dos polos industriais, dos setores de produção de energia e de beneficiamento de alimentos alteraram significativamente as relações de trabalho que existiam até então. A taxa de empregos nos setores administrativos e de serviços aumentou, com a ampliação de possibilidades de trabalho para cuidar de papéis, dinheiro ou pessoas.

Essas mudanças, além de ampliarem os setores médios urbanos, transformaram suas práticas sociais, seus valores e seu cotidiano. De um lado, eles se diferenciavam dos trabalhadores que viviam da produção direta de mercadorias; de outro, não eram parte das elites industrial e financeira. Ao contrário dos antigos setores médios, a vida da nova classe média era regida pela lógica do trabalho, pelas possibilidades de ascensão econômica e, principalmente, pelas regras de etiqueta social.

A classe média que surgiu em meados do século XX trabalhava em bancos, lojas de departamento, empresas de publicidade e de turismo, nos serviços hospitalares e de saúde, nos setores educacional e cultural, na administração de portos, rodovias, sistemas de transporte urbano, etc. Em geral, eram empregados de grandes corporações, seguiam estruturas hierárquicas reconhecidas e aceitas, com padrões de comportamento que definiam salários, promoções e dispensas.

As roupas, o modo de vida doméstica, a organização da família, as ideias políticas, as práticas religiosas, tudo era observado e avaliado por todos. Costumes ou valores incomuns eram censurados e vistos como fracasso, enquanto os indivíduos de sucesso eram os que seguiam o rumo identificado como correto e válido da ascensão social.

Wright Mills (1916-1962), um importante sociólogo norte-americano, caracterizou essa nova classe média usando a expressão "colarinho branco", em virtude do uso cotidiano do paletó e gravata, que a distinguia dos trabalhadores de macacão. Segundo ele:

O homem de colarinho branco do século vinte nunca foi independente como o fazendeiro costumava ser, nem tão esperançoso de uma grande chance como o antigo homem de negócios. Ele é sempre o homem de alguém, da corporação, do governo, do exército, e ele é visto como o homem que não cresce. O declínio do empreendedor livre e o crescimento do empregado dependente no cenário americano ocorreram em paralelo com o declínio do indivíduo independente e o crescimento do pequeno homem no imaginário de seu povo. Em um mundo povoado por forças grandes e feias, o homem do colarinho branco é prontamente identificado como possuidor de todas as supostas virtudes da pequena criatura. Ele pode estar na parte de baixo do mundo social, mas ele é, ao mesmo tempo, grato por ser de classe média.

MILLS, Wright. A nova classe média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. p. 32.

LEGENDA: Nesse anúncio publicitário dos anos 1950 vemos a imagem de uma família de classe média norte-americana tradicional. Marido, esposa e crianças saem contentes da igreja no domingo, de acordo com os ideais da época. No cartaz, lê-se: "Construam uma vida mais sólida e rica... Rezem juntos todas as semanas".

FONTE: Hulton Archive/Getty Images

Fim do complemento.

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6. Os soviéticos até 1964

LEGENDA: Stalin mobilizou todos os recursos da economia soviética, articulando a produção coletivizada rural e o desenvolvimento industrial. Foi esse impulso econômico que sustentou a posição de grande potência mundial da União Soviética nas duas primeiras décadas do período da Guerra Fria. Desde o início dos anos 1930, ele ordenou a perseguição de adversários políticos e estimulou o culto à personalidade, exemplificado pelo cartaz acima (de 1933), que o mostra como condutor da União Soviética. À direita, em russo, lê-se impresso: "O capitão do país dos sovietes nos conduz de vitória em vitória".

FONTE: Reprodução/Museu Central Estatal da História Contemporânea da Rússia, Moscou, Rússia.

LEGENDA: No XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em Moscou, Kruschev condenou o "culto à personalidade", a repressão política e o autoritarismo de Stalin, além de afirmar que "as prisões em massa faziam mal ao país e à causa do progresso socialista". Acima, foto de fevereiro de 1956, na qual os dirigentes do Partido Comunista da União Soviética ouvem a fala de Kruschev.

FONTE: Agência France-Presse/Getty Images

Após a Segunda Guerra Mundial, a União Soviética governada por Stalin teve que enfrentar dois grandes desafios: sua própria reconstrução econômica e social e a consolidação de sua liderança no bloco comunista, que passava a englobar os países do Leste Europeu.

O país recuperou o nível de produção anterior à guerra com os planos quinquenais de 1946-1950 e 1951-1955. O setor bélico recebeu os maiores investimentos e a indústria pesada desenvolveu-se, enquanto a produção de bens de consumo foi relegada a segundo plano.

Entretanto, a sociedade soviética, cada vez mais concentrada em núcleos urbanos graças à industrialização, mobilizava-se por melhorias no padrão de vida. Os soviéticos exigiam variedade de bens de consumo e mais autonomia, que contrastava com o centralismo stalinista.

Desde os anos 1930, Josef Stalin eliminara divergentes e opositores a seu poder por meio de expurgos, execuções sumárias, prisões e outras formas de repressão. Essa prática levou à expulsão de mais de 1 milhão de pessoas dos partidos comunistas dos países que integravam o bloco socialista, muitas delas executadas.

Após a morte de Stalin, em março de 1953, ocorreu a disputa pela liderança soviética. O vencedor foi Nikita Kruschev, que assumiu o cargo de secretário-geral do Partido Comunista. Em 1958, tornou-se primeiro-ministro e governou até 1964, quando foi afastado. Sua liderança foi marcada pelo início do processo de "desestalinização", em 1956, quando ele denunciou os crimes de Stalin no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS).

Kruschev propunha a descentralização política, certa liberalização cultural e a elevação do bem-estar social como táticas para alcançar a eficiência econômica e tecnológica. Essa política garantiu aos soviéticos o pioneirismo na corrida espacial ao lançarem, em 1957, o satélite artificial Sputnik e realizarem o primeiro voo espacial tripulado em 1961, com o astronauta Yuri Gagarin (1934-1968). Os soviéticos provavam que, além dos Estados Unidos, eles também produziam tecnologia sofisticada.

Além de promover a Coexistência Pacífica, o líder soviético flexibilizou as relações com seus aliados do bloco comunista. Exemplo disso foi a aceitação da política de Josip Broz Tito (1892-1980) da Iugoslávia, que propunha uma via diferente de desenvolvimento do socialismo.

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A desestalinização na União Soviética era reflexo de transformações sociais profundas que começavam a ocorrer não só na superpotência comunista, mas também em outros países do Leste Europeu. Em 1956, a agitação política no mundo socialista cresceu descontroladamente. Na Polônia, após uma insurreição de trabalhadores em Poznán, o líder Wladyslaw Gomulka (1905-1982), destituído do governo e preso no período stalinista, foi reconduzido ao poder.

Na Hungria, trabalhadores, estudantes e intelectuais se rebelaram contra a dominação soviética em uma revolução de caráter socialista. Para apaziguá-los, Mátyás Rákosi (1892-1971) foi substituído na direção do Partido Comunista por Imre Nagy (1896-1958), que, representando os anseios populares de democratização e autonomia, tentou retirar o país do Pacto de Varsóvia.

Em resposta, tropas soviéticas invadiram a Hungria, em novembro de 1956, ocuparam Budapeste e, após a morte de aproximadamente duzentos húngaros, derrubaram Nagy, colocando János Kádár (1912-1989) no cargo de primeiro-ministro. Nos discursos, entretanto, Kruschev defendia o respeito às diferentes vias para o socialismo, elogiando o não alinhamento e a neutralidade, procurando, dessa forma, aproximar-se dos países do Terceiro Mundo.

Enquanto isso, a China, sob a liderança de Mao Tsé-tung, firmou sua autonomia opondo-se à ideia de Coexistência Pacífica e acusando as reformas de Kruschev de "revisionismo" e traição aos princípios socialistas. As divergências sino-soviéticas cresceram, manifestando-se em conflitos de fronteira e em acusações mútuas. Em 1959, os países romperam o acordo nuclear e, no ano seguinte, a União Soviética retirou a ajuda econômica e técnica aos chineses. Esse conflito rompia definitivamente o projeto de unidade socialista comandada pelos soviéticos, desgastando o poder de Kruschev.

Como vimos, as relações capitalismo-socialismo sofreram novo abalo em 1962, com a crise dos mísseis de Cuba, que quase precipitou uma guerra total. Na tentativa de reverter a tensão internacional, Kruschev e Kennedy assinaram em 1963 vários acordos, que incluíam a proibição de novos testes nucleares.

Após a destituição de Kruschev do poder, em 1964, o governo soviético ficou a cargo de uma troika (triunvirato) formada por Leonid Brejnev (1906-1982), secretário-geral do partido, Alexey Kossygin (1904-1980), presidente do Conselho de Ministros, e Nikolai Podgorny (1903-1983), presidente do Soviete Supremo. O poder retornava assim à linha centralista da era stalinista na União Soviética.

LEGENDA: O cosmonauta soviético Yuri Gagarin, primeiro homem a ir ao espaço, a bordo da Vostok 1, em 12 de abril de 1961.

FONTE: SSPL/Getty Images

LEGENDA: A intervenção militar soviética encerrou o curto período de liberalização socialista húngara. População sobe em tanque soviético numa rua de Budapeste, durante a Revolução Húngara. Foto de 1956.

FONTE: Rue des Archives/The Granger Collection/Glow Images

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7. O socialismo na China

Assim que conquistou o poder da China, em 1949, o Partido Comunista Chinês (PCC) promoveu a nacionalização das indústrias e a reforma agrária pelo país, para enfrentar as dificuldades econômicas, agravadas com a Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953.

Anunciado em 1953, o primeiro plano quinquenal priorizou a indústria pesada. Em 1955, a coletivização da agricultura acelerou-se com a organização de 1 milhão de cooperativas. O aumento dos salários, contudo, não acompanhou o aumento da produtividade industrial.

Ao perceber que o desenvolvimento socialista estava aquém das exigências sociais e ameaçava o governo do Partido Comunista, Mao Tsé-tung proclamou a liberalização política interna, com o objetivo de obter maior envolvimento popular. A iniciativa permitiu o aparecimento de críticas aos abusos dos funcionários do partido e à atuação de oposicionistas contrários ao centralismo planificado.

Associada ao lema "Que 100 flores desabrochem, que 100 escolas de pensamento rivalizem entre si" (1956), a abertura política foi chamada de Movimento das 100 Flores . A iniciativa foi encerrada quando se transformou em ameaça ao governo e fugiu do controle do PCC. Seguiram-se prisões e programas de "reeducação" de intelectuais e ativistas considerados "direitistas". Mao justificou-se dizendo que o Movimento das 100 Flores pretendia "fazer as serpentes saírem de suas tocas". Tratava-se, portanto, de uma armadilha para reprimir dissidentes do regime comunista.

Em 1958, o governo chinês lançou seu ambicioso segundo plano quinquenal, com o programa de reformas chamado Grande Salto para a Frente. Promoveu-se a industrialização acelerada do país e a formação de gigantescas unidades agrícolas conhecidas como comunas populares. Algumas dessas unidades reuniam 100 mil pessoas.

Para saber mais

Boxe complementar:

Tensões sino-soviéticas

O compromisso soviético de fornecer armas nucleares aos chineses, firmado em 1957, foi rompido em 1959, durante os preparativos para um encontro de representantes soviéticos com o presidente estadunidense Dwight Eisenhower, como parte da política de Coexistência Pacífica. A atitude soviética foi muito criticada pelos chineses, para os quais o imperialismo dos Estados Unidos continuava ameaçador. Em represália, em 1960 a União Soviética retirou seus conselheiros técnicos da China.

A política de priorização da produção de bens de consumo e de "desestalinização" do regime adotada por Kruschev distanciava ainda mais o PCUS do PCC. Naquele momento, os chineses desenvolviam a indústria de base, e Mao Tsé-tung era venerado como o grande guia chinês, tornando-se alvo da crítica ao culto da personalidade feita a Stalin pelo líder soviético.

Em 1962, as relações sino-soviéticas romperam-se, quando o PCC acusou Kruschev e o PCUS de "revisionistas", ou seja, de modificarem as teses marxistas originais, distanciando-se do socialismo puro.

A partir dos anos 1970, o governo chinês aproximou-se dos Estados Unidos. Essa política possibilitou o seu ingresso na ONU em 1971 e a visita do presidente Richard Nixon à China no ano de 1972. Com uma política autônoma, os chineses tornaram-se militarmente autossuficientes: explodiram sua primeira bomba atômica em 1964 e a de hidrogênio em 1967.

Em 1969, as relações entre a China e a União Soviética haviam se deteriorado de tal forma que entre os dois países socialistas havia apenas algumas modestas transações econômicas e questões diplomáticas de rotina. Progressos na reaproximação entre eles ocorreram somente a partir de 1986.

LEGENDA: Cartaz chinês de 1967 criticando a política de Kruschev. O conflito sino-soviético derivava de divergências ideológicas e afetava questões políticas e econômicas entre os dois países.

FONTE: Reprodução/Coleção particular

Fim do complemento.

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O projeto Grande Salto teve resultados limitados mesmo com a mobilização geral da população, inclusive de intelectuais e estudantes convocados a trabalhar no campo, e com o crescimento da produção rural em 65%. Como as relações sino-soviéticas tornaram-se mais difíceis, as dissidências e a oposição interna ao Partido Comunista Chinês se intensificaram. Como o Grande Salto não obteve o êxito que se esperava, Mao foi afastado do comando do partido.

Em resposta a seus adversários na cúpula do PCC, em meados da década de 1960 Mao Tsé-tung iniciou a expulsão de opositores políticos dentro do governo - a Revolução Cultural, que envolveu toda a população chinesa. Esse movimento logo se desdobrou em críticas ao PCC e aos opositores de Mao, apelidados de "pró-burguesia" e "kruschevistas".

Os dazibaos, jornais murais públicos feitos por populares, espalharam-se pelo país, divulgando o movimento que, em pouco tempo, se transformou numa luta pelo poder empreendida pelo grupo maoísta.

Sustentado pelo Exército Popular de Libertação, o grupo maoísta opunha-se à facção de Liu Shaoqi (1898-1969) e Deng Xiaoping (1904-1997), adversários de Mao dentro do Partido Comunista Chinês. Ambos foram perseguidos e presos.

Durante a Revolução Cultural, as organizações revolucionárias multiplicaram-se, como a Guarda Vermelha, inspiradas na obra Pensamento de Mao Tsé-tung também conhecida como Livro vermelho. Nela, firmavam-se as ideias de reeducação socialista, de críticas ao burocratismo, de fidelidade a Mao e permanente alerta contra o inimigo.

Entre 1967 e 1968, consolidou-se a autoridade de Mao, que expulsou do partido seus opositores, entre os quais Deng Xiaoping. Mao sobrepôs-se até mesmo ao PCC, transformando-se no líder máximo nacional, a quem chamavam de "o grande timoneiro". Sua morte, em 1976, deu início à disputa pelo poder na China.

LEGENDA: Meninos e meninas leem cópias do Livro vermelho, de Mao Tsé-tung. Foto divulgada pela agência oficial de comunicações da China, em 1968.

FONTE: Xinhua/Agência France-Presse

LEGENDA: Manifestação da Guarda Vermelha na província de Ning Xian. Foto tirada entre 1966 e 1968. A Guarda Vermelha era constituída basicamente de jovens mobilizados para divulgar o pensamento de Mao Tsé-tung e combater aquilo que se opunha à China idealizada pelo líder. Na foto, exemplares de dazibaos afixados nas paredes.

FONTE: Zhou Thong/Album/akg-images/Latinstock

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A China pós-Mao

Em 1977, Deng Xiaoping foi reabilitado ao partido, tornando-se o novo líder do governo chinês. Lançou um programa de reformas que promoveram o desenvolvimento do país com base em medidas de liberalização da economia, como a criação de Zonas Econômicas Especiais, abertas à instalação de empresas estrangeiras. Essas medidas atraíram uma onda de investimentos externos para a China.

A liberalização da economia, contudo, não foi acompanhada de medidas que diminuíssem o poder monolítico do Partido Comunista. Essa contradição atingiu seu ápice entre abril e junho de 1989, com a ocupação popular da Praça da Paz Celestial, em uma série de manifestações no centro de Pequim.

Liderados por estudantes, os manifestantes exigiam liberdade de expressão e de imprensa, e a democratização do país. Em resposta, o governo reprimiu o movimento com violência. No dia 3 de junho, tanques de guerra e tropas do exército invadiram a praça e atiraram contra a multidão. Estima-se que o número de pessoas mortas tenha chegado a 7 mil.

Na segunda década do século XXI, sob o comando de Xi Jinping (1953-), cujo mandato iniciou-se em março de 2013, a China tem consolidado sua abertura ao sistema capitalista, combinando-a com a ordem comunista herdada da revolução de 1949. Os chineses podem ter os próprios negócios, a economia do país está aberta a investimentos estrangeiros, há mais vínculos com o circuito de negócios internacionais, admite-se o consumismo e a população tem liberdade para viajar ao exterior.

A abertura econômica contrapõe-se à estrutura política baseada no regime de partido único e ao controle estatal das comunicações, da censura e da re - pressão às manifestações populares que reivindicam democracia.

O sucesso econômico chinês das últimas décadas confirmou-se com a admissão do país na Organização Mundial de Comércio (OMC) em novembro de 2001, o ingresso de empresários no PCC e as seguidas taxas de crescimento econômico prolongado, superiores a 7,5% até 2013. Em 2015, o crescimento de 6,8% foi o menor desde 1990, mostrando uma desaceleração.

As reservas internacionais da economia chinesa passaram de US$ 819 bilhões em 2005 para mais de US$ 4 trilhões em 2013. Com esse crescimento, a China tornou-se a segunda maior economia e a maior potência comercial do mundo, porém, a sua desaceleração econômica recente tem afetado a economia internacional nos últimos anos.

LEGENDA: A violenta repressão à ocupação da Praça da Paz Celestial por estudantes e trabalhadores, em 1989, valeu ao governo de Deng Xiaoping a condenação internacional. Ao lado, imagem de vídeo na qual um estudante solitário tenta barrar o avanço de tanques com seu próprio corpo, em protesto contra o autoritarismo do governo em Pequim.

FONTE: CNN/Getty Images

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8. A Revolução Cubana (1959)

A independência cubana, em 1898, logo esbarrou na política do Big Stick ("grande porrete") que, como já vimos, foi criada pelo governo dos Estados Unidos para que pudessem intervir nos países da América Latina.

Nos termos dessa política, o governo daquele país exigiu que a Emenda Platt fosse incluída na Constituição cubana de 1901, dando início à tutela estadunidense sobre Cuba. Além de ceder aos Estados Unidos a região da baía de Guantánamo, ainda hoje uma base norte-americana em solo cubano, o país ficou sob a ameaça constante de invasão e sujeito a governos ditatoriais subservientes ao governo dos Estados Unidos, como o de Fulgêncio Batista (1901-1973), que governou Cuba de 1940-1944 e de 1952-1958.

Na década de 1950, entretanto, a oposição à ditadura cresceu consideravelmente. Em 1956, um movimento armado, liderado por Fidel Castro, Camilo Cienfuegos (1932-1959) e Ernesto "Che" Guevara (1928-1967) instalou-se nas montanhas de Sierra Maestra. Apoiado pelos camponeses e utilizando táticas de guerrilha, o movimento cresceu rapidamente e, depois de sucessivas vitórias, ocupou várias cidades e povoados de Cuba. Em 31 de dezembro de 1958, Fulgêncio Batista, derrotado, fugiu do país para a vizinha República Dominicana.

A política de mudanças adotada pelo governo revolucionário a partir de 1959 chocava-se com os interesses do governo dos Estados Unidos no país. A realização da reforma agrária e a nacionalização das refinarias de açúcar, usinas e indústrias - a maior parte pertencente a norte-americanos - levaram o governo estadunidense a suspender a importação do açúcar cubano. Como a venda desse produto era vital para a economia de Cuba, o novo governo buscou um novo mercado consumidor, voltando-se para os soviéticos.

LEGENDA: Fidel Castro acena para a população, após sair vitorioso na guerrilha contra a ditadura de Fulgêncio Batista, em janeiro de 1959.

FONTE: Rolls Press/Popperfoto/Getty Images

A ligação de Cuba com o bloco soviético serviu de justificativa para John Kennedy tomar medidas radicais contra o país. Em janeiro de 1961, o governo dos Estados Unidos tentou, sem sucesso, derrubar Fidel Castro do poder, no episódio da invasão da baía dos Porcos.

No mesmo ano, Fidel anunciou formalmente ao mundo que Cuba passava a ser um país socialista. Ao ingressar no bloco, a ilha se tornou importante ponto estratégico para a União Soviética, que tentou instalar mísseis em seu território, fato que originou a crise dos mísseis de 1962, como vimos anteriormente.

LEGENDA: Fidel Castro, à direita, conversa com "Che" Guevara, em foto de 1959.

FONTE: The New York Times/Latinstock

Ainda em 1962, Cuba foi expulsa da Organização dos Estados Americanos (OEA), sob a acusação de que disseminava a subversão pelo continente, embora o México continuasse a manter relações diplomáticas com o governo cubano. Época, como vimos, em que John Kennedy lançou para a América Latina a Aliança para o Progresso.

Isolada no continente, Cuba passou a apoiar os movimentos guerrilheiros que eclodiam em diversos pontos da América Latina. O próprio líder da Revolução Cubana e ex-ministro de Cuba, Ernesto "Che" Guevara, participou pessoalmente da guerrilha boliviana. Porém, em outubro de 1967, foi morto na Bolívia.




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Enquanto a atitude ofensiva cubana ocorria, o governo dos Estados Unidos apoiava golpes militares no continente, que implantaram governos ditatoriais voltados a conter a expansão do socialismo na América Latina.

A Revolução Cubana constituiu uma forma singular de enfrentar os problemas de miséria e opressão causados pelo subdesenvolvimento, sem para isso recorrer ao alinhamento com o governo dos Estados Unidos. Após 25 anos do início da revolução, o governo cubano, apesar de várias dificuldades enfrentadas, diminuiu o desemprego e a miséria entre a população, e o analfabetismo foi erradicado do país.

Porém, as mudanças políticas e sociais no Leste Europeu e a derrocada da União Soviética, entre 1989 e 1991, que estudaremos adiante, fortaleceram a pressão popular por reformas na política cubana, como a reivindicação pela abertura política e pelo fim do partido único, controlado pelos irmãos Castro.

Ao mesmo tempo, o bloqueio econômico dos Estados Unidos implementado desde 1961 multiplicava as dificuldades da população cubana e do próprio regime socialista. Os efeitos dessa política estadunidense foram tão negativos que muitas das conquistas sociais, econômicas e culturais obtidas até os anos 1980 foram revertidas ou ameaçadas.

A retração econômica do Leste Europeu, provocada pelo esfacelamento da União Soviética, levou os dirigentes comunistas cubanos a tentar, em meados da década de 1990, um reformismo econômico e uma aproximação com a comunidade internacional discordante do bloqueio imposto pelo governo norte-americano. Assim, o lema revolucionário "socialismo ou morte" foi substituído por "queremos capital, e não capitalismo". Outro mecanismo adotado pelo governo cubano foi o incremento do turismo, para atrair divisas que recuperassem a economia do país.

Nos últimos anos, vigorou em Cuba uma política pendular de isolamento e reaproximação do governo com vários países, especialmente com os Estados Unidos e com a União Europeia. Nesse contexto, o intercâmbio comercial e os financiamentos canadenses e europeus concedidos ao país cresceram. Apesar disso, dissidências internas e oposição à ordem política, seguidas de repressão e prisões, evidenciavam a permanência da estrutura fechada e antidemocrática, motivo de críticas e de entrave à maior integração de Cuba no circuito dos negócios e da política internacional.

1962: a crise dos mísseis

FONTE: Adaptado de: HISTOIRE-Géographie. Paris: Hatier, 1991. p. 115.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Em 2006, Fidel Castro afastou-se do poder por problemas de saúde, e seu irmão, Raúl Castro (1931-), assumiu o governo de Cuba. Em julho de 2015, os presidentes Raúl Castro e Barack Obama reataram as relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos. Em março de 2016, o presidente estadunidense visitou a ilha, estreitando ainda mais a reaproximação, depois de mais de 50 anos de rompimento.

LEGENDA: Mulheres cubanas participam de manifestação em Miami, nos Estados Unidos, em 1994. Vestindo camisetas com a letra "P", de "prisioneiro", e com as mãos simbolicamente acorrentadas, elas clamam por liberdade para o povo cubano. Na Flórida há uma grande comunidade de cubanos que deixaram a ilha durante ou após a revolução por não concordar com as políticas de Fidel Castro.

FONTE: Jaime Razuri/Agência France-Presse

LEGENDA: O presidente dos Estados Unidos Barack Obama e o presidente de Cuba Raúl Castro cumprimentam-se durante a primeira visita de Obama a Cuba, em Havana. Fotografia de 21 de março de 2016.

FONTE: Kevin Lamarque/Reuters/Latinstock

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Atividades

Retome

1. Explique o que foi o Plano Marshall. Em seguida, responda: para o governo soviético, o que essa medida significava? O governo soviético tomou alguma medida a partir do estabelecimento do Plano Marshall?

2. Relacione a divisão da Alemanha e a construção do Muro de Berlim à situação ideológica internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial.

3. Em que consistiu o processo de desestalinização na União Soviética e qual foi o papel de Nikita Kruschev nesse processo?

4. O Partido Comunista Chinês (PCC) chegou ao poder na China em 1949.

a) Identifique e comente pelo menos três medidas do governo socialista na China entre as décadas de 1950 e 1960.

b) Relacione o processo de desestalinização e o distanciamento entre os governos da China e da União Soviética.

5. Com base nas informações do mapa da página 182, explique em que consistiu a crise dos mísseis de 1962.

Pratique

6. Os dois textos a seguir tratam de aspectos gerais da Guerra Fria. Leia-os e responda às questões propostas.

Texto 1

O Estado de Segurança Nacional, a aliança da Otan, a Guerra Fria que durou 40 anos, todos foram criados sem o consentimento da população americana, que nem sequer chegou a ser consultada. Houve, é claro, eleições durante esse período crucial, mas Truman-Dewey, Eisenhower-Stevenson, Kennedy-Nixon tinham a mesma opinião no tocante à conveniência de, primeiro, inventar-se um inimigo de muitos tentáculos, o comunismo [...]; e, depois, para combater tanto mal, instalar um Estado guerreiro permanente em casa, com [...] uma polícia secreta para vigiar os "traidores" nativos, como ficaram sendo conhecidos os poucos inimigos do Estado de Segurança Nacional.

Seguiram-se 40 anos de guerras insensatas que geraram uma dívida de US$ 5 trilhões, que beneficiou enormemente a indústria aeroespacial [...].

VIDAL, Gore. As diversões imperiais. Caderno Mais! Folha de S.Paulo, 7 dez. 1997. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/12/07/mais!/7.html. Acesso em: 16 abr. 2016.

Texto 2

A Guerra Fria tornou-se "quente" quando os Estados Unidos intervieram na dividida Coreia, em 1950 [...].

Com duração de três anos, a guerra foi enormemente sangrenta, matando ou ferindo 140 mil soldados americanos e três vezes esse número entre os coreanos do Norte e seus aliados chineses. Dois milhões de civis morreram no conflito, que terminou com a mesma divisão territorial que havia no início, uma tradução precisa da Guerra Fria como um todo.

PURDY, Sean. Planejando a ordem pós-guerra e a Guerra Fria. In: KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2015. p. 229.

a) Quem seriam os "poucos inimigos do Estado de Segurança Nacional" nos Estados Unidos na época da Guerra Fria, citados no texto 1?

b) Que nome se deu à política de vigilância e perseguição a esses "inimigos", pelo próprio governo estadunidense, na década de 1950? Como essa política afetou a sociedade e a cultura dos Estados Unidos de então?

c) Para o autor do texto 2, quando a Guerra Fria tornou-se "quente"? Por quê?

d) Por que o autor do texto 2 diz que a divisão territorial da Coreia era uma "tradução precisa da Guerra Fria como um todo"?

Analise uma fonte primária

7. Observe a imagem ao lado e faça o que se pede.

LEGENDA: Capa da revista estadunidense Time, publicada em 6 de dezembro de 1968. Na parte inferior, lê-se, em inglês: "Corrida pela Lua".

FONTE: /Arquivo da editora Revista Time

a) A que nacionalidade pertence cada astronauta representado na imagem?

b) Por que eles foram representados correndo em direção à Lua? Eles estão correndo juntos ou competindo entre si? Explique.

c) Por que a corrida espacial passou a ser importante no período da Guerra Fria?

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Articule passado e presente

8. Neste capítulo, você estudou a Revolução Cubana, um dos focos de tensão da Guerra Fria. Depois de muito tempo de antagonismo, Cuba e Estados Unidos só retomaram as relações diplomáticas em 2015. Será que isso trouxe mudanças na política, na economia e no cotidiano dos cubanos?

a) Para entender melhor a atual situação de Cuba, reúna-se com um colega e observem as fotos a seguir.

LEGENDA: A cubana Paloma Duarte tinha 18 anos em 2016. Para ela, a visita do presidente Barack Obama a Cuba, realizada naquele ano, foi positiva, já que promoveu a abertura de um canal de comunicação entre Cuba e Estados Unidos (algo importante, já que Paloma tem muitos familiares morando nos Estados Unidos). Foto de 23 de março de 2016, em Havana, Cuba. Fonte das legendas: The Atlantic. Disponível em: www.theatlantic.com/photo/2016/04/cubans-react-to-president-obamas-visit/477177. Acesso em: 30 jun. 2017.

FONTE: Ueslei Marcelino/Reuters/Latinstock

LEGENDA: Para o jovem cubano Jurangel, que em 2016 tinha 25 anos de idade, a visita de Obama a Cuba, em 2016, também foi positiva. Em suas palavras, foi "espetacular". Foto de 23 de março de 2016, em Havana, Cuba.

FONTE: Ueslei Marcelino/Reuters/Latinstock

b) Agora, vocês vão fazer uma pesquisa sobre a situação atual de Cuba, procurando responder:

- Em que consistia, em detalhes, o bloqueio (ou embargo) imposto a Cuba pelos Estados Unidos em 1962 e que consequências ele trouxe para a sociedade cubana?

- Que mudanças passaram a ocorrer em Cuba a partir de 2006, com Raúl Castro?

- De que modo os jovens encararam a retomada de relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos, em 2016? As reações foram todas positivas ou houve grupos da população cubana que se posicionaram contra essa retomada? E as gerações mais velhas de Cuba, como reagiram aos acontecimentos de 2016?

c) Levantem dados em sites de agências de notícias e de órgãos oficiais para uma pequena reportagem. Nela vocês deverão relacionar a história de Cuba à Guerra Fria e fazer um comentário sobre a situação atual de Cuba e as particularidades de se realizar um estudo sobre um processo tão atual. Para isso, retomem os conhecimentos sobre a chamada história imediata, que vocês conheceram no Saber histórico desta Unidade. Compartilhem a reportagem com o restante da classe.

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CAPÍTULO 10: Brasil no período da Guerra Fria: da democracia à ditadura

LEGENDA: Em 2014, movimentos sociais e grupos de familiares ligados às vítimas da repressão durante a ditadura militar organizaram atos em diversas cidades do país para lembrar os 50 anos do golpe militar e protestar contra a violação de direitos humanos ocorrida naquele período. Na foto, ato realizado em 31 de março de 2014 no antigo prédio do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), órgãos subordinados ao Exército e responsáveis pela repressão do governo brasileiro durante a ditadura. No ato, familiares e torturados seguram fotos de vítimas da repressão durante a ditadura militar.

FONTE: Danilo Verpa/Folhapress

Entre 1946 e 1964, o Brasil passou por um período democrático em que os debates políticos, a modernização dos meios de comunicação e o crescimento urbano se fizeram presentes. Porém, em 1964, um regime ditatorial foi implantado no Brasil: iniciava-se o período de governos militares, que só terminou em 1985. O que ocorreu para que, depois daquele período democrático, tivesse início um regime ditatorial? Que consequências os regimes ditatoriais trazem a um país e a sua população? Hoje, de que maneira nós, cidadãos brasileiros, lidamos com as heranças da ditadura?

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1. O Brasil no cenário do pós-Segunda Guerra Mundial

Em 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial, a ditadura do Estado Novo chegou ao fim. No final desse ano foram realizadas eleições que deram a vitória ao general Eurico Gaspar Dutra (1883-1974). Com a abertura democrática, houve uma nova organização dos partidos políticos, além da garantia da liberdade de expressão. Com isso, houve grandes debates políticos, nos quais se manifestavam diferentes propostas para o Brasil enfrentar suas dificuldades econômicas e sociais.

Foi também o início do período marcado pela Guerra Fria, que exigia dos países um posicionamento político favorável ou ao capitalismo estadunidense ou ao socialismo soviético. Prevaleceram, ao final, o alinhamento e a dependência brasileira em relação aos Estados Unidos e aos países do bloco capitalista, porém sob um discurso nacionalista.

O nacionalismo era uma das grandes correntes de pensamento que dividiam os debates políticos, juntamente com a corrente liberal e a comunista. A corrente nacionalista defendia um Estado forte e independente, investidor na economia e com restrições ao capital estrangeiro. A corrente liberal era favorável a um vínculo maior com o capitalismo internacional, à abertura do mercado interno aos produtos e capitais estrangeiros e a uma maior aproximação econômica e financeira com os Estados Unidos. Já a corrente comunista, que tinha um número menor de defensores, também era a favor da maior participação do Estado na vida nacional, conforme queriam os nacionalistas. Porém, diferentemente destes, defendia reestruturar a ordem social e política e defendia uma maior aproximação com o bloco liderado pela União Soviética.

Além do crescimento urbano e industrial ainda maior, o período também foi marcado pela modernização dos meios de comunicação, destacando-se o início das transmissões de televisão em 1950, com a TV Tupi de São Paulo.

LEGENDA: Anúncio de televisor publicado na revista O Cruzeiro, em setembro de 1950.

FONTE: Coleção particular/Arquivo da editora

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Esses avanços não foram acompanhados por mudanças que diminuíssem as desigualdades sociais ou alterassem as péssimas condições de vida da maioria da população.

De 1946 a 1964, os debates em torno de um projeto de Brasil, principalmente quanto à opção pelo liberalismo ou nacionalismo, foram somados àqueles em torno da questão social, nas cidades e no campo. Vale ressaltar que, no censo de 1960, 45% dos 70 milhões de brasileiros morava em cidades. Essa situação seria invertida no início dos anos 1970.

Com o acirramento das posições políticas e sociais e a polarização da sociedade, o regime democrático foi suprimido novamente. Em 1964 foi instalado um regime ditatorial, que duraria até 1985.

Brasil e a experiência democrática (1945-1964)

Eurico Gaspar Dutra assumiu a presidência em janeiro de 1946. O início de seu governo foi marcado pela posse da Assembleia Nacional Constituinte, encarregada de elaborar uma nova Constituição para o Brasil. Promulgada ainda em 1946, a Carta restabelecia a democracia, a organização do Estado em três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e a autonomia dos estados e municípios, colocando fim ao centralismo político que caracterizou a Era Vargas. No entanto, a nova Constituição manteve a exclusão do direito de voto aos analfabetos (mais da metade da população), inúmeras restrições ao direito de greve e a não incorporação dos trabalhadores do campo à legislação trabalhista.

Leituras

Boxe complementar:

O trecho abaixo foi retirado da obra da professora e historiadora brasileira Lilia Moritz Schwarcz. Leia-o com atenção e identifique a descrição feita sobre o presidente e sobre o decreto assinado em seu mandato. O Decreto Dutra, como ficou conhecido, proibia a prática ou a exploração de jogos de azar em todo o país.

Dona Santinha

Dutra se imaginava austero, um homem de poucas palavras e hábitos regulares. Ele era isso e um pouco mais: tinha vista e horizonte estreitos e postura moralista. Em abril de 1946, mal tomara posse e já havia assinado um decreto que resvalava na hipocrisia: proibiu o jogo em todo o território nacional e fechou os cassinos. O decreto teria sido inspirado pelas insistentes orações da esposa do presidente, que, de tão carola, era conhecida pelo apelido de Dona Santinha, e vinha embalado numa impostura: a de que seu governo tinha a obrigação de preservar a moral e os bons costumes entre os brasileiros. [...]

Com o decreto de Dutra, cerca de 40 mil pessoas acabaram desempregadas em todo o país. Muitos bateram na porta do Palácio do Catete para convencer o presidente de que o prejuízo seria grande e que o jogo continuaria a funcionar de maneira clandestina. Não houve jeito. O governo Dutra estava atento a rezas e às beatas, mas era impermeável às demandas sociais.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 399.

LEGENDA: No Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, além do salão de jogos, havia apresentações de cantores e artistas famosos, como Carmen Miranda e Grande Otelo. Na foto, de 1942, uma apresentação de dança no cassino.

FONTE: Associated Press/Glow Images

Fim do complemento.

189

Na área econômica, Dutra deu uma orientação liberal ao seu governo, afastando-se da política nacionalista adotada por Getúlio Vargas. Com a abertura do mercado aos produtos importados, as reservas nacionais em moedas estrangeiras acumuladas durante a Segunda Guerra esgotaram-se. Em 1948, foi anunciado o Plano Salte, abreviatura de Saúde, Alimentação, Transporte e Energia, considerados setores prioritários. O plano só foi aprovado pelo Congresso em 1950, no final do governo Dutra, e abandonado pelo governo seguinte. Assim, foi implementado apenas em parte, como a pavimentação da rodovia Rio-São Paulo (atual Via Dutra), a abertura da rodovia Rio-Bahia e o início das obras da Hidrelétrica do São Francisco.

Aderindo ao clima da Guerra Fria, o governo Dutra estreitou relações com os Estados Unidos e, em 1947, rompeu relações diplomáticas com a União Soviética. Esse posicionamento acabou provocando um recuo na frágil e recente democracia brasileira: o governo decretou a ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cassando o mandato de deputados, senadores e vereadores do partido que foram eleitos em 1945. Além disso, o governo também ordenou a intervenção estatal em mais de 400 sindicatos.

Getúlio Vargas foi vitorioso nas eleições para a sucessão de Dutra em outubro de 1950. Ele candidatou-se pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com o apoio do Partido Social Democrático (PSD). Assim, o pai dos pobres, como ficou conhecido, reassumia a Presidência do Brasil em janeiro de 1951, mas, desta vez, democraticamente. Sua atuação política junto às camadas mais carentes do país, no estilo populista, foi decisiva para sua vitória.

LEGENDA: Em 1947, o presidente estadunidense Harry Truman veio ao Brasil, quando se encontrou com o presidente Dutra, à direita. Em piada corrente na época, contava-se que os cumprimentos teriam sido: "How do you do, Dutra?". "How tru you tru, Tru man?".

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

LEGENDA: Getúlio Vargas discursa durante sua posse como novo presidente da República do Brasil, em 31 de janeiro de 1951, em cerimônia realizada no Palácio do Catete, Rio de Janeiro.

FONTE: Arquivo/O Cruzeiro/EM/D.A Press

Meses depois da eleição de Getúlio, a marchinha mais cantada no Carnaval de 1951 era Retrato do velho, de Haroldo Lobo e Marino Pinto, gravada em outubro de 1950 por Francisco Alves, para comemorar o resultado das eleições.

Retrato do velho

Bota o retrato do velho outra vez

Bota no mesmo lugar

Bota o retrato do velho outra vez,

Bota no mesmo lugar.

O sorriso de velhinho faz a gente trabalhar

Eu já botei o meu...

E tu, não vais botar?

Já enfeitei o meu...

E tu, vais enfeitar?

O sorriso do velhinho faz a gente se animar

LOBO, Haroldo; PINTO, Marino. Retrato do velho. Intérprete: Francisco Alves, 1950. In: Franklin Martins. Quem foi que inventou o Brasil? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. v. 1. p. 385.

Com a volta de Getúlio Vargas, o governo passou a seguir a corrente nacionalista, com o Estado atuando de maneira intervencionista e paternalista.

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LEGENDA: Em 1955, foi extraído o primeiro barril de petróleo na Bahia. A criação da Petrobras e a adoção de uma política de exploração de petróleo foi o resultado de uma ampla campanha popular, cujo mote era O petróleo é nosso!

FONTE: Arquivo/Agência Estado

As importações foram restringidas e os investimentos estrangeiros foram limitados, dificultando as remessas de lucros de empresas transnacionais para seus países de origem. Para incentivar a indústria nacional, em 1952, foi criado o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e, no ano seguinte, a Petrobras, empresa estatal com o monopólio da exploração e refino do petróleo no Brasil. Foi proposta também a criação da Eletrobrás, uma empresa para controlar a geração e a distribuição de energia elétrica.

Vargas nomeou João Goulart (1919-1976) para ministro do Trabalho, em 1953, para enfrentar as reivindicações e a onda de greves. Sob a orientação do presidente, o novo ministro propôs, em janeiro de 1954, dobrar o valor do salário mínimo, que recuperou seu valor em relação à crescente inflação. Em fevereiro, 42 coronéis e 39 tenentes-coronéis emitiram um manifesto - o Manifesto dos Coronéis - criticando o governo, o aumento do salário mínimo e as desordens que corriam pelo país. Entre eles estava o coronel Golbery do Couto e Silva e vários outros militares que, mais tarde, foram protagonistas da ditadura iniciada em 1964.

Diante do manifesto, Getúlio demitiu o ministro da Guerra, o general Espírito Santo Cardoso, e acordou com Goulart a sua demissão, acalmando os ânimos. Contudo, no feriado de 1º de maio de 1954, Vargas anunciou o aumento de 100% do salário mínimo, conquistando ainda mais apoio dos trabalhadores.

A política populista de Vargas atraiu a oposição de liberais, como os membros da UDN (União Democrática Nacional, partido político de orientação liberal), oficiais das Forças Armadas e empresários, especialmente os ligados aos interesses estrangeiros.

LEGENDA: A morte de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, causou comoção popular. Milhares de pessoas choraram diante de seu caixão, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, antes de o corpo do presidente seguir para São Borja, no Rio Grande do Sul, onde foi enterrado.

FONTE: Keffel Filho/O Cruzeiro/EM/D.A Press Brasil

Em 5 de agosto de 1954, o jornalista Carlos Lacerda (1914-1977), um dos principais oponentes de Vargas, dono do jornal Tribuna da Imprensa, sofreu um atentado no qual morreu seu segurança, o major da Aeronáutica

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Rubens Vaz (1922-1954). O episódio ficou conhecido como o atentado da rua Toneleros. As investigações apontaram a participação de Gregório Fortunato (1900-1962), chefe da guarda pessoal de Getúlio. Isso acirrou os ânimos dos oposicionistas, desdobrando-se numa grande campanha pela renúncia de Vargas. A campanha contou com os meios de comunicação, que alimentavam e impulsionavam o aprofundamento da crise.

Pressionado, Vargas suicidou-se em 24 de agosto de 1954. A notícia da morte e a divulgação de sua carta-testamento estimularam manifestações populares por todo o país. Jornais de oposição foram invadidos e depredados, assim como os diretórios da UDN e a embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro. Leia a seguir alguns trechos da carta-testamento de Vargas:

Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.

Não me acusam, me insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras; mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente [...].

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma agressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco [...].

Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.

Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram o meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.

Citado em DEL PRIORE, Mary et al. Documentos de história do Brasil: de Cabral aos anos 90. São Paulo: Scipione, 1997. p. 98-99.

Com o suicídio de Getúlio, o vice-presidente Café Filho (1899-1970) assumiu o poder.

Inconformados com o resultado das eleições, a UDN de Lacerda e setores militares tramavam um golpe, com apoio discreto de Café Filho e outros ministros, mas esbarraram no legalista ministro da Guerra, o general Henrique Teixeira Lott (1894-1984). A saída de Café Filho da presidência por problema de saúde ocasionou a transferência do cargo ao presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz (1894-1961), aliado da UDN. Este, mais favorável aos golpistas, tentou se livrar do legalista Lott, que reagiu e o depôs. O cargo foi entregue então ao presidente do Senado, Nereu Ramos (1888-1958), que governou como presidente da República até a posse de Juscelino Kubitschek, em janeiro de 1956.

Nas eleições de outubro de 1955, Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976), ex-governador de Minas Gerais, teve uma vitória apertada, de 36%, contra 30% dos votos dados a Juarez Távora, candidato da UDN. JK, como era popularmente conhecido, foi o candidato da coligação PSD-PTB. Como na época os eleitores votavam separadamente para presidente e para vice-presidente, João Goulart, o Jango, ex-ministro do Trabalho de Vargas, venceu a eleição para Vice-Presidência, com mais votos (3 591 409) do que o próprio JK (3 077 411).



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nacional. Assim, a repressão tornou-se o principal braço de sustentação do regime. Muitos opositores foram presos, exilados ou mortos. A tortura era amplamente utilizada como uma política de Estado.

O acesso e o domínio das informações eram considerados fundamentais no controle e combate aos opositores. Para isso, o regime militar contou com diversos órgãos de informação e repressão, que vigiavam a vida pública e privada dos brasileiros. Entre eles estavam o Centro de Informação do Exército (Ciex), o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o Serviço Nacional de Informações (SNI), subordinado diretamente à Presidência da República, o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e os Destacamentos de Operações de Informações (DOI).

Um dos órgãos mais violentos de repressão foi a Operação Bandeirante (Oban), financiada por empresários paulistas e executivos de multinacionais como Ford, Volkswagen, Ultragraz e Copersucar. A Oban coletava informações, realizava interrogatórios e operações de combate. O órgão era comandado pelo delegado da polícia civil paulista Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979), até então ligado aos "esquadrões da morte", grupos ilegais que assassinavam criminosos comuns.

A ditadura militar teve um eficiente serviço de propaganda, voltado para despertar o patriotismo na população, com slogans como "Este é um país que vai pra frente"; "Ninguém segura este país"; "Brasil, potência do ano 2000"; "Brasil, ame-o ou deixe-o". A crescente influência da televisão, o mais importante meio de comunicação do país, foi fundamental para a eficácia dessa campanha.

Para evitar a divulgação de notícias contrárias ao regime militar ditatorial, houve uma forte censura sobre a imprensa, as músicas, o teatro, etc. A presença de censores, funcionários do governo encarregados de controlar o que seria publicado, era frequente nas redações de jornais e revistas. Periódicos paulistanos, como o Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo, chegaram a estampar receitas de bolo e poemas em suas primeiras páginas para substituir as notícias proibidas. Era uma forma de protesto.

LEGENDA: Página do Jornal da Tarde que, no espaço reservado para a matéria que foi censurada, publicou receitas de doces na edição de 10 de maio de 1973.

FONTE: Arquivo/Agência Estado

O governo Castelo Branco (1964-1967)

Castelo Branco autorizou inúmeras prisões, interveio em sindicatos e organizações populares e cassou direitos políticos de opositores. Também fechou o Congresso Nacional e criou o Serviço Nacional de Informações (SNI). Decretou o Ato Institucional nº 2 (AI-2), que estabeleceu eleições indiretas para a Presidência da República e extinguiu os partidos políticos existentes, que foram reunidos em duas novas legendas: a Arena (Aliança Renovadora Nacional), aliada ao governo, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), supostamente de oposição.

Decretou também o AI-3, que determinou a eleição indireta dos governadores dos Estados, e o AI-4, que orientou a elaboração da nova Constituição, outorgada em janeiro de 1967. A Carta incorporava os atos institucionais e atribuía hegemonia política ao Executivo. Em 1967, a Lei de Imprensa instaurou a censura aos veículos de comunicação no país.

Na área econômica, o Brasil alinhou-se completamente com os Estados Unidos e criou facilidades para a entrada do capital estrangeiro. Um exemplo desse alinhamento foi o envio de tropas brasileiras à República Dominicana, juntando-se à intervenção militar estadunidense.

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O governo Costa e Silva (1967-1969)

Para a sucessão de Castelo Branco, o Alto Comando Militar indicou o ministro da Guerra, marechal Artur da Costa e Silva (1899-1969). Com a economia em crescimento e a manutenção do congelamento dos salários dos trabalhadores, surgiram greves, como a de Contagem (MG) e a de Osasco (SP). Esta foi reprimida brutalmente, com cerco policial, seguido da atuação dos soldados com metralhadoras e blindados. Ainda no início de seu governo, os protestos de rua contra o regime ditatorial se intensificaram. Políticos cassados pela ditadura, estudantes e trabalhadores de diversas categorias aliaram-se. A Frente Ampla, por exemplo, nasceu de uma aliança entre Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, que buscavam reunir a oposição contra a ditadura. Costa e Silva decretou sua ilegalidade e proibiu suas atividades.

Em 1968, foram constantes as manifestações estudantis exigindo a redemocratização do Brasil. O governo respondia aos protestos com repressão policial. Em março de 1968, o estudante Edson Luís de Lima e Souto foi assassinado durante a invasão militar de um restaurante universitário. Cerca de 50 mil pessoas acompanharam o trajeto até o cemitério, transformando o enterro em um ato político. Em outubro, foram presos centenas de estudantes e as lideranças do movimento universitário que participavam do XXX Congresso da UNE em Ibiúna, SP.

Nesse quadro, o regime acentuou o processo de fechamento político com a edição, em 13 de dezembro de 1968, do Ato Institucional nº 5 (AI-5), pelo qual, entre outras medidas de exceção, o presidente poderia decretar o recesso do Congresso Nacional. Foi a mais implacável de todas as leis da ditadura: suspendeu a concessão de habeas corpus e todas e quaisquer garantias constitucionais, dando ao presidente militar o controle absoluto sobre o destino da nação. No mesmo dia, foi decretado o fechamento do Congresso por tempo indeterminado.

Com a instauração do AI-5, houve o período de repressão mais intensa no país. Com os canais democráticos fechados, uma parcela da oposição partiu para o enfrentamento armado, com assaltos a bancos, sequestros e atentados. Nessas ações, exigia-se a libertação de presos políticos e procurava-se arrecadar fundos para o movimento. O esforço pouco adiantou. Alguns anos depois, os grupos de luta armada estavam derrotados, com muitos militantes mortos ou exilados. Quase todos os presos foram torturados.

Em agosto de 1969, o presidente Costa e Silva sofreu um derrame e ficou impossibilitado de exercer suas funções. O vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, foi proibido pelos ministros militares de assumir a Presidência, que foi ocupada por uma junta militar. A junta permaneceu no poder até outubro do mesmo ano, quando eleições indiretas foram convocadas para escolher o novo presidente. O nome do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), apresentado pelos chefes militares, foi aprovado pelo Congresso, reaberto para essa finalidade.

LEGENDA: Durante protestos realizados em 1º de maio de 1968, no centro da capital paulista, manifestantes carregam cartazes em que pedem liberdade.

FONTE: Arquivo/Agência Estado

201

O governo Médici (1969-1974)

Durante o governo Médici, houve um elevado crescimento da economia, do denominado "milagre econômico". Antônio Delfim Netto, então ministro da Fazenda, afirmava que era preciso "fazer crescer o bolo para depois dividi-lo". Era a justificativa para estabelecer políticas de favorecimento e concentração da renda. O desenvolvimento econômico e a propaganda governamental reforçaram o apoio da classe média ao governo, setor beneficiado pela política econômica.

No entanto, foi também um período caracterizado pela repressão e pela tortura, com forte censura aos meios de comunicação. A repressão era justificada pelo crescimento da luta armada contra o regime.

Entre as realizações do governo Médici, destacam-se a construção da rodovia Transamazônica, a conclusão de várias hidrelétricas e a criação da Telecomunicações Brasileiras (Telebrás) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em seu governo também foi aprovada uma emenda constitucional que ampliava os poderes do presidente, cujo mandato se estendeu de quatro para cinco anos.

FONTE: Roberto Stuckert/Folhapress

LEGENDA DAS IMAGENS: Em Brasília, durante manifestação pela anistia, em 1979, o senador Teotônio Vilela discursa em meio a faixas de protesto a respeito da Guerrilha do Araguaia, em que dezenas de guerrilheiros desapareceram. A verdade sobre o paradeiro dos combatentes começou a ser revelada a partir dos anos 1980.

FONTE: Arquivo CB/D.A Press

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INFOGRÁFICO

Passeatas contra a ditadura

Pouco restou aos opositores do regime senão sair às ruas e se manifestar publicamente. A Passeata dos Cem Mil, em 1968, no Rio de Janeiro, foi a maior dessas manifestações, que acabavam por transformar as ruas em palco de enfrentamento com forças policiais. Somente na década de 1980, com o movimento pelas Diretas Já, ocorreriam passeatas maiores que as da época.

LEGENDA: Cortejo composto de cerca de 50 mil pessoas em março de 1968, após o velório do estudante Edson Luís, morto em confronto com a polícia.

FONTE: Arquivo/Agência Estado

Entre os equipamentos-padrão utilizados pelas tropas de choque, encontravam-se capacetes e escudos para defesa e cacetetes para ataque. Disparadores de gás lacrimogêneo também eram empregados em larga escala. Sempre ao alcance das mãos estavam as armas de fogo, até mesmo aquelas capazes de disparar balas de borracha (que feriam sem matar).

LEGENDA: Cavalaria do Exército ocupa as ruas de São Paulo em 1968.

FONTE: Arquivo/Agência Estado

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As polícias militares estaduais mantinham as tropas de choque e a cavalaria encarregadas de lidar com manifestações de massas. Essas tropas agiam com violência, visando dissolver as manifestações e deter seus participantes mais exaltados. Progressivamente, a tecnologia das tropas de choque foi se sofisticando, com o emprego de carros blindados apelidados de "brucutus". Equipados com mangueiras de água de alta pressão, eram muito eficientes para dispersão de multidões.

LEGENDA: Os carros blindados chamados de "brucutus" em São Paulo, em julho de 1968.

FONTE: Estado Kioshi Araki/Agência

Nas passeatas, faixas e cartazes traziam palavras de ordem contra a ditadura ("Abaixo a ditadura", "Pelo fim da censura", "Contra o imperialismo"). Em caso de confronto, os manifestantes arremessavam o que estivesse ao alcance das mãos: paus, pedras, tijolos. Em certos casos, eram empregados "coquetéis molotov" (garrafas de vidro contendo líquido inflamável - geralmente gasolina e óleo automotivo - e pavio de pano).

LEGENDA: A pichação ajudava a deixar marcas na paisagem urbana, lembrando a mobilização contra o regime.

FONTE: Jorge Butsuem/Arquivo da editora/EA

LEGENDA: Manifestação estudantil na rua 25 de março, em São Paulo, 1977.

FONTE: Acervo Última Hora/Folhapress

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O governo Geisel (1974-1979)

O presidente eleito indiretamente para substituir Médici foi o general Ernesto Geisel (1907-1996). Em seu governo a economia nacional começou a mostrar sinais de dificuldades, associadas ao crescimento obtido à custa do capital estrangeiro. Entre essas dificuldades estava a desigualdade social com extrema concentração de renda e o aumento da dívida externa, que obrigou o pagamento de juros altíssimos, inviabilizando o crescimento do país. Assim, enquanto o país conquistava a décima posição na economia mundial, a qualidade de vida de boa parte da população brasileira continuava em níveis baixíssimos.

Parte desse quadro foi agravada pela crise internacional provocada pela alta dos preços do petróleo nos países produtores, ocorrida em 1972. Essa crise provocou sérios problemas no Brasil, que importava, aproximadamente, 80% do petróleo que consumia. A situação continuou se agravando em 1974, primeiro ano do governo Geisel. É importante destacar que 1974 foi, também, o ano em que o conservadorismo sofreu derrotas, como a renúncia do presidente Nixon, nos EUA (provocada pelo caso Watergate), e a Revolução dos Cravos, em Portugal, que depôs a ditadura no país.

Para contornar a situação econômica, o governo Geisel estimulou o desenvolvimento do Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), cujo objetivo era promover a utilização de uma fonte de energia alternativa ao petróleo. Foi também durante seu governo que teve início a construção de duas das maiores usinas hidrelétricas do mundo: Itaipu e Tucuruí.

Os impasses criados pelo modelo econômico dos militares deu margem para o crescimento da oposição e para o início de um processo de abertura política, lenta e gradual, que levaria à redemocratização do país.

Para iniciar a abertura política, o presidente precisou afastar os militares que se opunham a isso, considerados de linha dura e em posições de comando. A reação da sociedade às mortes por tortura do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, e do operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976, foi decisiva para o processo de abertura política.

Em 1978, uma grande greve de metalúrgicos, liderada pelo líder sindical Luiz Inácio da Silva, o Lula, teve início na região do ABC, em São Paulo. Entre as reivindicações estavam melhores salários e a abertura política. Apesar da forte repressão, outras categorias profissionais aderiram ao movimento, demonstrando o desgaste do poder autoritário do governo. Antes do término de seu mandato, Geisel revogou o AI-5 e determinou a extinção da censura no Brasil.

Glossário:

ABC: área com grande concentração de indústrias na região metropolitana de São Paulo, formada pelas cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul.

Fim do glossário.

LEGENDA: Em novembro de 2015, após uma grande cheia, Itaipu teve de abrir todas as comportas das três calhas de escoamento de água. Com o reservatório cheio, a usina precisa escoar o excedente de água não usado para a produção de energia elétrica. Geralmente só uma ou duas calhas são abertas para escoar o excedente de água.

FONTE: Christian Rizzi/Fotoarena

LEGENDA: Metalúrgicos da Volkswagen do Brasil durante greve da categoria em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, em maio de 1978.

FONTE: Arquivo/Agência Estado

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O governo Figueiredo (1979-1985)

O general João Batista Figueiredo (1918-1999) foi escolhido para a sucessão de Geisel. A dívida externa brasileira ultrapassava os 100 bilhões de dólares e a inflação era mais de 250% ao ano. Greves e agitações políticas apareciam por toda a parte e a imprensa trazia à tona sucessivos escândalos financeiros envolvendo membros do governo.

Dando sequência ao processo de abertura política, o governo Figueiredo aprovou, em 1979, a Lei de Anistia. A partir de então, muitos presos políticos foram libertados e vários brasileiros exilados começaram a retornar ao país.

Outra medida de seu governo foi a reforma partidária, que extinguiu a Arena e o MDB e autorizou a formação de novos partidos políticos. A maioria dos integrantes da Arena passou a compor o Partido Democrático Social (PDS). O MDB deu lugar ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e diversas legendas surgiram, como o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), entre outros. O fim do bipartidarismo representou a ampliação das liberdades democráticas.

Foram ainda autorizadas eleições diretas para governadores, as primeiras desde 1967. Nas eleições realizadas em 1982, o PDS venceu em 12 estados, com um total de 18 milhões de votos, e a oposição venceu em dez estados, com 25 milhões de votos. O avanço da oposição também se confirmou no Legislativo: o governo deixou de ter a maioria na Câmara dos Deputados. Entretanto, ainda estava previsto que, em 1985, fosse realizada eleição indireta para o cargo de presidente da República.

Vários setores sociais e militares ligados à ditadura reagiram ao processo de abertura política. Essa reação foi expressa por meio da violência, com ataques a bancas de jornais que vendiam publicações de oposição e atentados a entidades civis, entre elas a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O mais sério desses atentados aconteceu em 30 de abril de 1981, quando militares da linha dura visavam explodir bombas no Riocentro, um espaço de convenções da capital carioca, onde se realizava um grande festival de música em homenagem ao dia do trabalhador. Uma das bombas explodiu no pátio da miniestação elétrica, sem interromper o evento. A outra explodiu acidentalmente dentro de um carro, matando o sargento Guilherme Pereira do Rosário (1946-1981) e ferindo gravemente Wilson Dias Machado, um oficial do Exército.

O atentado do Riocentro marcou o fim dos embates dos militares da linha dura contra o processo de abertura em curso. No final de 1983, os partidos de oposição começaram uma campanha pela eleição direta para presidente da República. O movimento, conhecido como Diretas Já, mobilizou o país em manifestações que chegaram a envolver centenas de milhares de pessoas.

LEGENDA: Em janeiro de 1984, o comício pelas Diretas Já realizado na praça da Sé, em São Paulo, reuniu cerca de 300 mil pessoas.

FONTE: Mauricio Simonetti/Pulsar Imagens

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LEGENDA: Durante a votação da Emenda Dante de Oliveira, nome que recebeu a emenda pelas eleições diretas, populares se reúnem na Cinelândia, no Rio de Janeiro, para acompanhar as votações. Fotografia de 25 de abril de 1984.

FONTE: Alcyr Cavalcanti/Agência O Globo

O objetivo do movimento era pressionar o Congresso a aprovar uma emenda constitucional que reinstituía as eleições diretas para presidente. A emenda, porém, foi derrotada por apenas 22 votos, numa sessão em que vários parlamentares não compareceram.

A escolha do novo presidente seria realizada, mais uma vez, indiretamente. Formou-se então uma aliança de políticos moderados favoráveis à abertura. Dois civis concorreram à sucessão presidencial: Tancredo Neves, da Aliança Democrática, que reunia tanto opositores como colaboradores da ditadura, e Paulo Maluf, do PDS (antiga Arena).

Tancredo Neves venceu, mas não tomou posse. Às vésperas da cerimônia, o presidente eleito foi hospitalizado e faleceu em 21 de abril de 1985. A Presidência, então, foi assumida por seu vice, José Sarney, um dos fiéis aliados do regime militar.

O final do governo Figueiredo e a posse de José Sarney marcaram o fim do regime militar. Iniciava-se uma nova fase na vida política brasileira, denominada Nova República.

Leituras

Boxe complementar:

No texto a seguir, o historiador brasileiro Daniel Aarão Reis discute o fim da ditadura e as diferentes teses sobre quando ele teria ocorrido.

Quando terminou a ditadura?

Na historiografia corrente, há um senso comum: a ditadura no Brasil acabou em 1985, com a posse do primeiro presidente civil, José Sarney. A ideia subjacente é que a ditadura foi apenas militar, o que os fatos, decididamente, não evidenciam. Desde a sua gênese, passando pelos vários governos, pela análise dos seus promotores e beneficiários, a ditadura nunca foi obra apenas das casernas. Assim, o referido senso comum é muito mais obra de memória do que resultado de pesquisa histórica.

Há outra tese, também sujeita a controvérsias: a ditadura teria permanecido até a aprovação da nova Constituição, em 1988. De fato, só então revogou-se o chamado entulho autoritário, ou seja, a legislação ditatorial que ainda regia inúmeros aspectos da vida social e política do país. Mas seria razoável afirmar que a sociedade brasileira vivia sob a ditadura até 1988? Há aí um claro exagero.

Se aceitarmos a ideia de que a ditadura é um estado de exceção, ou seja, a de que ela existe na medida em que toda e qualquer legislação pode ser editada, revogada ou ignorada pelo livre-arbítrio - exercício da vontade dos governantes, a ditadura existiu no Brasil até o início de 1979, quando houve a revogação dos atos institucionais, através dos quais se fazia e se refazia a ordem jurídica.

Entretanto, a particularidade do caso brasileiro é que não se estabeleceu desde então um regime democrático. Já não havia ditadura. Mas não existia ainda democracia. E não haveria até 1988. Por esta razão, parece-me adequado chamar o período de 1979 a 1988 de -transição democrática".

REIS, Daniel Aarão. A vida política. In: Modernização, ditadura e democracia. 1964-2010. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. p. 103. (Coleção História do Brasil Nação - v. 5).

Fim do complemento.

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Atividades

Retome

1. Algumas correntes de pensamento influenciavam os debates políticos no Brasil pós-Segunda Guerra. Explique que correntes eram essas e qual delas prevalecia no cenário político brasileiro de então.

2. O texto da seção Leituras (p. 188) termina com a seguinte frase: "O governo Dutra estava atento a rezas e às beatas, mas era impermeável às demandas sociais-. Explique o sentido dessa frase, dando exemplos de medidas do governo Eurico Gaspar Dutra e da Constituição de 1946 que possam justificá-la.

3. Com base na marchinha de carnaval Retrato do velho (p. 189), responda:

a) Os versos "Bota o retrato de velho outra vez / Bota no mesmo lugar- se referem a qual episódio da política brasileira?

b) Sintetize as realizações do governo Vargas, entre 1950 e 1954, explicando por que é possível dizer que esse governo seguia a corrente nacionalista.

4. Como vimos, o governo de Juscelino Kubitschek foi marcado pelo Plano de Metas. Que características desse plano faziam com que as medidas desenvolvimentistas de seu governo fossem dirigidas, de forma geral, basicamente ao mundo urbano e modernizado?

5. Por que diversos setores da sociedade eram contrários às reformas de base presentes no governo de João Goulart?

6. O golpe militar de 1964 deu início a um período de ditadura, no Brasil, que durou até 1985.

a) Nesse período, o que ocorreu com as liberdades democráticas dos cidadãos?

b) Qual foi a relação dos governos militares, no Brasil, com o capital estrangeiro? Explique e dê exemplos.

Pratique

7. Neste capítulo, vimos que a bossa nova foi um estilo musical surgido nos tempos do governo de Juscelino Kubitschek. Para ampliar seus conhecimentos sobre o assunto, leia o trecho da reportagem a seguir.

Retomando a discussão sobre a maneira como os músicos da bossa nova concebem a modernidade e procuram ajustar a canção popular aos novos tempos, poderíamos dizer que o espírito da bossa nova é muito parecido com o dos projetos urbanísticos e arquitetônicos de Lúcio Costa (1902-1998) e Oscar Niemeyer relativos à criação da nova capital federal, no final dos anos 50. De um lado, pelo fato de todos conceberem a modernidade como o tempo do despojamento, que exige uma estética do "menos", fugindo do modelo do excesso. De outro, pelo fato de todos também se mostrarem afinados com o projeto desenvolvimentista do governo (1956-1961) do presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), que deu forma a esse projeto com a construção de Brasília.

[...]

Outra proposta estética a ser mencionada é a poesia concreta que, criada no final dos anos 50 pelos irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos (1929-2003) e por Décio Pignatari, converge com o espírito despojado e moderno da bossa nova e da arquitetura de Niemeyer. Os poetas concretos pesquisavam a forma poética adequada ao mundo contemporâneo, encontrando-a em uma poesia mais visual e menos discursiva, já que a realidade do momento, segundo eles, exigiria objetividade e evitaria as soluções prolixas.

NAVES, Santuza Cambraia. Os 50 anos da bossa nova: uma estética despojada. Ciência Hoje, v. 41. n. 246, mar. 2008. p. 26. Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/revista-ch-2008/246/bossanova246.pdf. Acesso em: 21 abr. 2016.

a) A que "novos tempos- a autora do texto se refere, logo na primeira frase? Explique.

b) Segundo o texto, o que a bossa nova e a arquitetura de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer (na construção de Brasília) possuíam em comum?

c) Com base em pesquisas em livros e na internet, ou considerando seus conhecimentos prévios, escreva um texto sobre as características do momento artístico em que manifestações culturais como a bossa nova, a poesia concreta e os edifícios públicos da cidade de Brasília estavam inseridas. No texto, explique de que forma elas fugiam do "modelo do excesso" citado por Santuza Cambraia Naves. Para isso, utilize trechos de canções da bossa nova e trechos de um poema concreto como exemplos.



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2. De JK a Jango

O governo de Juscelino Kubitschek foi marcado pelo desenvolvimentismo. Apoiando-se no Plano de Metas, divulgado sob o slogan "50 anos em 5", Juscelino prometia desenvolver o país em tempo recorde. O programa priorizava investimentos em setores de energia, indústria, educação, transporte e alimentos. Para alcançar as metas, o governo favoreceu a entrada de capitais estrangeiros e a presença de empresas transnacionais no país. Esse modelo abandonava o nacionalismo do período Vargas e aderia ao capitalismo internacional.

Glossário:

slogan: expressão concisa, fácil de lembrar, utilizada em campanhas políticas, de publicidade, de propaganda, para lançar um produto, marca, etc.

Fim do glossário.

Como resultado dessa política, fábricas de caminhões, tratores, automóveis, produtos farmacêuticos e cigarros foram instaladas no Brasil. Destacam-se também a construção das usinas hidrelétricas de Furnas e Três Marias; e a pavimentação de milhares de quilômetros de estradas.

Grandes mudanças ocorriam em diversos setores. No dia a dia de muitas cidades e regiões

a partir de 1958, os brasileiros viram se materializar nas ruas e estradas duas novidades: o DKW-Vemag, que apesar de barulhento era o primeiro automóvel a sair de fábrica com 50% de peças nacionais, e a Rural Willys, o primeiro carro também nacional com tração nas quatro rodas.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Brasil : uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 416.

Na música, foi a época em que surgiu a bossa nova, um novo estilo de tocar e cantar samba com influência do jazz, juntando-se aos tangos, boleros, valsas e sambas de então. No futebol, 1958 foi o ano da conquista do primeiro campeonato mundial. Passaram a fazer parte dos hábitos dos brasileiros o consumo de produtos industriais, como eletrodomésticos (máquina de lavar roupas, rádio de pilha, etc.) e peças de vestuário com tecidos sintéticos (náilon, ban-lon, acrílico, napa, etc.), entre outros.

No entanto, esse desenvolvimentismo era basicamente dirigido a partes do mundo urbano moderno. O enorme fosso social, pleno de desigualdades e carências (saneamento básico, escolas, saúde), e um mundo rural que ainda reunia a maioria da população brasileira sem a proteção de uma legislação trabalhista continuavam a existir.

A maior obra do governo JK, entretanto, foi a construção de Brasília, a nova capital federal, planejada pelo urbanista Lúcio Costa e pelo arquiteto Oscar Niemeyer. A cidade foi inaugurada em 21 de abril de 1960. Localizada no Planalto Central, estava bem distante das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, os principais centros de pressão popular da época.

A abertura da economia brasileira ao capital estrangeiro e os vários empréstimos contraídos junto às instituições estrangeiras deixaram o país numa séria crise financeira, com a inflação chegando, em 1960, ao índice de 25% ao ano.

LEGENDA: Brasília foi construída nos anos 1950. Esta foto, do final da década, mostra a construção da esplanada dos ministérios e dos prédios do Congresso Nacional, ao fundo.

FONTE: Arquivo Público do Distrito Federal/Agência France-Presse

LEGENDA: Juscelino, ao lado de Jango, acena para os trabalhadores durante a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960.

FONTE: Arquivo Público do Distrito Federal/Agência France-Presse

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LEGENDA: Com vassouras nas mãos, mulheres manifestam-se em campanha pela eleição de Jânio Quadros, em São Paulo, em 1960. Jânio Quadros adotou a vassoura como símbolo de campanha, alegando que com ela varreria a corrupção.

FONTE: Arquivo/Agência Estado

Nas eleições de 1960, a coligação PSD-PTB indicou o marechal Henrique Teixeira Lott para concorrer à Presidência e João Goulart à Vice-Presidência. Na oposição, a UDN e outros partidos menores apoiaram a candidatura do ex-governador de São Paulo, Jânio Quadros (1917-1992). Seu candidato à Vice-Presidência era Mílton Campos, ex-governador de Minas Gerais. Jânio pregava uma limpeza na vida política nacional com o combate à corrupção. Para simbolizar a ideia, usava uma vassoura na campanha eleitoral.

Como votava-se separadamente para presidente e para vice-presidente, Jânio Quadros se tornou presidente com 5,6 milhões de votos. João Goulart foi eleito vice-presidente com 4,5 milhões de votos. Era formada a dupla "Jan-Jan".

O breve governo Jânio

Como presidente, Jânio Quadros primou pela ambiguidade. Na economia atuava de forma mais próxima aos conservadores liberais: cortou gastos e congelou salários em meio à contínua elevação dos preços dos produtos. Por outro lado, sua política externa aproximava-se da esquerda, ao reatar relações diplomáticas com países socialistas a fim de ampliar mercados.

Um episódio reforçou essa política de independência em relação ao bloco capitalista. Em 1961, o argentino Ernesto Che Guevara, então ministro da Economia em Cuba, foi condecorado por Jânio Quadros com a Ordem do Cruzeiro do Sul. Essa atitude provocou reações contrárias, inclusive do próprio partido do presidente.

Em agosto de 1961, após sete meses de governo, Jânio surpreendeu a todos ao renunciar ao cargo, numa manobra política fracassada. A renúncia fazia parte de um plano que contava com o temor de setores da sociedade diante da possibilidade de João Goulart assumir a Presidência para fortalecer seu poder. O vice, que se encontrava na China Popular, em missão de governo, era considerado comprometido com as causas trabalhistas - e até acusado de ser um comunista - por vários militares e políticos.

Ao que parece, a expectativa de Jânio era que a população se mobilizasse contra seu pedido de renúncia e o Congresso Nacional o rejeitasse, o que o levaria a exigir plenos poderes para continuar na Presidência. A renúncia, porém, foi aceita imediatamente e nenhum grupo movimentou-se para convencer Jânio Quadros a permanecer no poder. O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli (1910-1975), assumiu a Presidência da República até a posse de Jango.

LEGENDA: Após a renúncia, Jânio Quadros embarca para a Europa. Foto de agosto de 1961. Afonso Arinos, membro da UDN e ministro das Relações Exteriores, definia Jânio como a "UDN de porre". Como ator político tinha um marketing peculiar, tomando até mesmo atitudes bizarras, como a proibição do uso de biquínis nas praias e das brigas de galo. Na sua última atitude, como uma jogada, o desfecho resultou no contrário do que Jânio esperava. O Congresso foi rápido em aceitar seu pedido de renúncia e a população não se manifestou a seu favor.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

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João Goulart e a crise política

A renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961 amplificou as divergências entre as forças políticas. Alguns ministros militares e políticos da UDN, contrariando a Constituição, tentaram impedir a posse de João Goulart. O novo presidente era visto como um herdeiro de Getúlio Vargas e acusado de simpatizante da esquerda. Em defesa de Jango, Leonel Brizola (1922-2004), então governador do Rio Grande do Sul, lançou a Campanha da Legalidade, conquistando o apoio de boa parte da população brasileira.

A posse de Jango ocorreu somente após debates e negociações que levaram à alteração da Constituição. Com uma emenda, em 2 de setembro de 1961, foi implantado o parlamentarismo no país. Era o acordo para se evitar uma guerra civil: Jango assumiria a presidência, mas o governo de fato ficaria a cargo do primeiro-ministro, escolhido pelo Congresso Nacional. Definiu-se também que, após algum tempo, o parlamentarismo deveria ser ratificado ou não por um plebiscito.

Em janeiro de 1963, o plebiscito sobre o parlamentarismo mobilizou o país. O sistema político estava em vigência há pouco mais de um ano e era muito criticado e impopular. Com intensa campanha pelo seu fim, os brasileiros decidiram pela restauração do regime presidencialista.

Enquanto o presidencialismo era restabelecido, a situação econômica do país deteriorava-se. A inflação, que em 1962 atingira 52%, chegou aos 80% em 1963 e afetou gravemente o poder aquisitivo dos trabalhadores.

Para enfrentar a crise, o governo lançou o Plano Trienal, no final de 1962. Seu objetivo era conter a inflação e promover o desenvolvimento do país. No entanto, os efeitos do plano foram mínimos, principalmente quanto ao custo de vida. As pressões populares cresceram, levando Jango a defender amplas reformas nos setores agrário, administrativo, fiscal e bancário. Conhecidas como reformas de base, essas medidas foram vistas pelos seus opositores como uma ameaça à ordem liberal vigente.

Três dessas medidas ajudam a entender os interesses que estavam ameaçados. Contra a inflação, foi criada a Superintendência Nacional do Abastecimento (Sunab), ligada ao governo e encarregada de controlar os preços dos produtos, interferindo, portanto, nos lucros dos produtores e comerciantes.

Para oferecer melhores condições de vida a milhões de trabalhadores rurais e ampliar a oferta de alimentos, uma proposta de reforma agrária nos latifúndios improdutivos foi apresentada ao Congresso. Os latifundiários, porém, não concordavam com os mecanismos de cálculos para se chegar aos valores das indenizações a serem pagas pelas terras, alegando grandes perdas caso fossem efetivamente aplicados.

Outra questão polêmica foi a restrição da remessa de lucros das empresas estrangeiras para o exterior; a proposta teve oposição de grupos ligados ao capital internacional.

Diante de tantos embates, João Goulart aproximou-se de setores populares organizados por operários, camponeses, estudantes e militantes de esquerda, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), a Confederação dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG) e as Ligas Camponesas.

No lado oposto, contra Jango, os conservadores juntavam organizações sociais e políticas. Entre eles, destacava-se o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPÊS), que reunia diretores de empresas multinacionais, jornalistas, intelectuais, militares e a nata do empresariado nacional.

LEGENDA: Separação de urnas para contagem dos votos no plebiscito de 1963, que consultou a população brasileira sobre a permanência do parlamentarismo como sistema político.

FONTE: Arquivo/Agência Estado

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Leituras

Boxe complementar:

A seguir, leia o texto da cientista política Christiane Jalles de Paula sobre a atuação do IPÊS.

A atuação do IPÊS

Fundado oficialmente em 2 de fevereiro de 1962, no Rio de Janeiro, o IPÊS resultou da fusão de grupos de empresários organizados no Rio e em São Paulo e rapidamente ganhou a adesão das classes produtoras das outras unidades da federação.

O acirramento nos debates sobre as chamadas "reformas de base" - agrária, bancária, urbana, universitária e tributária, promovidas pelo governo Goulart - incitou nos membros do IPÊS a percepção de que o país marchava inexoravelmente para o comunismo e que cabia aos "homens bons" a interrupção desse processo.

Dessa forma, o instituto promoveu intensa campanha antigovernamental. Associando as propostas do governo ao comunismo, a entidade utilizou os mais diversos meios de comunicação na defesa da "democracia" e da livre iniciativa. Publicou artigos nos principais jornais do país; produziu uma série de 14 filmes de "doutrinação democrática", apresentados em todo o país; financiou cursos, seminários, conferências públicas; publicou e distribuiu inúmeros livros, folhetos e panfletos anticomunistas, dentre os quais UNE, instrumento de subversão, de Sônia Seganfreddo, dirigido aos estudantes universitários, então tidos como um dos pilares da infiltração comunista.

O IPÊS também atuou no financiamento de outras entidades contrárias ao governo Goulart, tais como os Círculos Operários carioca e paulista, a Confederação Brasileira de Trabalhadores Cristãos, a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde) do Rio, a União Cívica Feminina de São Paulo, o Instituto Universitário do Livro, e o Movimento Universitário de Desfavelamento. O IPÊS-RJ auxiliava igualmente a Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra.

Em maio de 1963, a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), acusado de financiar candidatos oposicionistas na campanha eleitoral de 1962 com recursos indevidos. O IPÊS foi arrolado na CPI, mas acabou sendo absolvido, em dezembro de 1963.

A participação do IPÊS na derrubada do governo Goulart, em 31 de março de 1964, pelos militares, foi preferencialmente resultado de um trabalho propagandístico. Todavia, isso não impediu que alguns de seus membros, individualmente, atuassem de maneira mais direta. O reconhecimento dos seus préstimos pelo regime militar ocorreu em 7 de novembro de 1966, quando foi declarado "órgão de utilidade pública" por decreto presidencial.

O IPÊS paulista foi completamente desativado em 1970, ao passo que o do Rio encerrou suas atividades em março de 1972.

Christiane Jalles de Paula. O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais - IPÊS. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/O_Instituto_de_Pesquisa_e_Estudos_Sociais. Acesso em: 13 abr. 2016.

Fim do complemento.

Entre outros opositores a João Goulart estavam o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) e a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp).

Num comício realizado em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, o presidente prometeu o aprofundamento das reformas para diversas entidades de trabalhadores e estudantes. Em resposta, os conservadores organizaram uma grande passeata em São Paulo, chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Os participantes da passeata declaravam estar se posicionando contra o que era visto como ameaça da transformação do país numa república comunista, representada pelo presidente, suas propostas e seu grupo de apoio. Setores da Igreja e do empresariado participaram da manifestação.

LEGENDA: João Goulart e sua esposa, Maria Teresa, no comício pelas reformas de base realizado na Central do Brasil, em 13 de março de 1964.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminiscências

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Para saber mais

Boxe complementar:

Anos rebeldes

A década de 1960 foi marcada por vários movimentos sociais, protestos e mobilizações em todo o mundo, tanto em países capitalistas como socialistas. Por isso, esse período é chamado de Anos Rebeldes. Por toda parte, diferentes grupos exprimiam seus projetos para a sociedade e seu inconformismo com a situação daquele momento. Manifestavam-se grupos pelos direitos de negros, de mulheres, de homossexuais, de estudantes, de minorias étnicas, entre muitos outros.

Como vimos, nos Estados Unidos, a luta contra o conflito no Vietnã ganhou força. No início, acreditava-se que ele teria curta duração. Mas a guerra arrastou-se por muitos anos e envolveu praticamente toda a sociedade estadunidense. Também absorveu boa parte do orçamento do governo e mobilizou centenas de milhares de jovens para o alistamento.

Lutar contra a invasão do Vietnã tornou-se a bandeira dos movimentos de contestação ao conservadorismo da sociedade estadunidense, não só nos Estados Unidos como em todo o mundo.

Ao mesmo tempo que se protestava contra a guerra, condenava-se também a repressão às tentativas de abertura democrática nos países socialistas, como a Primavera de Praga. Assim, apesar das intensas críticas ao capitalismo, os procedimentos do Estado soviético não eram aceitos sem contestação.

Além das práticas políticas, muitos desses movimentos criticavam, também, os comportamentos e valores morais, como o poder autoritário dos pais sobre os jovens; a desigualdade de direitos entre homens e mulheres; a subordinação feminina aos homens e aos valores machistas.

As mobilizações iam desde atuações políticas violentas até o pacifismo do movimento hippie (resumido no slogan "paz e amor"); das pichações à guerrilha e às lutas contra a discriminação racial dos negros ou pela emancipação feminina crescente aos protestos musicais.

Entre os jovens, difundia-se o uso da minissaia, dos cabelos compridos, das roupas coloridas, das pílulas anticoncepcionais. O discurso era de liberdade individual.

A música firmou-se como importante canal de protesto social. Os meios de comunicação, a indústria fonográfica e a organização de shows e festivais garantiam acesso de cantores e bandas vinculados a movimentos sociais e políticos a um público amplo. Explodia o rock, com uma nova forma de percepção do mundo, de expressão de sentimentos e comportamentos. Bandas como Beatles, Rolling Stones, The Doors e músicos como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Joan Baez e Bob Dylan traduziam o novo momento e a discordância da juventude.

Foi também a época dos movimentos negros nos Estados Unidos. Eles lutavam por garantia de direitos civis, reconhecimento da plena cidadania e fim do racismo, que em muitos estados era prática oficializada.

Paris, capital da França, transformou-se no centro da rebeldia dos estudantes e dos trabalhadores europeus contra o governo. Em maio de 1968, explodiu uma verdadeira revolução na cidade, com barricadas nas ruas e propostas para uma sociedade radicalmente livre, liderada por socialistas ou anarquistas.

LEGENDA: Confronto entre estudantes e membros da tropa de choque francesa em Paris, França. Foto de 6 de maio de 1968.

FONTE: Fondation Gilles Caron/Gamma-Rapho/Getty Images

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A década de 1960, em especial o ano de 1968, tornou-se ícone por tudo que representou para lutas e conquistas sociais. Muitos a veem como uma época que não terminou, pelo fato de as promessas de paz, amor e liberdade contra a opressão e a alienação ainda não terem se concretizado.

No Brasil não foi diferente: os Anos Rebeldes também foram os anos da queda da democracia e da instalação da ditadura, com manifestações de estudantes, sindicatos e artistas das mais diferentes áreas. Para ficar apenas no exemplo da música, foi a época em que se formou uma longa e rica lista de cantores e compositores que se manifestaram em atuações por toda a época da ditadura militar. Por meio da arte mantiveram vivos os anseios por tempos de liberdade e de superação das iniquidades sociais. Entre tantos, pois a lista é imensa, estavam:

Sérgio Ricardo, Zé Kéti, João do Vale, Nara Leão, Maria Bethânia, Edu Lobo, Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda, Billy Blanco, Jair Rodrigues, Elis Regina, Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Beto Guedes, Fernando Brant, Elton Medeiros, Silas de Oliveira, Raul Ellwanger, Taiguara, Paulinho da Viola, Vinicius de Moraes, Juca Chaves, Paulo César Pinheiro, Maurício Tapajós, o grupo Secos & Molhados, Benito de Paula, Eduardo Gudin, Gonzaguinha, Simone, Sirlan, Manduka, Raul Seixas, Ednardo, Belchior, João Bosco, Aldir Blanc, Francis Hime e Luiz Ayrão.

Fim do complemento.

3. O golpe civil-militar e a montagem da ditadura

Desde o início de 1964, as propostas de reformas de base intensificaram as manifestações de apoio e de repulsa ao governo de João Goulart. Disseminou-se o medo das reformas.

Caso implementadas, haveria um outro modelo de desenvolvimento. Desapareceria o latifúndio e o domínio dos capitais estrangeiros. Reformas revolucionárias.

Muita gente tinha medo. Haveria guerra civil? O país viraria uma imensa Cuba, dominada pelos comunistas? O catolicismo seria perseguido? As Forças Armadas sobreviveriam? As hierarquias tradicionais nos campos do saber e do poder seriam respeitadas?

As direitas trabalharam com eficácia estes medos. Não os inventaram, mas souberam explorá-los, exagerando-os. O medo do processo convulsivo acionou os mais destemidos - a minoria de golpistas que passou à ação - e paralisou as grandes maiorias, mesmo as que tinham alguma simpatia ou não eram hostis a Jango. Em grande medida, este fato explica a vitória, sem luta, dos golpistas.

REIS, Daniel Aarão (Coord.). A vida política. In: Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. p. 85-86. (Coleção História do Brasil Nação - v. 5).

Em 31 de março, o alto escalão de oficiais do Exército, com apoio de vários governadores, como Magalhães Pinto (1909-1996), de Minas Gerais, Carlos Lacerda (1914-1977), da Guanabara, e Adhemar de Barros (1901-1969), de São Paulo, rebelou-se contra o governo de Jango. O primeiro passo coube ao general Olímpio Morão Filho, que mobilizou o exército de Belo Horizonte, o mesmo que, 27 anos antes, ainda capitão e integralista, havia forjado o famoso Plano Cohen.

Segundo o pesquisador e historiador Carlos Fico, em sua obra O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo - O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira, os revoltosos contavam com a Operação Brother Sam, que incluía a possível intervenção planejada pelo embaixador estadunidense Lincoln Gordon, associado às elites econômicas, políticas e militares. A operação contava com uma força-tarefa naval estadunidense (porta-aviões, porta-helicópteros, contratorpedeiros) que atuaria na costa brasileira e incluía a entrega de armas, munições e combustível (quatro navios-petroleiros). O plano entraria em ação em março.

Entretanto, o golpe teve um desfecho rápido e sem lutas. Culminou com a deposição do presidente João Goulart, que deixou Brasília, dirigiu-se para o Rio Grande do Sul e em seguida para o Uruguai, onde pediu asilo. Já no dia 1º de abril, o embaixador Lincoln Gordon foi avisado de que não era mais necessário o apoio

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logístico estadunidense. Era o fim de uma experiência republicana reformista e o início da ditadura comandada pelos militares.

Após a deposição do presidente João Goulart, uma junta militar, formada pelo general Artur da Costa e Silva (1899-1969), pelo brigadeiro Francisco Correia de Melo (1903-1971) e pelo almirante Augusto Rademaker (1905-1985) foi instalada no poder. A primeira medida tomada por essa junta foi a decretação do Ato Institucional nº 1 (AI-1) . O decreto garantia amplos poderes ao Executivo, como cassar mandatos, suspender direitos políticos, aposentar funcionários civis e militares e decretar estado de sítio sem autorização do Congresso. Milhares de brasileiros foram atingidos pelos expurgos, civis e militares. Em seguida, o Alto Comando das Forças Armadas indicou para a Presidência o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967).

Com o golpe de 1964, teve início uma série de governos militares que permaneceu no poder até 1985. Nesse período, as liberdades democráticas foram anuladas e os poderes Legislativo e Judiciário foram submetidos. Também foi uma época em que estados e municípios perderam sua autonomia, passando a ser simples executores das decisões federais. Já no primeiro ano do golpe,

10 mil réus e 40 mil testemunhas foram submetidos a inquéritos que revelavam completo desprezo pelas regras da justiça.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 457.

Na área econômica, os governos militares promoveram a abertura do mercado ao capital e às empresas estrangeiras, ampliando a internacionalização da economia. Essa ação foi acompanhada de certa estabilização financeira e crescimento acentuado, sobretudo entre 1969 e 1973. Em virtude dessas altas taxas de crescimento, esse período ficou conhecido como milagre econômico brasileiro.

Para realizar grandes obras públicas, como a Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, a usina hidrelétrica de Itaipu e as usinas nucleares de Angra dos Reis, os militares contaram com a entrada maciça de empréstimos externos. Grande volume de capital estrangeiro também chegou sob a forma de investimentos, que se destinaram aos setores dinâmicos da economia: às empresas privadas brasileiras, basicamente produtoras de bens de consumo não duráveis (como a têxtil e a indústria de alimentos); às empresas multinacionais, voltadas principalmente para a produção de bens de consumo duráveis (como a indústria automobilística, de máquinas e de eletrodomésticos); e às empresas estatais (telecomunicações, energia, produção bélica, etc.). Para apoiar a produção, o governou buscou, também, ampliar tanto o mercado consumidor externo, por meio da exportação, como o mercado consumidor interno, principalmente os profissionais liberais e executivos das empresas em expansão. Para garantir o baixo custo da produção, os salários da grande maioria dos trabalhadores eram mantidos baixos.

LEGENDA: Repressão policial à greve dos metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, SP, 1980.

FONTE: Juca Martins/Olhar Imagem

Qualquer divergência, protesto ou manifestação contra a ditadura era visto como ameaça à segurança




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Analise uma fonte primária

8. Leia, a seguir, o depoimento de André Almeida Cunha Arantes. Nos tempos da ditadura militar no Brasil, André era uma criança. Nesse trecho, ele nos informa sobre seu cotidiano e o de sua família em dois momentos: no ano de 1968 e no ano de 1976.

Tinha 3 anos [em 1968] e lá estávamos em mais uma situação estranha. Durante a noite, uns "amigos" de meus pais vieram nos buscar em nossa pequena casa que ficava no interior de Alagoas [...]. Nos levaram de jipe para um castelo (Policlínica da PM de Alagoas), em Maceió. Lembro que achei aquilo estranho. [...] Quando despertei no outro dia, estava em um quarto pequeno e cinza, cheio de grades.

Mudamos algumas vezes de "endereço". Depois do "castelo" fomos para Escola de Aprendizes de Marinheiro de Alagoas. Uma vez por dia descíamos para brincar em um pátio, cheio de lixo e ratos, que minha mãe apelidou carinhosamente de Jerry. O Jerry era o ratinho esperto de um desenho animado da época que vivia fugindo de seu algoz, o gato Tom. Como era pequeno, não percebi, mas o "Tom" tinha nos pegado. Estávamos detidos em uma prisão da marinha. [...]

[Em 1976], eu e minha irmã fomos levados pelo meu tio para Belo Horizonte, onde moraríamos por um ano com minha avó materna, enquanto meu pai seguia sendo torturado e minha mãe foragida da repressão, em algum lugar que não sabíamos.

Filho do Zorro, por André Almeida Cunha Arantes (depoimento). In: Infância roubada: crianças atingidas pela ditadura militar no Brasil. Assembleia Legislativa, Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. São Paulo: Alesp, 2014. p. 23. Disponível em: www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo. pdf. Acesso em: 21 abr. 2016.

a) Com base no texto do depoimento, quem seriam os "amigos" dos pais de André que foram buscá-los em determinada noite de 1968? Para onde André e sua família foram levados naquela ocasião?

b) Depois de sair do "castelo", para onde André e sua família foram? Por que ele diz que "Como era pequeno, não percebi, mas o "Tom" tinha nos pegado"? Com base nessas informações, que ativida" des os pais de André exerciam nos tempos da ditadura?

c) Que medida o governo militar havia tomado em 1968? Será que essa medida passou a influenciar a situação da família de André?

d) O que ocorreu com o pai de André em 1976? Que outras formas o governo militar utilizava para controlar o poder e reprimir as ações da população?

Articule passado e presente

9. A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instalada oficialmente em 16 de maio de 2012, investigou as violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, no Brasil. A CNV concentrou esforços nas graves violações de direitos humanos praticados durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Formada por assessores e pesquisadores, ela ouviu testemunhas e vítimas e convocou agentes da repressão para prestar depoimentos.

LEGENDA: Em outubro de 2014, a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, recebe o relatório final da Comissão Nacional da Verdade das mãos do coordenador da CNV, Pedro Dallari.

FONTE: Evaristo Sa/Agência France-Presse

a) O relatório final dos trabalhos da CNV foi divulga" do em dezembro de 2014. Reúna-se com um colega e façam uma pesquisa em jornais, revistas e na internet sobre os resultados divulgados pelo relatório final da CNV. Anotem suas descobertas.

b) Com base na pesquisa realizada e nos conteúdos vistos neste capítulo, escrevam uma carta. Imaginem que essa carta será endereçada a um parente de uma das vítimas da repressão durante a ditadura militar no Brasil. Escrevam a ele sobre a importância da Comissão Nacional da Verdade, sobre seus resultados e sobre como o resgate da memória das vítimas da repressão da ditadura é importante para a sociedade atual.

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CAPÍTULO 11: Terceiro Mundo: descolonização e lutas sociais

LEGENDA: Em julho de 2015, ocorreu a VII Cúpula do Brics - acrônimo criado pelo economista Jim O' Neill para se referir ao grupo de países em desenvolvimento formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Entre os objetivos da reunião estava o fortalecimento da cooperação financeira e do diálogo entre os países-membros. Além disso, o Bric criou, em 2014, o Novo Banco de Desenvolvimento, NBD, cujo principal objetivo é financiar projetos de desenvolvimento em países pobres e em desenvolvimento, servindo de alternativa ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Na foto, a presidente brasileira Dilma Rousseff caminha para cumprimentar o presidente russo Vladimir Putin na cerimônia de boas-vindas do evento.

FONTE: Sergei Karpukhin/Reuters/Latinstock

Neste capítulo, você vai estudar alguns eventos relacionados à trajetória dos países do então chamado Terceiro Mundo, em especial ao longo da Guerra Fria. Esses países, na Ásia, na África, no Oriente Médio e na América Latina, empobrecidos pelo imperialismo dos séculos XIX e XX, viam sua importância econômica flutuar de acordo com os interesses em jogo, num contexto internacional dominado pelos Estados Unidos e pela ex-União Soviética.

Hoje, qual será a situação econômica dos países do antigo Terceiro Mundo? Será que, no mundo pós-Guerra Fria, algo de concreto mudou?

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1. A descolonização asiática e africana

A resistência ao colonialismo na África e na Ásia contou com o enfraquecimento europeu resultante da Segunda Guerra Mundial. Porém, nos dois continentes, os povos já manifestavam seus anseios de independência e autogoverno. As potências coloniais europeias se opunham a eles, mas tanto a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) quanto os Estados Unidos defendiam a autodeterminação dos povos colonizados já que pretendiam atraí-los para as respectivas esferas de influência.

Os movimentos pró-independência aconteceram em um contexto marcado pela Guerra Fria e pela complexidade das contradições imperialistas. Foi nessa época que diversas colônias africanas e asiáticas lutaram e conquistaram - por meios pacíficos ou pela luta armada - a tão desejada independência.

A Guerra Fria significou um estado de tensão permanente entre os blocos comunista, representado pela URSS, e capitalista, protagonizado pelos Estados Unidos, sem, porém, que houvesse um enfrentamento armado direto entre eles. Entretanto, a disputa entre as duas superpotências por áreas de influência em todo o mundo era intensa. Foi esse o motivo que tornou ex-colônias africanas e asiáticas espaços de confronto bélico.

LEGENDA: Dançarinos ruandeses no estádio Kasarani em Nairóbi, capital do Quênia, em cerimônia que festejou os 50 anos de independência do país em relação ao Reino Unido. Foto de 2013.

FONTE: Tony Karumba/Agência France-Presse

Entre as décadas de 1950 e 1960, mais de quarenta países africanos e asiáticos conquistaram a independência. Reflexo, em primeiro lugar, da vontade de seus povos, mas também do abalo do poderio europeu, do apoio das Nações Unidas e dos interesses dos Estados Unidos e da União Soviética. A partir desse momento, nascia a expressão Terceiro Mundo, criada pelo sociólogo francês Alfred Sauvay (1898-1990), em 1952, como referência ao Terceiro Estado francês na época da Revolução Francesa. Para ele, o Primeiro Mundo correspondia aos países capitalistas; o Segundo Mundo, aos países socialistas; e o Terceiro Mundo, aos países empobrecidos pela opressão colonialista.

Em 1955, em Bandung, na Indonésia, representantes de países que haviam recém-conquistado a independência participaram de uma conferência na qual declararam apoio às lutas anticoloniais, condenaram o racismo, as armas atômicas e a intervenção das superpotências nos assuntos internos das nações. Procurou-se também uma posição alternativa à bipolarização mundial entre Estados Unidos e União Soviética, o que, como vimos, ficou conhecida como não alinhamento

Após a independência, que papel esses países do Terceiro Mundo desempenharam nas relações internacionais? Qual é o peso econômico desses países no mundo contemporâneo?

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.

Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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A independência dos países afro-asiáticos

LEGENDA: Submetidos por séculos à dominação colonial europeia, os continentes africano e asiático em poucos anos passaram a abrigar algumas dezenas de novas nações.

FONTE: Adaptado de: PARKER, Geoffrey (Ed.). Atlas da história do mundo. São Paulo: Times Books/Folha de S.Paulo, 1995. p. 272-273.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

A luta pela independência na Ásia

Índia

Como já vimos, o subcontinente indiano passou a integrar os domínios do império britânico a partir das primeiras décadas do século XVII, por intermédio da Companhia Inglesa das Índias Orientais, até que em 1858 a administração da Índia foi transferida para a Coroa britânica.

Na Índia, o processo de emancipação política foi liderado pelo advogado Mohandas Gandhi (1869-1948), ligado ao Partido do Congresso Indiano (ou Congresso Nacional Indiano), fundado em 1885 e de maioria hinduísta. Em 1906, foi criada a Liga Muçulmana, que também atuaria no processo de independência. A luta de Gandhi e seus seguidores, portanto, tinha como alvo o rompimento da dominação britânica na Índia e a conquista da independência.

Gandhi preconizava a não violência, a desobediência civil, o boicote aos produtos ingleses e o não pagamento dos impostos como métodos para alcançar seus objetivos. Isso lhe valeu o título de Mahatma ("Grande Alma"), dado pela população indiana.

Em 1919, tropas britânicas abriram fogo contra cerca de 20 mil manifestantes desarmados, em Amritsar, no noroeste da Índia. Estima-se que foram mortas entre 380 e mil pessoas no massacre. A resposta de Gandhi foi um chamado à mobilização de toda a população em torno da luta pacífica pela independência.

Por volta de 1945, era evidente que a pressão em prol da autonomia se tornara irresistível. Diante disso, em 1947 os ingleses concordaram com a independência da Índia, mantendo, na medida do possível, seus interesses econômicos.

LEGENDA: Na Índia colonial, o sal, extraído dos mares indianos, era monopólio inglês. Mahatma Gandhi, no centro, liderou um protesto pacífico ao caminhar cerca de 300 quilômetros até o mar para obter o produto. O movimento, que ficou conhecido por Marcha do Sal, foi ganhando adeptos durante a caminhada de Gandhi e tornou-se fundamental para a independência indiana. Foto de 1930.

FONTE: World History Archive/Alamy/Latinstock

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As divergências internas entre hindus e muçulmanos promoveram a divisão do subcontinente indiano em duas nações, a União Indiana (Índia), de maioria hinduísta e governada pelo então primeiro-ministro Nehru, e o Paquistão, de maioria muçulmana. Essa divisão levou milhões de pessoas a migrar de um lugar para outro e resultou em sérios conflitos. Em 1948, ao anunciar uma viagem ao Paquistão com o objetivo de reforçar os laços entre hindus e muçulmanos, o próprio Gandhi foi assassinado por um hindu nacionalista radical.

A independência política, contudo, não eliminou a miséria: no início do século XXI, a Índia continuava a ser uma das mais pobres nações do planeta. Entretanto, a busca pela afirmação nacional levou o país a investir em centros de excelência especializados em pesquisa nuclear, tecnologia espacial e de informática. Mesmo assim, os conflitos étnicos e religiosos, além da violência política, continuaram constantes no país.

Com uma população de cerca de 1,3 bilhão de habitantes, perto de 37% dela vivendo em situação de pobreza absoluta, nos últimos anos a Índia ganhou destaque devido ao seu contínuo crescimento econômico.

Nessas condições, apesar de sua péssima distribuição de renda, o país foi incluído pelo economista inglês Jim O'Neill em um grupo de países considerados como os de desenvolvimento econômico mais promissor. Esse grupo, segundo o economista, seria formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China, e recebeu a denominação de Bric (acrônimo formado pelas iniciais dos nomes desses países). Mais tarde, a África do Sul foi integrada ao grupo, que passou a ser chamado de Brics depois de adicionada a letra S de South Africa.

LEGENDA: Multidão acompanha o funeral de Mahatma Gandhi, assassinado em 1948.

FONTE: Fox Photos/Getty Images

LEGENDA: Soldados paquistaneses, de preto, e indianos realizam a cerimônia da bandeira na fronteira entre Paquistão e Índia, em foto de 2014.

FONTE: Narinder Nanu/Agência France-Presse

Vietnã, Laos e Camboja

Situada a leste da Índia, uma região conhecida como Indochina, correspondente hoje ao Vietnã, Laos e Camboja, inicialmente colonizada pela França, foi ocupada pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial. A resistência popular armada à ocupação japonesa transformou-se em luta pela libertação nacional após o fim da guerra. Ho Chi Minh (1890-1969), líder comunista, fundou o Viet Minh, movimento pela libertação do Vietnã, que iniciou prolongada luta de guerrilhas contra a França, que havia voltado a dominar a região depois da derrota japonesa em 1945. Na década seguinte, em 1954, os franceses foram derrotados pelo Viet Minh na Batalha de Dien Bien Phu, e obrigados a se retirar da região.

Glossário:

Indochina: termo adotado pela França para se referir à colônia do Sudeste Asiático, situada entre as culturas indiana e chinesa, que compreendia os atuais países do Vietnã, Laos e Camboja.

Fim do glossário.

Um acordo estabelecido na Conferência de Genebra reconheceu a independência dos três países, mas dividiu o Vietnã em duas partes até que um plebiscito sobre a reunificação do país fosse realizado: o Vietnã do Norte, comunista, liderado por Ho Chi Minh, e o Vietnã do Sul, capitalista, governado por Bao Dai (1913-1997). O plebiscito nunca aconteceu e, em 1955, um golpe militar no Vietnã do Sul, que contou com o apoio dos Estados Unidos, impôs um regime repressivo que decretou o cancelamento das eleições de 1960. Entre os opositores ao governo militar, havia um forte movimento armado, com apoio da população, chamado de vietcongue. Esse movimento cresceu, nutrido pelo Vietnã do Norte, e os Estados Unidos, preocupados com a expansão do comunismo na região, sustentaram o governo do Vietnã do

Glossário:

Vietcongue: (Viet Nam Cong Sam) comunistas do Vietnã, expressão criada em 1960 no Vietnã do Sul.

Fim do glossário.

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A divisão do Vietnã (1954)

FONTE: Adaptado de: SCALZARETTO, R.; MAGNOLI, D. Atlas: geopolítica. São Paulo: Scipione, 1996. p. 32.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

Sul com milhares de soldados, aviões, armas de último tipo e toda a sua tecnologia bélica, com exceção das armas nucleares.

A impopularidade da Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, onde ocorreram grandes manifestações contra a intervenção norte-americana naquele país, e a dificuldade de obter uma vitória militar decisiva no campo de batalha, levaram a uma retirada gradual das tropas estadunidenses da região. Finalmente, em 1975, a cidade de Saigon foi tomada pela guerrilha, encerrando formalmente a guerra e unificando o país.

Além do Vietnã, também o Laos e o Camboja mergulharam na violência da guerra e das disputas da Guerra Fria. No Camboja, o grupo guerrilheiro Khmer Vermelho assumiu o poder em 1975 e, sob a liderança de Pol Pot (1925-1998), radicalizou o extermínio de opositores, intelectuais e mesmo de pessoas comuns, deixando, segundo dados oficiais, 2,8 milhões de mortos e centenas de milhares desaparecidos.

LEGENDA: Na foto, de 1972, crianças vietnamitas fogem de bombardeio de napalm (gasolina gelatinosa usada como bomba incendiária) da aviação estadunidense. Entre as crianças está Kim Pol Phuc, a menina nua. A fotografia ganhou o prêmio Pulitzer de Jornalismo de 1973, o prêmio máximo da categoria nos Estados Unidos.

FONTE: Nick Ut/Associated Press/Glow Images

Oriente Médio

Nos anos 1960, enquanto os movimentos guerrilheiros de libertação nacional sacudiam o Sudeste Asiático, no Oriente Médio era formada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), movimento guerrilheiro que lutava pela formação de um Estado palestino. Para entender melhor o que ocorria na região (e ocorre até hoje) precisamos voltar algumas décadas.

Em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs a formação de dois Estados no território da Palestina, então sob administração inglesa: um judeu e outro árabe. Os dois povos reivindicavam o território, baseados em disputas milenares. Os judeus aceitaram a sugestão, mas os palestinos recusaram-na, argumentando que toda a região palestina pertencia a eles. A recusa foi a senha para que a disputa entre judeus e árabes se acirrasse. Enquanto isso, em 1948, os ingleses, cujo império estava em declínio, retiraram-se definitivamente da região.

No mesmo ano, em 1948, foi criado o Estado de Israel. Os países árabes vizinhos (Egito, Iraque, Jordânia, Líbano e Síria) saíram em defesa dos palestinos, que se consideraram prejudicados pela partilha realizada pela

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ONU. Começava a Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-1949), que resultou na vitória de Israel, que conseguiu ampliar seu território, e no desencadeamento de um clima de permanente tensão na região.

O conflito árabe-israelense passou para a órbita da Guerra Fria com o apoio dado pelos Estados Unidos a Israel, o que forçou os países árabes a se aproximarem da União Soviética.

Em 1956, o Egito, governado por Gamal Abdel Nasser (1918-1970), nacionalizou o Canal de Suez, ligação vital entre o Mediterrâneo e o Índico-Pacífico. Essa iniciativa levou França e Inglaterra a uma intervenção armada no país, com o apoio de Israel, cujas tropas tomaram toda a península do Sinai: foi a Segunda Guerra Árabe-Israelense. A intervenção da ONU e o desejo das superpotências de não generalizar a guerra na região levaram à restauração da situação anterior ao conflito.

LEGENDA: Na foto, de 1948, membros de comunidade judaica em meio aos danos causados por ataques aéreos de forças iraquianas durante a Primeira Guerra Árabe-Israelense.

FONTE: Kluger Zoltan/Agência France-Presse

Em 1967, o bloqueio de portos israelenses pelo Egito desencadeou a Guerra dos Seis Dias ou Terceira Guerra Árabe-Israelense. Em pouco tempo, tropas de Israel ocuparam o Sinai, a Faixa de Gaza e as colinas de Golan (pertencentes à Síria).

O prolongado domínio israelense sobre os territórios conquistados em 1967 gerou enorme insatisfação nos países árabes e a preparação de uma nova guerra, que explodiu em 1973: a Guerra do Yom Kippur (o "Dia do Perdão" judaico) ou Quarta Guerra Árabe-Israelense . A iniciativa árabe de reconquista de alguns territórios foi logo detida. Mais uma vez, as pressões das superpotências encerraram o conflito, com a manutenção de Israel nos territórios ocupados em 1967.

Em 1979, o egípcio Anuar Sadat (1918-1981) e o israelense Menachem Begin (1913-1992) assinaram os Acordos de Camp David , nos Estados Unidos, com a mediação do então presidente norte-americano Jimmy Carter, encerrando as disputas entre Egito e Israel. A questão palestina, todavia, continuou a preocupar, com a OLP Í organização política e militar Í lutando pela criação de um Estado independente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

Israel

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

Conflitos árabe-israelenses

LEGENDA DOS MAPAS: Organizados pelos autores. Adaptado de: DUBY, Georges. Atlas histórico mundial. Madrid: Debate, 1989. p. 213.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Durante a década de 1980, os conflitos continuaram, incluindo a ocupação israelense do sul do Líbano e as intifadas ("revolta das pedras") - conflitos de rua entre população palestina e tropas israelenses - em territórios palestinos ocupados por Israel.

Em 1993, Yitzhak Rabin (1922-1995), primeiro-ministro de Israel, e Yasser Arafat (1929-2004), líder da OLP, assinaram um acordo segundo o qual a organização palestina reconhecia o Estado de Israel e renunciava à violência, enquanto Israel concedia autonomia aos palestinos em determinadas áreas da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Em decorrência do acordo, em 1994 foi criada a Autoridade Nacional Palestina (ANP), uma espécie de governo que foi presidido por Yasser Arafat até 2004, quando faleceu.

No final da primeira década do século XXI, muitos países reconheceram a existência de um Estado Palestino, formado pelos territórios da Faixa de Gaza e por porções da Cisjordânia. A atuação do presidente da ANP, Mahmoud Abbas, em busca de reconhecimento internacional, obteve algum sucesso, já que o Estado Palestino foi formalmente admitido pelo Vaticano, em 2015, sob o comando do papa Francisco. Os Estados Unidos e alguns países da Europa ocidental são contrários ao reconhecimento, enquanto continuam as rivalidades e os confrontos na região.

LEGENDA: Grafite do artista Banksy no muro da cidade de Belém, que separa o território palestino de Israel. Foto de 2005.

FONTE: Ammar Awad/Reuters/Latinstock

LEGENDA: Desde 2002, o governo israelense constrói, na divisa com a Cisjordânia, um muro de aproximadamente 350 quilômetros, para proteger de atentados terroristas seu território e assentamentos israelenses em territórios palestinos ocupados por Israel. Porém, o muro vem sendo condenado pela comunidade internacional, pois tem avançado sobre territórios palestinos e piorado as negociações de paz entre árabes e israelenses.

FONTE: Thomas Coex/Agência France-Presse

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A luta pela independência na África

Argélia

No norte da África, a Argélia, colônia francesa desde 1830, obteve sua independência em 1962, após uma longa guerra, na qual os argelinos foram liderados pela Frente de Libertação Nacional (FLN). A luta contra os franceses ganhou impulso em 1954, quando a FLN desencadeou ataques em diversas regiões da colônia.

Diante da indecisão do governo francês em manter o domínio da região, o comandante militar francês em Argel, general Salan (1899-1984), por sua própria conta e risco estabeleceu um comitê destinado a garantir a Argélia à França. Assim, passou a pressionar o governo da França, enviando tropas de paraquedistas para a Córsega, com o objetivo de preparar um eventual golpe em Paris.

Na França, a iminente ameaça militar levou ao poder o general De Gaulle (1890-1970) em 1958. De Gaulle foi líder da resistência francesa ao nazismo e era bastante prestigiado nas Forças Armadas. Ele afastou os militares golpistas e, depois de negociações com a FLN argelina, conhecidas também por acordos de Evian pactos que colocaram fim à guerra e abriram caminho para a independência -, e de uma consulta à população francesa por meio de um plebiscito, reconheceu a independência da Argélia. Em 1962, formava-se a República Democrática Argelina, sob a liderança de Ahmed Ben-Bella (1916-2012).

LEGENDA: Argelinos celebram a independência de seu país pelas ruas da capital, Argel. Foto de 1962.

FONTE: Rue des Archives/The Granger Collection/Glow Images

Congo

Na África subsaariana, o Congo Belga foi colônia da Bélgica até 1960, quando violentas manifestações populares no ano anterior obrigaram o governo belga a reconhecer sua independência. A ex-colônia passou então a se chamar República do Congo, tendo como presidente Joseph Kasavubu (1910-1969) e como primeiro-ministro Patrice Lumumba (1925-1961).

Logo após a independência do Congo, uma de suas províncias também se declarou independente: Katanga. O movimento de emancipação dessa província mineradora, promovido por soldados belgas e mercenários a serviço da companhia belga Union Minière, levou à guerra civil. Lumumba, que não conseguiu obter ajuda de tropas da ONU nem apoio da União Soviética para enfrentar os rebeldes, foi demitido por Kasavubu - aliado aos belgas e aos norte-americanos -, preso e assassinado por mercenários.

As disputas entre as várias facções rivais só foram contidas com a intervenção da ONU e com a entrega do cargo de primeiro-ministro, em 1964, a Moisés Tshombe (1919-1969), o líder da independência de Katanga.

Em 1965, Tshombe foi derrubado por um golpe liderado por Mobutu Joseph Désiré (1930-1997), que implantou uma ditadura pessoal e permaneceu no poder até 1997, quando foi destituído. Nesse mesmo ano, o país, que mudara seu nome para República do Zaire em 1971, adotou a denominação República Democrática do Congo.

LEGENDA: Na foto, Patrice Lumumba, símbolo da luta pela libertação africana, pouco antes de ser assassinado, em 1961.

FONTE: Stringer/Agência France-Presse




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O fim das colônias portuguesas

Um processo de independência diferente ocorreu nas colônias portuguesas. Em Portugal, a ditadura de António de Oliveira Salazar (1889-1970), iniciada nos anos 1930, conservou o país durante quarenta anos distante de avanços econômicos, políticos e sociais, retardando o processo de independência de suas colônias.

Angola


Em Angola, foi criado em 1956 o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), liderado por Agostinho Neto (1922-1979), que deu início à luta armada contra o colonialismo salazarista em 1961. Entretanto, outras organizações de libertação também surgiram, como a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), dirigida por Holden Roberto (1923-2007), e a União Nacional pela Independência Total de Angola (Unita), chefiada por Jonas Savimbi (1934-2002).

Em 1974, a ditadura portuguesa foi derrubada pela Revolução dos Cravos, cujo governo promoveu o Acordo de Alvor , que reconheceu como necessária a independência de Angola e estabeleceu uma partilha de poder entre os três movimentos de libertação. Em novembro de 1975, as três organizações proclamaram simultaneamente a independência nas regiões do país por elas controladas. Teve início então uma guerra civil entre os três movimentos: a FNLA, apoiada pelo Zaire, a Unita, com suporte da África do Sul e dos Estados Unidos, e o MPLA, que por controlar a capital, Luanda, e a maior parte do país, acabou criando uma estrutura governamental. O MPLA, de orientação marxista, recebia o auxílio de Cuba e da URSS.

Mais de uma década depois, em 1992, o governo do MPLA promoveu eleições pluripartidárias, buscando o fim da guerra civil. Porém, Jonas Savimbi não reconheceu a vitória de José Eduardo dos Santos do MPLA, presidente desde 1979, e a guerra civil recomeçou. Em fevereiro de 2002, Jonas Savimbi foi morto pelo exército angolano e, em abril, foi assinado um acordo de cessar-fogo na Assembleia Nacional, em Luanda.

O acordo, que prometia anistia e paz depois de 27 anos de guerra, foi apoiado pela nova liderança da Unita e pelo presidente José Eduardo dos Santos. Nas eleições de 2012, José Eduardo dos Santos (MPLA) foi reeleito para a Presidência do país.

LEGENDA: Agostinho Neto, 1976.

FONTE: Betterman/Corbis/Latinstock

LEGENDA: A Revolução dos Cravos derrubou a ditadura salazarista em abril de 1974, irradiando esperanças de liberdade para as colônias africanas. Na foto, de 1974, militares em Lisboa ostentam cravos - símbolo da Revolução - colocados por manifestantes em suas armas.

FONTE: Herve Gloaguen/Gamma-Rapho/Getty Images

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Boxe complementar:

Minas terrestres

A mina terrestre é um artefato enterrado no solo, que explode sob a passagem de veículos ou pessoas, dificultando assim o avanço de forças inimigas. A ONU calcula que 23 mil civis (entre os quais muitas crianças) tenham sido mutilados por pisar acidentalmente em minas terrestres instaladas em Angola durante a guerra civil. A ameaça persiste até os dias de hoje, não apenas em Angola, pois milhões de minas permanecem enterradas em diversas áreas de conflito no mundo, e nem sempre há registros de sua localização.

LEGENDA: Especialista em localização de minas terrestres não detonadas trabalhando em Angola. Foto de 2012.

FONTE: Eye Ubiquitous/UIG/Getty Images

LEGENDA: Garota angolana, vítima de explosão de minas terrestres, aprecia cartaz de concurso de beleza destinado a jovens na mesma condição. O objetivo do concurso é colaborar para a elevação da autoestima das vítimas desses artefatos. Foto de 2008.

FONTE: Shayne Robinson/Associated Press/Glow Images

Fim do complemento.

Moçambique

Em Moçambique, o processo de independência foi iniciado em 1962 pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), de inspiração socialista, liderada por Eduardo Mondlane (1920-1969). Quando Mondlane foi assassinado, em 1969, Samora Machel (1933-1986) assumiu o comando do movimento. Com a revolução de 1974, Portugal acelerou as negociações pela libertação dessa colônia, reconhecendo sua independência em 1975, com Machel na Presidência.

Governada por uma minoria branca e alinhada com o bloco norte-americano nos anos 1980, a África do Sul procurou desestabilizar o governo socialista de Machel por meio da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo). Apesar da assinatura do Acordo de Nkomati, que estabeleceu a não agressão com a África do Sul, os confrontos foram constantes. Na década de 1990, com a abertura do país, foram estabelecidos acordos entre o governo e os guerrilheiros para a pacificação de Moçambique. As eleições de 1994 deram vitória a Joaquim Chissano, líder da Frelimo e sucessor de Machel.

LEGENDA: Samora Machel, 1976.

FONTE: Keystone Pictures USA/Alamy/Latinstock

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Guiné-Bissau e Cabo Verde

Em Guiné-Bissau e Cabo Verde, a luta contra o colonialismo português começou em 1961, sob a liderança de Amílcar Cabral (1924-1973), do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), assassinado em 1973. A independência da Guiné-Bissau foi, então, proclamada por Luís Cabral (1931-2009), embora só tenha sido oficializada em 1974, após a Revolução dos Cravos.

Em 1980, Cabo Verde separou-se da Guiné-Bissau, e, na década de 1990, os dois países abandonaram o regime marxista de um só partido e ampliaram as liberdades políticas e econômicas. O pluripartidarismo e as eleições não puseram fim às dificuldades sociais e econômicas, muito menos às rivalidades e confrontos nas décadas seguintes. Em Cabo Verde, a aridez do solo do arquipélago e outras dificuldades agrícolas têm provocado forte movimento de emigração. Na Guiné-Bissau prevaleceram vários motins, atuação guerrilheira e deposição de presidentes.

Ruanda

Em Ruanda, a independência foi efetivada em 1962, depois de ter sido colonizada por Alemanha e Bélgica. As marcas da turbulenta descolonização no continente africano, como o grave subdesenvolvimento e a instabilidade institucional, refletiram-se, nos anos 1990, em disputas pelo poder por parte de grupos étnicos hutus (90% da população) e tutsi. Decorrência de heranças coloniais que fomentaram disputas étnicas, os graves e sangrentos conflitos produziram milhões de mortos e refugiados.

LEGENDA: Coral se apresenta em Kigali, durante a cerimônia que relembra o 20º aniversário do genocídio em Ruanda. Em 1994, milhares de pessoas foram mortas por membros do governo extremista e por milícias. Foto de abril de 2014.

FONTE: Chip Somodevilla/Getty Images

LEGENDA: Secretário-geral e um dos fundadores do PAIGC, Amílcar Cabral aparece com uma criança no colo em foto de 1973.

FONTE: Shevich/RIA Novosti/Agência France-Presse

África do Sul: ascensão e queda do apartheid

Os primeiros europeus a colonizar a África do Sul foram os holandeses, que ali chegaram em meados do século XVII. Seus descendentes sul-africanos eram chamados de bôeres, ou africâneres. Mais tarde, após a Guerra dos Bôeres (1899-1902), entre os ingleses e os africâneres e vencida pelos primeiros, a colônia passou para o domínio da Inglaterra. Em 1910, formou-se a União Sul-Africana, fiel à Coroa britânica, que estabeleceu um regime segregacionista conhecido por apartheid. Em 1931, a União Sul-Africana tornou-se independente e passou a se chamar África do Sul.

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Iniciado em 1913, o apartheid foi consolidado por meio de diversas leis, adotadas ao longo dos anos.

- 1913: o Native Land Act estabelecia que 92,5% das terras deveriam ficar com a minoria branca, enquanto apenas 7,5% delas seriam reservadas para a maioria negra (78% da população);

- 1923: o Native Urban Areas Act excluiu dos africanos a possibilidade de adquirir alguma propriedade urbana e assim formaram-se as townships, zonas na periferia das cidades destinadas aos negros e separadas das áreas "nobres", reservadas aos brancos;

- 1949: tornou-se proibido o casamento inter-racial e estabeleceu-se que os negros só poderiam circular nas cidades portando passes especiais;

- 1950: o Population Registration Act classificou a população em três "grupos raciais". Os brancos (2,6 milhões ou 15,6% da população), os mestiços, (1,1 milhão ou 6,7% da população) e os negros (12,6 milhões, ou 77,3% da população). (O 0, 4% restante correspondia a grupos minoritários.) Essa lei excluía os direitos políticos dos negros e imprimia características policiais ao regime;

- 1951: foram criados os bantustões (homelands), zonas de residência negra;

- 1953: o Public Safety Act e o Criminal Law Act autorizaram a decretação do Estado de Emergência sempre que a minoria branca se sentisse ameaçada. Assim, tornou-se possível a suspensão das liberdades públicas e a condenação de pessoas consideradas "subversivas". Também proibiam o uso dos mesmos espaços públicos por brancos e negros (banheiros, bebedouros, escolas, praias, arquibancadas, etc.);

- 1955: formas de resistência contra o apartheid foram estabelecidas no Congresso do Povo, do qual participaram os principais movimentos de luta, como o African National Congress (CNA), o Congresso Indiano da África do Sul (CIAS), o Congresso dos Povos Mestiços (COM) e o Congresso Democrático (CD);

- 1960: forças de repressão da minoria branca atiraram contra uma multidão de negros, evento que ficou conhecido como o Massacre de Shaperville, em 21 de março. A chacina tornou-se símbolo da repressão policial (69 mortos entre estudantes, mulheres e crianças) e da luta por direitos;

- 1962: Nélson Mandela (1918-2013), líder da resistência contra o apartheid, foi preso e condenado à prisão perpétua no ano seguinte;

- 1971: foi proibida a concessão da cidadania sul-africana aos habitantes dos bantustões.

Preso em 1962 por sua militância contra o apartheid, Nélson Mandela só foi libertado em 1990, como resultado das lutas e de uma campanha internacional contra o regime segregacionista da África do Sul. Quatro anos depois, foi eleito presidente da África do Sul. Terminava assim o regime de apartheid. Mandela morreu em 2013 e deixou para os sul-africanos um país mais pacificado e democrático. Para a humanidade, Mandela transmitiu um legado de dignidade ao mostrar que uma convivência mais tolerante e harmônica entre os diferentes é possível.

LEGENDA: A placa alerta, em africâner e inglês, que a área da praia e do mar é permitida apenas para pessoas brancas. Sinalizações segregando espaços eram comuns durante o regime do apartheid. Foto de 1988.

FONTE: Ulli Michel/Reuters/Latinstock

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Duas décadas após o fim do apartheid, o presidente Jacob Zuma, eleito em 2009, tinha pela frente um quadro de enorme desigualdade social: segundo o economista Sampie Terreblanche, formou-se na África do Sul "uma elite negra de cerca de 2 milhões de pessoas e uma classe média de 6 milhões de pessoas. O fosso entre esses 8 milhões de negros ricos e os 20 milhões a 25 milhões de pobres cresceu perigosamente."1

1 CESSOU, Sabine. Impasse social na África do Sul. Le Monde Diplomatique Brasil. Fevereiro 2013. p. 25.

Em 2011, a África do Sul passou a integrar o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), criado 10 anos antes, que passou a ser chamado de Brics, apontado como um conjunto de países com potencial para formarem grandes economias no futuro.

LEGENDA: Nélson Mandela, o líder do CNA, discursa em comício em Soweto, um subúrbio de Johannesburgo, África do Sul, 1990.

FONTE: Georges De Keerle/Getty Images

2. Tensões e conflitos na América Latina

Apesar da independência política conquistada a partir do século XIX, os países da América Latina mantiveram laços de dependência econômica com as grandes potências capitalistas mundiais, de início principalmente com a Inglaterra e posteriormente com os Estados Unidos.

As forças tradicionais, defensoras do vínculo político-econômico com os grandes centros capitalistas, muitas vezes chocaram-se com as forças reformistas e nacionalistas e também com as de extrema-esquerda, num quadro que visava à reformulação das estruturas vigentes. Nesse cenário, ditaduras militares, governos pró-libertação, movimentos reformistas, revolucionários e guerrilheiros têm marcado o conturbado quadro político da América Latina desde o século XIX.

Reflexos da Guerra Fria na América Latina

FONTE: Adaptado de: BAYLAC, M. H. Historie terminale. Paris: Larouse Bordas, 1998. p. 193.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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México

Após a proclamação da independência, em 1821, o México passou a viver um período de instabilidade política sob a forma de ditaduras e de dependência econômica. As condições sociais se deterioraram com a perda de quase metade de seu território, após a guerra travada contra os Estados Unidos, em 1848.

O intervencionismo, as disputas políticas e a crise econômica cresceram nas décadas seguintes. No governo do presidente Benito Juarez (1858-1872), a ampliação das dificuldades desdobrou-se na suspensão do pagamento dos juros a diversos empréstimos contraídos por governos anteriores e, em resposta, o bloqueio dos portos mexicanos pela França com apoio da Espanha e da Grã-Bretanha, buscando forçar o pagamento das dívidas. O passo seguinte foi a intervenção armada de Napoleão III da França, em 1861, época da Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Com a invasão, foi formado um governo chefiado pelo arquiduque austríaco Maximiliano de Habsburgo (1832-1867), coroado imperador do México.

A resistência republicana contra Maximiliano, tendo à frente Benito Juarez, acabou fragilizando e derrotando esse prolongamento do Segundo Império da França na América. No avanço das forças republicanas, Maximiliano acabou preso e fuzilado em Querétano, em 1867.

A vitória de Benito Juarez, presidente de origem indígena zapoteca, não pôs fim às dificuldades mexicanas sociais, econômicas, tampouco às disputas políticas. Na década seguinte, teve início a longa ditadura de Porfirio Díaz (1830-1915), que se estendeu de 1877 a 1880 e de 1884 a 1911. Nesse período se intensificaram a concentração fundiária e a entrada de elevadas somas de capital estrangeiro, voltadas para a exploração e o controle dos recursos minerais e da produção de artigos de exportação. Dessa forma, para a população local, em sua grande maioria fixada nas áreas rurais, aumentaram a miséria e a dependência em relação aos grandes senhores.

No início do século XX, esse quadro impulsionou o crescimento da insatisfação popular, expressada em greves operárias nas cidades e revoltas na zona rural. Dessas lutas surgiram líderes, como Pancho Villa (1878-1923) e Emiliano Zapata (1879-1919), que comandaram milhares de camponeses nas mobilizações por distribuição de terras via reforma agrária, opondo-se aos latifundiários apoiados pela Igreja e pelas elites constituídas. Parte da elite, no entanto, sob o comando de Francisco Madero (1873-1913), insurgia-se contra Porfirio Díaz. Essas forças se uniram aos exércitos revolucionários de Villa e Zapata e depuseram Porfirio Díaz em maio de 1911.

LEGENDA: Execução do imperador Maximiliano do México, 1868, óleo sobre tela de Édouard Manet (1832-1883).

FONTE: Reprodução/Galeria de Arte de Mannheim, Alemanha.

LEGENDA: Na foto, de 1915, os líderes populares Pancho Villa (no centro) e Emiliano Zapata (à direita) no palácio presidencial da Cidade do México.

FONTE: Agência France-Presse/Getty Images/Museu de Arte Moderna de Nova York, EUA.

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Entretanto, as camadas populares permaneceram insatisfeitas com as tímidas medidas sociais tomadas por Madero, assassinado em 1913 e substituído pelo general Victoriano Huerta (1850-1916), que reinstalou a ditadura, ligada aos interesses dos Estados Unidos.

Pancho Villa voltou a lutar contra as forças federais, enquanto Zapata liderava no sul do país a revolução camponesa pela reforma agrária. As pressões levaram Huerta a renunciar em 1914 em favor de um governo constitucional liderado por Venustiano Carranza (1914-1915).

Em 1917, foi promulgada a nova Constituição liberal do país e Carranza, eleito presidente. Insatisfeitos com o não atendimento de suas reivindicações, especialmente a redivisão fundiária, os movimentos populares continuaram em luta. Entretanto, perderam força, especialmente com o assassinato de Zapata em 1919 e o afastamento de Villa em 1920, seguido de seu assassinato em 1923. Assim, institucionalizou-se o projeto liberal.

Na década de 1930, mais de 80% das terras pertenciam a pouco mais de 10 mil pessoas. Entretanto, as manifestações nacionalistas e as reivindicações sociais encontraram no presidente Lázaro Cárdenas (1934-1940) um representante que expropriou terras e companhias estrangeiras, nacionalizou o petróleo e estimulou a formação de sindicatos camponeses e operários.

Em janeiro de 1994, o México se integrou ao Acordo Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta), associando-se aos Estados Unidos e ao Canadá em um mercado comum.

Também em janeiro de 1994, ocorreu o levante de um grupo armado denominado Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que tomou várias cidades no estado de Chiapas, uma região empobrecida no sudeste do país.

Os zapatistas, como ficaram conhecidos, reivindicavam "pão, saúde, educação, autonomia e paz" para os camponeses da região. Liderados por um homem mascarado, conhecido como "subcomandante Marcos", sublevaram-se contra o governo e denunciaram o Nafta como danoso ao povo mexicano.

No contexto mexicano, chama a atenção a hegemonia do Partido Revolucionário Institucional (PRI), o antigo Partido da Revolução Mexicana, que já governava o país em 1929. O PRI permaneceu à frente do governo por 71 anos, até ser derrotado em 2000, quando Vicente Fox venceu as eleições presidenciais pelo Partido de Ação Nacional (PAN). Nas eleições de 2006, Felipe Calderón, do mesmo partido, elegeu-se presidente com apoio de Fox, derrotando por pouca margem de votos Andrés Manuel López Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD), num clima de acusações de fraudes e contestações. Depois de uma breve ausência, o PRI retornou ao poder com a vitória de seu candidato Peña Nieto, empossado em dezembro de 2012.

LEGENDA: O levante dos zapatistas, em janeiro de 1994, além de derrotar o exército mexicano e tomar a capital do estado de Chiapas, San Cristóbal de las Casas, representou um sério revés à economia de mercado, fundamental para a integração neoliberal mexicana aos Estados Unidos e ao Canadá no quadro do Nafta. Na foto, membros do EZLN em protesto no estado de Chiapas contra a violência e os altos níveis de criminalidade no país. Foto de 2011.

FONTE: Mario Castillo/Reuters/Latinstock

Chile

Em 1970, Salvador Allende (1908-1973), da Unidade Popular, composta de socialistas e comunistas, substituiu o governo de Eduardo Frei, do Partido Democrata Cristão, que se caracterizava por um reformismo limitado. A vitória de Allende foi resultado de um longo período de lutas populares no Chile, de uma elaborada política de união das forças de esquerda e do enfraquecimento do bloco conservador no poder.

A vitória socialista estimulou a mobilização de grandes contingentes da população, com ocupações de terras e de fábricas que pressionavam o governo a avançar além de seus propósitos originais. Em resposta, as forças conservadoras conseguiram se rearticular e conspiravam contra o governo, o que provocou um clima de instabilidade social.

Com o avanço das esquerdas no Chile, os Estados Unidos, sob a presidência de Richard Nixon, sentiram-se ameaçados, uma vez que o governo chileno nacionalizou diversas empresas estadunidenses, especialmente mineradoras. Os Estados Unidos responderam custeando campanhas que desestabilizaram o governo de Allende, fortalecendo o desejo golpista da cúpula militar chilena.

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Em 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas chilenas, sob o comando do general Augusto Pinochet, promoveram um golpe de Estado ao bombardear o palácio presidencial La Moneda, sede do governo, em Santiago, numa ação que levou Allende a resistir até a morte.

O seguinte diálogo entre o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, é revelador sobre a presença da potência capitalista por trás do golpe militar que derrubou o presidente chileno Salvador Allende, democraticamente eleito.

Kissinger: A coisa está se consolidando, e claro, os jornais... sangrando, porque um governo pró-comunista foi derrubado. No período de Eisenhower, seríamos heróis...

Nixon: Bem, nós não... como você sabe, nossas mãos não aparecem nesse caso.

Kissinger: Nós não fizemos. Quero dizer, nós os ajudamos... criamos as melhores condições possíveis.

Diário de Pernambuco. 30 maio 2004. p. B16.

Ao assumir o governo, o general Augusto Pinochet (1915-2006) estabeleceu uma das ditaduras mais violentas da América Latina: mais de 60 mil opositores à ditadura morreram ou desapareceram no Chile nos anos 1970, e 200 mil abandonaram o país por motivos políticos. Na década de 1980, as pressões populares e internacionais sobre a ditadura chilena avolumaram-se, e, em 1987 e 1988, diante da distensão nas relações internacionais e do esgotamento político interno, as pressões pela redemocratização tornaram-se irrefreáveis. Pinochet foi forçado a se afastar da chefia do governo e em 1989 realizaram-se eleições presidenciais, vencidas por Patrício Aylwin Azocar (1918-2016), candidato da frente oposicionista Acordo pela Democracia, denominada Concertación.

Pinochet, contudo, continuou na chefia do Exército, deixando o cargo somente em 1998, quando assumiu uma cadeira de senador vitalício no Parlamento chileno.

Na economia, o país assumiu as receitas neoliberais desde a época da ditadura de Pinochet, crescendo num ritmo bastante rápido, e continuou na mesma situação sob os governos que o sucederam. Os avanços econômicos e a estabilidade financeira fizeram do Chile um dos países mais bem-sucedidos no cenário de globalização da economia capitalista, típica dos anos 1990 em diante.

Pinochet morreu em 2006, no mesmo ano em que a Concertación elegeu o quarto presidente chileno após o fim da ditadura, a socialista Michelle Bachelet. Em 2010, a Concertación perdeu as eleições presidenciais para um candidato de centro-direita, mas em 2013 Michelle Bachelet tornou a ser eleita para a Presidência.

LEGENDA: Salvador Allende (ao centro, de óculos), pouco antes de sua morte, no palácio presidencial de La Moneda, atacado pelos golpistas. Segundo documentos do governo norte-americano, levados a público em 2004, as frases trocadas entre o presidente Nixon e seu secretário de Estado Henry Kissinger mostram interesses e envolvimento dos Estados Unidos no golpe de Estado de 1973, que custou a vida de milhares de chilenos e derrubou o presidente Allende.

FONTE: The Dmitri Baltermants Collection/Corbis/Latinstock

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A América Central

Após a independência, a região central da América, que fizera parte do Vice-Reinado da Nova Espanha no período colonial, passou a se chamar Províncias Unidas da América Central. Em 1838, os interesses das elites locais, associados aos dos Estados Unidos e da Inglaterra, propiciaram a formação de diversos Estados autônomos na região: Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica, alinhados especialmente aos Estados Unidos.

Para manter seus benefícios na região, os estadunidenses promoveram ali diversas intervenções armadas, como no Panamá, em 1903, para garantir o controle da Zona do Canal, e outras que tinham o objetivo de sufocar movimentos guerrilheiros locais, como o do líder nicaraguense Augusto César Sandino (1895-1934), entre 1927 e 1934.

Desprezando o princípio de não intervenção e autodeterminação dos povos, os Estados Unidos mantiveram a região sob seu controle não somente por meios econômicos e diplomáticos. No final dos anos 1970, e principalmente nos anos 1980, os movimentos populares ganharam força na América Central, colocando em risco a supremacia estadunidense. O principal exemplo dessa nova conjuntura foi a Revolução Sandinista, de 1979, na Nicarágua, que derrubou a ditadura de Anastácio Somoza (1925-1980), aliada dos Estados Unidos.

A posição de força dos Estados Unidos, entretanto, nunca foi abandonada, pelo contrário, foi exposta ao mostrar apoio aos ex-soldados somozistas (os "contras"), que provocaram a desorganização interna do país. Apesar disso, em 1990 o governo sandinista, de tendência socialista, promoveu eleições livres com a participação de diversos partidos, seguindo assim uma via diferente do caminho trilhado pela Revolução Cubana. Nessas eleições, o líder sandinista Daniel Ortega foi derrotado por Violeta Chamorro, da União Nacional Opositora (UNO), partido pró-Estados Unidos.

Derrotado nas eleições que se seguiram, Daniel Ortega voltou ao poder ao ser eleito em 2006 e reeleito em 2012.

O Panamá, num amplo movimento nacional pela retomada do controle da Zona do Canal - que desde sua inauguração em 1914 era administrado pelos Estados Unidos -, conseguiu acordos com o governo de Jimmy Carter (1977-1981), pelos quais os estadunidenses se comprometeram a devolver o canal à soberania panamenha até o ano 2000. Ainda antes da retomada da zona do canal, o país foi invadido por forças estadunidenses em 1989, que derrubaram o presidente Manuel Antonio Noriega, acusado de ligações com o tráfico internacional de drogas. Noriega cumpriu 21 anos de prisão nos Estados Unidos e na França por narcotráfico e lavagem de dinheiro. Foi extraditado para o Panamá em dezembro de 2011, para cumprir pena de 20 anos por vários crimes, entre os quais o desaparecimento e assassinato de opositores durante seu governo, que foi de 1983 a 1989.

Outra intervenção estadunidense ocorreu no Haiti, em 1994, dessa vez para reempossar o presidente Jean-Bertrand Aristide, um padre católico democraticamente eleito, mas deposto por uma junta militar. A operação garantiu que Aristide cumprisse seu mandato até ser sucedido por René Préval, que, com as eleições de 2000, devolveu o cargo a Aristide. Contudo, o novo governo de Aristide não conseguiu reverter o quadro de dificuldades econômico-sociais nem a corrupção e a violência entre facções políticas.

Em 2004, Aristide foi deposto e o país mergulhou em confrontos armados, seguidos da intervenção de tropas estadunidenses e francesas, respaldadas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Meses depois coube às tropas brasileiras a liderança das forças de paz da ONU - a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti -, da qual também participaram militares de outros países latino-americanos, como Argentina e Chile. No início de 2006, foram realizadas eleições presidenciais, vencidas por René Préval, enquanto continuavam presentes os efetivos militares da ONU e a expectativa de um desenvolvimento concreto dessa que é a nação mais pobre das Américas e de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do continente. IDH é o indicador usado pela ONU desde os anos 1990 para avaliar o desenvolvimento de uma população com base em dados como o poder de compra das pessoas, a expectativa de vida e a educação, analisados de modo comparativo entre as nações.

LEGENDA: Apesar das derrotas eleitorais dos anos 1990, os sandinistas continuaram como importante força política na Nicarágua. Acima, Daniel Ortega em foto dos anos 1980.

FONTE: Reprodução/Memorial da América Latina, São Paulo, SP.




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LEGENDA: O terremoto que atingiu o Haiti, em janeiro de 2010, causou a morte de mais de 200 mil pessoas e mais de 300 mil feridos, além de milhares de desabrigados. Na foto, de abril de 2010, cerimônia de hasteamento da bandeira haitiana, diante do Palácio Presidencial, na capital Porto Príncipe, parcialmente destruído pelos tremores.

FONTE: Thony Belizaire/Agência France-Presse/Getty Images

No início de 2010, um forte terremoto abalou o Haiti, provocando grande devastação e perda de centenas de milhares de vidas, dificultando ainda mais o processo de reconstrução do país. A essas dificuldades somou-se a busca da normalização política, com a eleição de Michel Martelly em 2011. Em fevereiro de 2016, foi instituído um governo provisório perante o adiamento das eleições presidenciais.

América Latina e os casos emblemáticos da Argentina e da Colômbia

O duradouro estado de guerra na América Central reforçou o contínuo processo de empobrecimento e miséria, bastante comum em toda a América Latina, ativando por décadas a efervescência político-ideológica e o permanente desejo de mudanças. Ao considerar o conjunto formado por América Latina e Caribe, dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), órgão vinculado à ONU, indicavam que, em 2014, o número de pobres em toda a região chegava a 167 milhões de pessoas, dos quais cerca de 71 milhões viviam em extremada pobreza.

Desde as últimas décadas do século XX, a situação de penúria da maioria da população, o desemprego, as taxas inflacionárias recordes que prevaleceram nos anos 1980 e 1990, além do sucateamento do parque industrial (envelhecimento e não reposição de maquinário; atraso tecnológico), exigiam políticas inovadoras para a região. À frente dos governos, subiram partidos reformistas e de centro que substituíram as ditaduras - muitas delas longas e violentas -, por gestões eleitas diretamente em quase todos os países da região.

Muitas vezes, esses novos governos empenharam-se no saneamento econômico interno e na abertura dos mercados nacionais ao capitalismo internacional, assim como na reformulação do papel do Estado na economia. Dessa forma, foram privatizadas empresas estatais e reduzidos os gastos públicos, especialmente aqueles voltados para as políticas sociais, o que possibilitou um relativo sucesso econômico, porém quase sempre distante de uma política de bem-estar social. Em outras situações, porém sem abandonar grande parte dos vínculos com a ordem neoliberal do capitalismo internacional, enfatizaram as políticas sociais de geração de empregos e atendimentos às populações mais pobres, ao mesmo tempo que crescia a concentração de renda e o aumento do poder das megaempresas nacionais ou multinacionais.

Argentina

País que já desfrutou da condição de nação desenvolvida nas primeiras décadas do século XX, a Argentina perdeu pouco a pouco esse status e, durante a segunda metade do século, tornou-se exemplo de instabilidade política e de crescentes dificuldades.

Em 1943, um golpe militar derrubou o governo conservador de Ramón Castillo (1873-1944) e colocou no poder uma junta governativa, da qual era ministro do Trabalho o coronel Juan Domingo Perón (1895-1974). Nessa função, Perón ligou-se ao movimento sindical e passou a adotar medidas que beneficiavam os trabalhadores. Essas atuações, contudo, encontraram forte resistência entre os empresários, que passaram a pressionar o governo militar pela demissão de Perón. No começo de outubro de 1945, Perón foi demitido e preso, mas no dia 17, centenas de milhares de trabalhadores saíram às ruas de Buenos Aires, exigindo sua libertação. Temendo uma rebelião popular, o governo cedeu e libertou o coronel, mais tarde promovido a general.

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LEGENDA: O presidente Juan Perón e sua esposa Eva na sacada da Casa Rosada, sede do governo, em Buenos Aires, em foto de 1950.

FONTE: Associated Press/Glow Images

No ano seguinte, Perón foi eleito presidente da República e aprofundou sua política de benefícios aos trabalhadores. Reeleito em 1952, foi deposto por um golpe militar em 1955, curiosamente apoiado pelos Estados Unidos e pelo Partido Comunista, para o qual Perón não passava de um fascista. Uma vez fora do poder, Perón exilou-se na Espanha.

Apesar de afastado da Argentina, Perón manteve intacta sua popularidade e tornou-se um verdadeiro mito entre os trabalhadores. Dessa forma, após um período no qual se sucederam governos democráticos e golpes de Estado, Perón retornou a Buenos Aires em 1973, ano no qual foi reeleito para a presidência da República. De idade avançada, faleceu no ano seguinte e foi sucedido por sua terceira esposa, a vice-presidente Isabel Perón (Isabelita). Um novo golpe militar depôs Isabelita em 1976, iniciando uma violenta ditadura militar repressiva, marcada por sequestros de opositores, torturas, assassinatos e raptos de filhos de jovens ativistas políticos torturados e mortos. Estima-se em cerca de 30 mil o número de desaparecidos políticos no país.

Foi só com o fracasso na Guerra das Malvinas (1982), contra a Inglaterra, que detém até hoje a posse desse território reivindicado pela Argentina no Atlântico Sul e chamada pelos ingleses de Falklands, que a ditadura militar ruiu, devolvendo o governo aos civis. A redemocratização do país foi efetivada com a eleição de Raul Alfonsin (1983-1989), da União Cívica Radical (UCR), cujo governo não conseguiu conter a crescente crise financeira e inflacionária. Em 1989, foi eleito seu sucessor, o peronista Carlos Menem, que implementou um plano econômico emergencial em 1991. Foi estabelecida a paridade do peso com o dólar, atrelando a moeda nacional à moeda estadunidense, ao mesmo tempo que se adotou uma ampla política de privatizações de empresas estatais, em obediência aos princípios neoliberais em voga nos anos 1990. Com essa política, Menem se reelegeu em 1995.

Nas eleições presidenciais de 1999, o candidato de oposição Fernando De la Rúa, da UCR, venceu o candidato apoiado por Menem. Como novo presidente, De la Rúa adotou várias medidas de austeridade, afetando ainda mais o emprego e ampliando as dificuldades sociais.

Manifestações de protesto, saques e descontrole administrativo e financeiro aprofundaram a crise, levando De la Rúa a renunciar à Presidência em dezembro de 2001. Após sucessivas renúncias dos chefes de Estado indicados para ocupar o cargo, o peronista Eduardo Duhalde assumiu interinamente a presidência até as eleições de 2003. O novo governo argentino estabeleceu o fim do câmbio fixo, mas não obteve apoio significativo interno e muito menos das finanças internacionais.

Em 2003, Duhalde foi substituído pelo também peronista Nestor Kirchner (1950-2010), que procurou combater o caos financeiro e político, tendo alcançado relativo sucesso. Em 2006, por exemplo, a Argentina pagou integralmente sua dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e obteve expressivas taxas de crescimento do PIB, acima de 8%.

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LEGENDA: As Mães e Avós da Praça de Maio em Buenos Aires, 2011.

FONTE: Daniel Garcia/Agência France-Presse

Em 2007, a presidência passou a ser ocupada pela esposa de Nestor, Cristina Kirchner, igualmente peronista. Menos hábil do que o marido, Cristina governou com forte oposição e frequentes manifestações dos exportadores de bens agrícolas contra impostos e juros elevados. Nestor Kirchner morreu em outubro de 2010 e Cristina foi reeleita em 2011.

Em 2012, o movimento das Mães e Avós da Praça de Maio obteve êxito na Justiça ao conseguir a condenação de várias autoridades argentinas a penas que variaram de 5 a 50 anos de prisão por atuações criminosas durante a ditadura militar.

Glossário:

Mães e Avós da Praça de Maio: senhoras cujos filhos foram assassinados e cujos netos foram sequestrados pelos militares durante a ditadura que assolou a Argentina entre 1976 e 1983. A Praça de Maio está situada em Buenos Aires, em frente ao Palácio do Governo, a célebre Casa Rosada.

Fim do glossário.

Cristina Kirchner não foi bem-sucedida em seu segundo mandato e não conseguiu eleger seu candidato nas eleições presidenciais de 2015. Venceu o oposicionista Mauricio Macri, de família tradicional, empresário e ex-presidente do clube de futebol mais popular do país, o Boca Juniors, da coligação de centro-direita Mudemos.

Colômbia

Enquanto a Argentina se caracterizava pela polarização política entre peronistas e não peronistas e pela força do movimento sindical, a Colômbia tem sido associada ao narcotráfico e a um movimento guerrilheiro de longa duração, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), cujas origens remontam a 1948.

O narcotráfico tornou-se um problema para o conjunto de países latino-americanos nos anos 1990 e início do século XXI: seus "produtos", sobretudo a cocaína, movimentam centenas de bilhões de dólares por ano. Parte significativa dessa produção - estima-se que dois terços da produção mundial de cocaína - é originária da Colômbia. Segundo vários observadores, uma parcela dessa riqueza é utilizada para financiar as atividades guerrilheiras das Farc.

No final dos anos 1990, depois de décadas de guerra civil e dezenas de milhares de mortos, o governo colombiano do presidente Andrés Pastrana (1998-2002) iniciou negociações com as Farc, na tentativa de pacificar o país. Sem avanços definitivos nos entendimentos e sob pressão dos Estados Unidos, em 2000 Pastrana pôs em andamento o Plano Colômbia, um programa de combate ao narcotráfico de mais de 1,3 bilhão de dólares.

De 2001 a 2006, com Pastrana e seu sucessor Álvaro Uribe, a nação continuou mergulhada na guerra civil, num impasse em que nem a guerrilha tinha condições de tomar o poder nem as forças governamentais tinham capacidade militar para derrotá-la, apesar da bilionária ajuda estadunidense. Além disso, outro aspecto fundamental do Plano Colômbia, destacado por muitos críticos, era a novidade quanto à ingerência direta dos Estados Unidos na América do Sul especialmente na área amazônica, podendo vir a ser um perigoso precedente com sua ação militar na região. Entre as bases que passaram a ter presença estadunidense no norte da América do Sul estão as de Malambo, Palanquero e Apiay, esta última distante apenas 400 km da fronteira brasileira.

No combate aos guerrilheiros colombianos, o presidente Álvaro Uribe conseguiu a união do bloco conservador do país e reforçou a aliança com os Estados Unidos, o que provocou atritos com governos vizinhos de orientação esquerdista, como o de Hugo Chávez, da Venezuela, Rafael Correa, do Equador e Evo Morales, da Bolívia. Quando deixou o governo, em 2010, sucedido por Juan Manuel dos Santos, o país de pouco menos de 50 milhões de habitantes tinha cerca de 20 milhões de colombianos vivendo na pobreza e 7,7 milhões em estado de indigência, um quadro de grandes desigualdades, propício para os confrontos entre a ordem conservadora e as rebeliões guerrilheiras contestatórias. Em 2014, Juan Manuel dos Santos foi reeleito para mais um mandato presidencial (2014-2018).

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Leituras

Boxe complementar:

Leia, a seguir, um texto de Mauro Santayana, jornalista brasileiro, de 2012, sobre a existência de dois "mundos" em um mesmo país na época em que representantes do governo colombiano e chefes das Farc protagonizaram conversações nas cidades de Oslo, Noruega, e Havana, Cuba, visando pôr fim a um conflito que durava décadas e já havia deixado milhares de mortos.

As duas Colômbias

O país andino e amazônico carrega dura e emocionante história, no confronto secular entre os brancos, ricos e de alma europeia, e seu povo, quase todo mestiço, de face acobreada, seja pela origem amazônica ou pelas alturas frias da grande cordilheira. Até hoje, após tantos séculos de história, não foi possível fundir em um só caráter as duas etnias principais, a dos autóctones e a de origem europeia. Elas, ao longo da formação do país, tornaram-se classes sociais. A maioria absoluta é constituída dos pobres mestiços. Os mestiços acompanham uma ou outra visão de mundo. As Farc, queiram ou não os políticos e intelectuais que têm dirigido o país, são a Colômbia predominantemente mestiça e pobre. A outra Colômbia é senhora das terras médias em que se produz o café - de excelente qualidade - e dos outros recursos nacionais. Grande parte dessa elite participa hoje da principal riqueza exportável da Colômbia, a das drogas. A maconha, que foi a primeira delas, tem hoje participação marginal no comércio ilegal. A cocaína continua sendo o principal produto, tendo superado, segundo as estimativas, a receita da venda ao exterior do café - mas a heroína, refinada do ópio extraído da papoula, começa a crescer em importância econômica.

SANTAYANA, M. A paz difícil e quase tardia. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 4 set. 2012. Disponível em: www.jb.com.br/coisas-da-politica/noticias/2012/09/04/colombia-a-paz-dificil-e-quase-tardia. Acesso em: 24 mar. 2016.

LEGENDA: Na primeira década do século XXI, as Farc ainda mantinham dezenas de reféns para serem trocados por guerrilheiros em poder do Estado. Na foto, Pablo Moncayo, em 2010, de uniforme militar, ao ser libertado depois de 12 anos como refém.

FONTE: Luis Robayo/Agência France-Presse/Getty Images

Fim do complemento.

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Atividades

Retome

1. Entre os diversos casos de emancipação política das antigas colônias localizadas na Ásia, temos a trajetória da Índia.

a) Explique o papel de Gandhi naquele processo e identifique as estratégias usadas por ele e seus seguidores para lutar pela independência.

b) Na atualidade, a Índia faz parte de qual grupo de países? Quais são as características desse grupo?

2. O conflito árabe-israelense constitui, até hoje, fator de desestabilização política e social no Oriente Médio.

a) Quando o Estado de Israel foi criado e de que forma esse evento se relaciona com o desenvolvimento do conflito árabe-israelense?

b) Qual vem sendo a posição do governo dos Estados Unidos ao longo de décadas de conflito árabe-israelense?

3. O que os processos de independência de algumas colônias do continente africano, como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde têm em comum? Por quê?

4. Oficialmente, o apartheid na África do Sul foi abolido em 1994.

a) Explique em que consistia o apartheid na África do Sul, dando exemplos.

b) Qual foi o papel de Nélson Mandela naquele contexto? Explique.

c) Em sua opinião, que consequências um regime de apartheid pode trazer a um país e a seus habitantes?

5. Com base no conteúdo do capítulo, dê um exemplo de como a Guerra Fria influenciou o cenário político na América Latina, em especial ao longo da década de 1970.

Pratique

6. A expressão "Terceiro Mundo" foi criada em 1952 pelo sociólogo Alfred Sauvay. Sobre esse tema, leia o texto a seguir.

O antigo conceito de "Terceiro Mundo" já não se aplica mais à nova economia global multipolar e é necessário um novo enfoque para levar em conta os interesses dos países em desenvolvimento, afirma Robert B. Zoellick, Presidente do Grupo Banco Mundial [instituição financeira internacional que fornece empréstimos para países em desenvolvimento].

Em discurso [...], Zoellick afirmou que a crise econômica global de 2009 e o surgimento de países em desenvolvimento na economia global foram o dobre de finados do antigo conceito de Terceiro Mundo como entidade separada, tal como 1989 foi o fim do Segundo Mundo do Comunismo. [...]

Embora a pobreza e os Estados frágeis tenham persistido como desafios a superar, os países em desenvolvimento cresceram a ponto de representar uma parcela cada vez maior da economia global e proporcionar uma importante fonte de demanda na recuperação da recente crise econômica global. Isso ocorreu não somente na China e na Índia, mas também no Sudeste Asiático, América Latina e Oriente Médio. A África poderá também um dia tornar-se um polo do crescimento global.

Zoellick observou que, portanto, os países em desenvolvimento merecem maior reconhecimento na gestão do sistema global e que as soluções propostas em matéria de regulamentação financeira, mudança climática e gestão de crises devem refletir seus interesses. É importante reconhecer as implicações da nova economia mundial multipolar para a cooperação multilateral e resistir às forças gravitacionais que estão trazendo um mundo de Estados-nação de volta à busca de interesses mais estreitos, disse Zoellick.

O antigo conceito de "Terceiro Mundo" está ultrapassado, afirma Zoellick. The World Bank, 14 abr. 2010. Disponível em: www.worldbank.org/pt/news/press-release/2010/04/14/old-concept-of-third-world-outdated-zoellick-says. Acesso em: 30 abr. 2016.

a) Ao longo da Guerra Fria, o que as expressões "Primeiro Mundo", "Segundo Mundo" e "Terceiro Mundo" abarcavam? Por que é possível dizer que o uso dessas expressões demarca uma regionalização típica da Guerra Fria?

b) Segundo o texto que você acabou de ler, de que maneira os estudiosos de hoje encaram o conceito de "Terceiro Mundo"? Por quê?

c) Que fatores, segundo o texto, foram o "dobre de finados" do antigo conceito de "Terceiro Mundo"? E qual seria o papel dos países em desenvolvimento no mundo de hoje?

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Analise uma fonte primária

7. O trecho a seguir faz parte do comunicado final da Conferência de Bandung, realizada em 1955. Leia-o e faça as atividades propostas.

Os povos da Ásia e da África estão atualmente animados por um sincero desejo de renovar seus contatos culturais e desenvolver novos, no quadro do mundo moderno. Todos os governos participantes confirmaram sua intenção de trabalhar para uma cooperação cultural mais estreita.

A Conferência tomou nota do fato que a existência do colonialismo em numerosas regiões da Ásia e da África, qualquer que seja sua forma, impede a cooperação cultural, assim como o desenvolvimento das culturas nacionais.

Algumas potências coloniais negaram aos povos coloniais os direitos fundamentais no campo da educação e da cultura, o que obstaculiza o desenvolvimento de sua personalidade, assim como as trocas culturais com outros povos asiáticos e africanos.

Isto é particularmente verdadeiro no caso da Tunísia, da Argélia e do Marrocos, onde o direito fundamental dos povos de estudarem sua própria língua e sua própria cultura não está sendo respeitado.

Discriminações semelhantes foram praticadas em certas regiões do continente africano contra outros povos.

A Conferência considera que tal política equivale a um desafio dos direitos fundamentais do homem, atrasa o progresso cultural nesta região e impede a cooperação cultural no plano internacional. A Conferência condena essa negação dos direitos do homem no campo da educação e da cultura em algumas partes da Ásia e da África, através desta e outras formas de opressão cultural.

Em particular, a Conferência condena o racismo como meio de opressão cultural.

A Conferência afro-asiática examinou ansiosamente a questão de paz mundial e de cooperação. Tomou nota com profunda inquietação do estado de tensão internacional e do perigo de guerra atômica [...]

Comunicado final da Conferência de Bandung: 1955. In: MATTOSO, Katia M. de Queirós (Org.). Textos e documentos para o estudo da história contemporânea: 1789-1963. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1977. p. 201-202.

a) Que países organizaram a Conferência de Bandung e o que se pretendia com ela?

b) No trecho selecionado, vemos alguns fatores que explicam por que o colonialismo foi negativo para as regiões da Ásia e da África. Identifique esses fatores e explique-os.

c) Por que foi importante para a Conferência de Bandung condenar o racismo?

Articule passado e presente

8. Neste capítulo, estudamos alguns processos econômicos e políticos dos países do então chamado Terceiro Mundo, na Ásia, na África, no Oriente Médio e na América Latina. Vimos que, na atualidade, grande parte desse grupo de países é considerada "em desenvolvimento". Dentro desse amplo grupo, os países que compõem o Brics se destacam. Para refletir mais sobre o assunto, observe a charge a seguir, publicada por um jornal dos Estados Unidos. Depois, responda ao que se pede.

LEGENDA: Charge publicada no jornal estadunidense The New York Times em 22 de julho de 2014. No letreiro da janela, lê-se "Banco Mundial".

FONTE: HENG/CartoonArts International/The New York Times Syndicate

a) O que está sendo representado na charge? O que a charge revela a respeito do modo como a imprensa internacional enxerga o Brics na economia global?

b) A charge foi produzida em 2014. Será que hoje o Brics ainda continua na posição de destaque na economia global ou existe algum outro grupo de países que vem crescendo no cenário econômico internacional? Pesquise em revistas, jornais impressos e sites para descobrir e, em seguida, anote suas descobertas.

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CAPÍTULO 12: O fim da Guerra Fria e a Nova Ordem Mundial em construção

LEGENDA: Na imagem, pessoas tentam encontrar produtos com grandes descontos em loja de departamentos nos Estados Unidos. Foto de 2015. Naquele país, a última sexta-feira de novembro, após o feriado de Ação de Graças, é uma data em que o comércio em geral oferece grandes descontos para todos os tipos de produtos. Nesse dia, as atividades do comércio crescem muito, bem como o consumismo.

FONTE: Trevor Collens/Agência France-Presse

Com a desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se tornaram uma nação mundialmente hegemônica, um modelo de economia e sociedade. Mas será possível que todas as pessoas do mundo vivam e consumam como os estadunidenses? Como sustentar um modelo de crescimento infinito num mundo de recursos finitos? E qual é a relação entre esse modelo e as desigualdades sociais?

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1. Os desafios da globalização

A mundialização capitalista foi acompanhada pela formação de grandes blocos de nações hegemônicas e de grandes conglomerados empresariais. Nesse processo, o gerenciamento econômico e as atuações governamentais foram atrelados a interesses acima dos nacionais, subordinando a política a uma economia mais ampla.

Com a globalização, o que o futuro reservou para os Estados nacionais do ponto de vista político? As políticas públicas devem priorizar as questões sociais, subordinando os interesses do mercado ao bem-estar de todos? Isso seria barreira ou motivação para a dinamização econômica? E seu inverso: as políticas públicas deveriam ser direcionadas para o desenvolvimento da livre concorrência, em favor do mercado prioritariamente? Nesse caso, seus resultados beneficiariam toda a sociedade?

O fim da Guerra Fria

A década de 1970 caracterizou-se por acordos bilaterais entre os Estados Unidos e a União Soviética com o objetivo de limitar os riscos de uma guerra nuclear e amenizar conflitos. Foi a época da détente (em português, "distensão"), destacando-se os acordos da série Salt (Strategic Arms Limitations Talks - Conversações sobre Limitações de Armas Estratégicas), entre 1972 e 1979, que passaram a controlar o arsenal nuclear das duas superpotências.

No início da década de 1980, porém, o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan (que ocupou o cargo de 1981 até 1989) retomou a "política da intimidação", acentuando a corrida armamentista com o projeto Guerra nas Estrelas. A Europa, temendo transformar-se em palco de uma guerra nuclear, pressionou a retomada dos encontros de cúpula entre os Estados Unidos e a União Soviética.

LEGENDA: Alemães comemoram a reunificação do país em frente ao portão de Brandemburgo, em Berlim, outubro de 1990.

FONTE: Gilles Leimdorfer/Agência France-Presse

Boxe complementar:

Veja abaixo os períodos e os lugares em que se passaram os principais eventos do capítulo.

Fim do complemento.



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Onde e quando

LEGENDA: Linha do tempo esquemática. O espaço entre as datas não é proporcional ao intervalo de tempo.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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Enquanto isso, a partir de 1985 o dirigente soviético Mikhail Gorbatchev estabelecia em seu país uma política de reestruturação econômica (perestroika, em russo) e abertura democrática (glasnost, que significa "transparência"), que remodelaram não só o bloco socialista (levando suas estruturas ao colapso), mas também as relações internacionais.

Em novembro de 1987, Reagan e Gorbatchev, abrindo uma nova rodada de negociações sobre desarmamento, assinaram um acordo para a eliminação dos mísseis de médio alcance na Europa e na Ásia. Em janeiro de 1988, o governo soviético anunciou o início da retirada de suas tropas do Afeganistão. No ano seguinte, a abertura política e os efeitos da perestroika começaram a desmontar o bloco socialista, apressando o fim do confronto com os Estados Unidos.

No início dos anos 1990, aceleraram-se acordos de desarmamento nuclear, com o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start); em 1991, o Conselho de Assistência Econômica Mútua (Comecon), do qual faziam parte União Soviética, Alemanha Oriental, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Romênia e Bulgária, e o Pacto de Varsóvia foram dissolvidos. Simultaneamente, tiveram início gestões para a remodelação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Em dezembro de 1991, a União Soviética se desintegrou, dando lugar à Comunidade de Estados Independentes (CEI), tendo a Rússia (Federação Russa) como principal herdeira da ex-superpotência em termos políticos, geopolíticos e econômicos.

Os Estados Unidos dos anos 1960 ao século XXI

Após o assassinato do presidente John Kennedy (1917-1963) e os dois mandatos de Lyndon Johnson (1908-1973) logo em seguida, ambos do Partido Democrata, o governo dos Estados Unidos voltou às mãos do Partido Republicano, que elegeu e reelegeu Richard Nixon (1913-1994) em 1968 e 1972, respectivamente.

Na política externa, Nixon buscou a reaproximação com os países comunistas e iniciou mais um período de distensão, com a ajuda do secretário de Estado Henry Kissinger. Assim, em 1972, assinou com os soviéticos o acordo Salt-1, que limitava o uso de armas estratégicas, e viajou até a China para encontrar-se com Mao Tsé-tung. Com essa política, o governo estadunidense aproximava-se de uma potência rival e vizinha dos soviéticos. Já quanto à longa Guerra do Vietnã, o governo Nixon enfrentou a pressão crescente da opinião pública dos Estados Unidos favorável ao fim da guerra. Isso levou o presidente a retirar os soldados estadunidenses do conflito, oferecendo, em contrapartida, armamentos a seu aliado, o governo do Vietnã do Sul - política denominada de "vietnamização da guerra".

Ainda na política externa, apesar da aproximação diplomática com os países comunistas, os Estados Unidos não abriam mãos de sua supremacia sobre os países subdesenvolvidos. Além da questão do Vietnã, participaram oficiosamente do apoio ao golpe de 1964 no Brasil e à derrubada, em 1973, do presidente chileno Salvador Allende (1908-1973), de tendência socialista,

Comunidade dos Estados Independentes - 1991

LEGENDA: Após o fim da União Soviética, foi constituída a Comunidade de Estados Independentes, com a Federação Russa à frente. Em 1997, a capital do Casaquistão passou a ser Astana.

FONTE: Adaptado de: DUFOR, Annie (Ed.). Grand Atlas d'aujourd'hui. Paris: Hachette, 2000. p. 56.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

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cujas reformas ameaçavam os interesses econômicos dos EUA. Após um golpe sangrento, instaurou-se no Chile a ditadura militar de Augusto Pinochet (1915-2006).

Na economia, o final do governo Nixon foi de dificuldades crescentes, decorrentes principalmente da elevação dos preços do petróleo, determinada desde 1973 pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), dominada pelos países árabes.

Na política, o governo Nixon envolveu-se no escândalo Watergate, iniciado em 1972. Membros do Partido Republicano - ao qual Nixon pertencia - foram surpreendidos tentando instalar um sistema de escuta para espionar os escritórios do rival Partido Democrata, no edifício Watergate, em Washington, a quatro meses das eleições presidenciais.

Denunciado pelo jornal Washington Post, o caso atingiu Nixon e mobilizou toda a imprensa e a opinião pública dos Estados Unidos. Comprovado seu envolvimento, o presidente foi obrigado a renunciar para evitar o impeachment (impedimento de governar). A presidência foi então ocupada pelo vice-presidente Gerald Ford (1913-2006), que permaneceu no cargo de 1974 até 1976.

Eleito presidente pelo Partido Democrata em 1977 e exercendo o cargo até 1980, Jimmy Carter fez acordos com os soviéticos, assinou o Salt-2 (1979) e adotou uma política de defesa dos direitos humanos. Sua política internacional estimulou a redemocratização de países capitalistas governados por ditaduras e intensificou as críticas às limitações das liberdades públicas nos países comunistas.

Carter mediou a Conferência de Camp David, em 1978, que deu origem a um tratado de paz entre o Egito, governado por Anuar Sadat (1918-1981), e Israel, dirigido por Menachem Begin (19131992). Com esse tratado, estabeleceram-se relações diplomáticas entre os dois países, que estavam em guerra havia anos.

No final do governo Carter, emergiram diversas crises internacionais que arruinaram o prestígio da administração democrata. No Irã, em 1979, o xá Reza Pahlevi (1919-1980), tradicional aliado dos Estados Unidos, foi derrubado por uma revolução islâmica. O novo líder do país, o aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), passou a pregar um nacionalismo religioso com posições radicalmente antiestadunidenses, levando a uma postura de enfrentamento com os Estados Unidos.

Na Nicarágua, também em 1979, a Revolução Sandinista, de inspiração socialista, acabou com o longo período de dominação da família Somoza, aliada histórica dos Estados Unidos.

Candidato à reeleição em 1980, Carter foi derrotado por Ronald Reagan (1911-2004). Tinha início um novo período de predomínio do Partido Republicano. Reagan permaneceu no poder por oito anos, durante os quais fez do neoliberalismo a base de sua política econômica.

Ao mesmo tempo, deu início a um programa militar conhecido como Guerra nas Estrelas, sofisticado projeto bélico que visava proteger os Estados Unidos contra possíveis ataques inimigos com base na formação de um "escudo" de mísseis. Após sofrer pressões internas e externas, o projeto não chegou a ser implantado.

LEGENDA: Jimmy Carter, foto de 1979. Conhecido por defender os direitos humanos durante sua gestão.

FONTE: Diana Walker/Time Life Pictures/Getty Images

LEGENDA: Protesto contra a Guerra do Vietnã em Washington, nos Estados Unidos, em 1967.

FONTE: Leif Skoogfros/Corbis/Latinstock

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O desenvolvimento econômico interno ocorrido durante o governo de Reagan garantiu-lhe popularidade e permitiu que se reelegesse em 1984. Por causa das pressões europeias e da política instaurada pelo novo governante soviético, Mikhail Gorbatchev, o governo estadunidense reverteu a política de intimidação ao bloco socialista, retomando a distensão com a União Soviética. Em 1987, foram assinados acordos de desarmamento nuclear, ratificados na viagem do presidente dos Estados Unidos à União Soviética no ano seguinte.

Internamente, o país adotou uma política de corte de gastos públicos, principalmente na área de bem-estar social, e de desregulamentação da economia, provocando o desemprego e a concentração da renda pelos mais ricos, dentro dos princípios do neoliberalismo.

LEGENDA: Soldados estadunidenses sobre um tanque durante a Guerra do Golfo (1991).

O sucessor de Reagan foi George Herbert Walker Bush, igualmente eleito pelo Partido Republicano, com um mandato de 1989 a 1993. Bush deu continuidade à política de entendimento com Gorbatchev, em meio à desmontagem dos regimes comunistas do Leste Europeu e ao desaparecimento da União Soviética, no início da década de 1990.

Reafirmando sua supremacia internacional, os Estados Unidos comandaram uma coalizão internacional de cerca de 30 países e, no início de 1991, desencadearam a Guerra do Golfo contra o Iraque. O conflito decorreu da invasão do território do Kuwait, em 1990, por tropas do Iraque, governado por Saddam Hussein (1937-2006). Durou cerca de 40 dias e terminou com a derrota do Iraque, que sofreu grandes perdas materiais e humanas.

Nas eleições de 1992, Bush foi derrotado pelo candidato do Partido Democrata, Bill Clinton, que assumiu o governo em janeiro de 1993. Com Clinton, a economia dos Estados Unidos alcançou sucessivos índices de crescimento, o que favoreceu sua reeleição em 1996.

Nas eleições presidenciais de 2000, o partido de Clinton indicou Albert Arnold Al Gore para concorrer com o candidato do Partido Republicano, George Walker Bush, filho do ex-presidente Bush. Numa apuração de votos repleta de irregularidades, com várias recontagens, George W. Bush foi declarado vencedor.

LEGENDA: Rua de Bagdá após bombardeio do exército dos Estados Unidos durante a Guerra do Golfo, no Iraque, em 1991.

FONTE: Arquivo/Agência France-Presse

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Um dia que mudou o mundo

No dia 11 de setembro de 2001, terroristas islâmicos suicidas destruíram completamente dois grandes edifícios comerciais - as torres do World Trade Center - em Nova York e parte do Pentágono, nos arredores de Washington. Os ataques, tidos como os maiores sofridos até então pelos Estados Unidos em seu próprio território, foram realizados por meio de aviões comerciais sequestrados e se voltaram contra os símbolos do poderio econômico e militar dos Estados Unidos, deixando milhares de mortos e uma forte sensação de vulnerabilidade no país mais poderoso do mundo.

A reação do governo de George W. Bush levou à primeira guerra declarada do século XXI, tendo como alvo um grupo terrorista fixado no Afeganistão (a Al-Qaeda, responsabilizada pelos ataques de 11 de setembro) e apoiado pelo Talibã, grupo radical islâmico que exercia poder naquele país.

O período de "guerra ao terror", iniciado em 2001, resultou na derrubada do governo Talibã no Afeganistão (veja a seção Leituras, na página 239) e implantou nos Estados Unidos várias medidas policiais destinadas a evitar novos atentados terroristas. Um desdobramento disso foi a adoção da Doutrina Bush, sustentada na possibilidade de ação militar unilateral dos Estados Unidos em qualquer país do mundo, acima de leis e políticas internacionais, e sempre sob a justificativa de "guerra ao terror".

Segundo a Doutrina Bush, a ameaça estaria nos países que formavam o "eixo do mal" - Iraque, Irã e Coreia do Norte -, que, segundo Bush, fabricavam armas de destruição em massa e patrocinavam o terrorismo internacional. A partir de então, os Estados Unidos adotaram medidas agressivas e de endurecimento contra os rivais, como a transferência de prisioneiros de guerra do Afeganistão para a base estadunidense de Guantánamo, em Cuba (onde seriam vítimas de tortura, como denunciou a imprensa a partir de 2004), e ameaças de guerra, especialmente contra o Iraque.

Muralhas

Quando os chineses iniciaram a Grande Muralha, em 214 a.C., e Adriano contratou seu sistema defensivo no norte da Inglaterra, 300 anos depois, eles estavam reagindo precisamente ao mesmo instinto que está movendo a política norte-americana agora - manter distantes os bárbaros hostis. O Escudo de Defesa Antimísseis é, em termos militares, uma muralha, embora excepcionalmente complexa.

Mas as muralhas têm o hábito de ser vencidas ou contornadas, como qualquer historiador da Linha Maginot poderia confirmar, e esta muralha pode ser evitada com bombas nucleares de baixa potência em maletas ou por alguém numa lancha, disparando em volta da Ilha de Manhattan. Portanto, defesa não é, evidentemente, a história toda, e entre as razões que motivaram Bush é preciso lembrar que sua muralha vai custar entre US$ 60 bilhões e US$ 100 bilhões, a maior parte deles gasta com as indústrias de defesa.

PORTER, Henry. Falando com as paredes: ao querer afastar os "bárbaros", os EUA se isolam do mundo. The Observer. Carta Capital. Ano VII, n. 147, 23 maio 2001. p. 40.

Glossário:

Linha Maginot: linha de fortificações na fronteira francesa da Suíça até a Bélgica, visando defender-se da Alemanha. Construída nos anos 1930 e idealizada pelo político André Maginot, de nada serviu para conter o avanço nazista.

Fim do glossário.

LEGENDA: Na foto, as torres gêmeas do World Trade Center atingidas por dois aviões pilotados por terroristas islâmicos em 11 de setembro de 2001.

FONTE: Getty Images/www.gettyimages.com

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Considerado grande inimigo dos Estados Unidos, o Iraque, governado por Saddam Hussein, detinha em 2003 a segunda maior reserva petrolífera em exploração do mundo. Diante dos ataques iminentes dos estadunidenses, o preço do petróleo disparou.

Em março de 2003, sem o apoio da comunidade internacional e do Conselho de Segurança da ONU, mas com o auxílio de forças britânicas, os Estados Unidos deram início à invasão do Iraque. O uso de armamentos sofisticados e de tecnologias de última geração provocou muitas mortes e destruição em larga escala.

Boxe complementar:

A construção da crise no Afeganistão

Em razão de sua posição geográfica estratégica, o Afeganistão sempre foi área sujeita a invasões e disputas. Em 1973, o ex-primeiro-ministro Daoud Khan (1909-1978), chefiou um golpe de Estado que derrubou o rei Zahir Shah (1914-2007) e assumiu o poder. Khan proclamou a República, mas não conseguiu apaziguar as lutas de facções rivais. Em abril de 1978, o Partido Democrático Popular do Afeganistão, liderado por Mohamed Taraki (1917-1979), derrubou Daoud, que foi assassinado. Instalou-se então um regime de partido único inspirado na União Soviética e sujeito à crescente oposição de grupos islâmicos apoiados pelo Paquistão e pelo Irã e armados pelos Estados Unidos.

As lutas entre as facções políticas, étnicas e religiosas culminaram no fuzilamento de Taraki, em 1979, seguido da invasão de tropas da União Soviética. Como parte da política de reformas de Mikhail Gorbatchev, os soviéticos retiraram-se do país dez anos mais tarde, mas mantiveram o apoio (financeiro e bélico) ao governo de Mohammad Najibullahn (1947-1996). Entretanto, este foi obrigado a renunciar em 1992, quando grupos guerrilheiros tomaram Cabul, a capital do país.

Seguiram-se confrontos entre as facções políticas e islâmicas rivais, destacando-se o Talibã, milícia que efetivou sua supremacia no final da década de 1990, impondo ao país rígidas leis muçulmanas.

Em 1998, os Estados Unidos dispararam mísseis contra alvos no Afeganistão, sob a acusação de serem centros de apoio a ações terroristas internacionais, especialmente da Al-Qaeda, organização liderada por Osama bin Laden (1957-2011), milionário e fundamentalista islâmico de origem saudita que migrara para o Afeganistão, onde obtivera ajuda militar e financeira dos Estados Unidos no combate aos soviéticos durante a década de 1980.

Bin Laden fundou a Al-Qaeda (em português, "A Base") em 1990 e, no final dessa década, controlava uma ampla rede de ações em diversos países contra a "influência ocidental" e a interferência dos Estados Unidos no mundo islâmico.

Após os atentados realizados em Nova York e Washington em 11 de setembro de 2001, Osama bin Laden foi acusado pelas autoridades dos Estados Unidos de ser o articulador da ação, que deixou milhares de mortos em solo estadunidense. O presidente Bush declarou guerra aos terroristas e aos países que os abrigassem, exigindo do governo afegão a prisão e a entrega de Bin Laden. O desdobramento da crise foi o bombardeio do Afeganistão pelos Estados Unidos e a derrubada do Talibã. Osama bin Laden foi morto em maio de 2011, numa operação militar dos Estados Unidos no Paquistão.

Em dezembro de 2014, os Estados Unidos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) deram por encerradas suas operações militares no Afeganistão.

Bush e Bin Laden em anúncio criado em 2004 por agência de publicidade para uma revista de grande circulação no Brasil. O anúncio representa o rosto desses líderes desenhado com palavras significativas. Observe.

FONTE: Reprodução/Gentilmente cedido por Almapbbdo Publicidade e Comunicações Ltda.

Fim do complemento.

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No final de 2004, inspetores de armas dos Estados Unidos apresentaram ao Senado um relatório que denunciava a existência de armas proibidas no Iraque, qualificadas para destruição em massa. Depois de meses de investigação, nenhum vestígio foi encontrado do suposto arsenal, derrubando, assim, o principal pretexto para a guerra contra o Iraque.

Contudo, reeleito presidente para mais quatro anos, Bush manifestou sua intenção de aprofundar a "guerra contra o terror" e intensificar a atuação no Iraque, fazendo também ameaças a países rivais, especialmente o Irã, a Coreia do Norte e, posteriormente, Cuba, considerados pelas autoridades estadunidenses de então favoráveis ao terror e participantes do denominado "eixo do mal".

Leituras

Boxe complementar:

Os bombardeios aéreos e os ataques das tropas que avançaram até chegar à capital, Bagdá, em abril de 2003, justificaram a afirmação de Ives Gandra Martins, jurista e professor, de que, para enfrentar o "terrorismo às escuras", de Bin Laden, Bush respondeu com o "terrorismo oficial", só diferenciados em dimensão: "o primeiro destruiu duas torres, e o segundo, um país inteiro". Leia um trecho do artigo do jurista.

Terrorismo

[...] O ideal das nações, de uma paz universal representada pela ONU, foi maculado pela declaração de uma guerra que a comunidade mundial (mais de 80%) condenava e que as nações do mundo não autorizaram.

A esperança de que o século XXI, como dizia Norberto Bobbio em Era dos direitos, descortinasse um tempo em que a enunciação dos direitos (século XX) fosse seguida de suas garantias foi definitivamente tisnada, visto que não só a garantia de que cada nação deve escolher seu próprio destino deixou de existir, como, o que é pior, os direitos foram definitivamente sepultados por um país que é o mais forte em armas de destruição em massa e o mais fraco no respeito aos povos e nações do mundo.

Até a figura tirânica desse outro genocida, Saddam Hussein, passou a segundo plano porque o minúsculo e poderoso presidente dos Estados Unidos conseguiu demonstrar ser mais eficiente em matar civis do que o déspota iraquiano.[...]

MARTINS, Ives Gandra. O terrorismo oficial de Bush. Folha de S.Paulo. São Paulo, 9 abr. 2003. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0904200309.htm Acesso em: 5 abr. 2016.

LEGENDA: Um menino iraquiano cobre o rosto com as mãos enquanto chora diante da destruição de um bairro em consequência de um ataque aéreo dos Estados Unidos. Fallujah, Iraque, 2004.

FONTE: Fares Dlimi/Agência France-Presse

Fim do complemento.

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Para saber mais

Boxe complementar:

Guerras, extremismo e o Estado Islâmico

Em meio às guerras, o intervencionismo internacional acompanhou e teve papel importante quanto ao crescimento dos confrontos entre grupos islâmicos extremistas. Entre esses grupos, o que mais ganhou força foi o sunita extremista liderado pelo jordaniano Abu al-Zarqawi, morto em 2006, sucedido na liderança por Abu Ayyub al-Masri e Abu Omar al-Baghdadi até 2010, quando também foram mortos, passando o comando a Abu Bakr al-Baghdadi. Atuante em seguidos atentados, o grupo atraiu muitos seguidores, especialmente de lideranças militares do Iraque, que viam a guerra da Síria como mais um campo de batalha e exposição de sua visão do mundo.

Em julho de 2014, esses sunitas radicais proclamaram a criação de um novo califado, com sede em Raqqa, denominado Estado Islâmico (EI). Visavam estabelecer no Oriente Médio uma ordem política islâmica e unitária, como aquela que surgira no século VII, onde é hoje a Arábia Saudita. Para o EI, os xiitas, que representam perto de 10% da população muçulmana, são considerados infiéis e inimigos, assim como outros grupos minoritários de outras etnias, bem como as potências intervencionistas na região.

O EI ganhou notoriedade internacional pela violência com que executa seus inimigos (degola e crucificação) e pela arregimentação internacional de seguidores. No domínio de diversas regiões entre Iraque e Síria, o EI chegou a controlar áreas petrolíferas, com as quais obtinha os recursos para compra de equipamentos militares e armas. Financiamentos de Estados sunitas na luta contra o Irã, xiita, e recursos obtidos por sequestros eram outras formas de arrecadação do EI. Em 2015 e 2016, membros do EI destruíram museus e peças arqueológicas de antigas civilizações da região, como a dos assírios, e foram responsáveis por diversos atentados terroristas, como a derrubada de um avião russo no Egito e atentados em Paris, Bruxelas, além de apoiar atuações no continente africano de grupos extremistas como o Boku Haram. Governos ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, e também a Rússia, têm buscado conter a expansão do EI com bombardeios localizados, no sentido de minar o poderio das forças armadas do declarado califado.

Fim do complemento.

Preso em 2004, Saddam Hussein foi julgado, condenado à morte e executado por enforcamento em 2006, no Iraque.

Em dezembro de 2011, a guerra do Iraque foi oficialmente encerrada a um custo estimado em torno de 1 trilhão de dólares, um saldo de mais de 4 mil soldados estadunidenses e mais de 100 mil civis iraquianos mortos, além de dezenas de milhares de mutilados. A destruição do país servia de combustível para os conflitos entre facções iraquianas rivais, especialmente entre xiitas e sunitas, com seguidos atentados e inúmeras vítimas.

O governo de Barack Obama

Nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, em 2008 os estadunidenses elegeram o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos. A vitória do democrata Barack Obama foi uma surpresa em um país notoriamente racista.

Quando assumiu o cargo em 2009, além de herdar os efeitos desastrosos da política internacional de seu antecessor, Obama também teve que enfrentar uma grave crise econômica iniciada em 2008, último ano do governo Bush, considerada a mais profunda crise econômica do sistema capitalista desde 1929. O novo governo norte-americano tentou reverter seus efeitos quanto às falências, quedas produtivas e desemprego, praticando um intervencionismo estatal na economia com a liberação de trilhões de dólares para empresas e setores em dificuldades.

Reeleito em 2012, em seu discurso de posse Barack Obama reforçou suas promessas de recuperar a economia, adotar medidas diante das mudanças climáticas e buscar a paz, via diálogo, com outras nações. Entre as questões mais importantes estavam o desemprego (cerca de 12 milhões de desempregados em dezembro de 2012), corte de gastos e redução do déficit para equilibrar as contas públicas. Destacava-se também a concorrência chinesa, os atritos com o Irã e a retirada do exército estadunidense do Afeganistão, entre outras questões. Entre essas, ganhou repercussão internacional a divulgação de informações pelo ex-técnico da Agência de Segurança Nacional (NSA), Edward Snowden. Suas denúncias revelaram a espionagem da NSA via gravações de dados dos acessos na internet e ligações telefônicas de milhões de pessoas, empresas, órgãos governa - mentais e das maiores autoridades de países como Brasil, Alemanha, França, México, Vaticano, etc. Com ampla divulgação, a atuação dos Estados Unidos recebeu condenação pública generalizada de governantes e da própria ONU.



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A União Soviética de 1964 ao século XXI

Em 1964, com a queda de Nikita Kruschev (1894-1971), ascendeu ao poder Leonid Brejnev (1906-1982), cujo governo retomou internamente o centralismo político-administrativo, reprimindo as dissidências. Externamente, fez uso da força para impor o monolitismo do bloco comunista.

Governando até 1982, a retomada do centralismo estabelecida por Brejnev reforçou a máquina burocrática, afetando profundamente a produtividade soviética. A União Soviética e seus aliados perderam competitividade tecnológica em relação ao Ocidente, muito mais acentuada nos setores civis do que na indústria bélica. Às dissidências respondia-se com velhos métodos stalinistas, como medidas de força, prisões e trabalhos forçados. Muitos desses dissidentes ficaram famosos no Ocidente, como o físico nuclear Andrei Sakharov (1921-1989), prêmio Nobel da Paz de 1975, e o literato Alexander Solzhenitsyn (1918-2008), prêmio Nobel de literatura em 1970.

Brejnev enfrentou a deterioração das relações com a China e sufocou a liberalização do regime socialista da Tchecoslováquia, invadindo-a em 1968 com as forças do Pacto de Varsóvia.

A Primavera de Praga (1968)

Em 1968, a Tchecoslováquia era governada por Alexander Dubcek (1921-1992), que desferiu reformas voltadas para um "socialismo humanizado", estimulando a criatividade artística e científica. Esse movimento ficou conhecido como Primavera de Praga. As lideranças stalinistas foram afastadas e procedeu-se à descentralização e à liberalização do sistema, com amplo apoio de operários, intelectuais e estudantes.

LEGENDA: Em agosto de 1968, os tanques soviéticos ocuparam Praga, enterrando o reformismo em curso na Tchecoslováquia.

FONTE: Getty Images/www.gettyimages.com

O reformismo da Tchecoslováquia, calcado na autonomia, esbarrava, entretanto, na conjuntura soviética e internacional do final da década de 1960. Brejnev revertia a desestalinização de Kruschev e, no plano externo, experimentava o endurecimento da relação com os Estados Unidos. Incapaz de dialogar com o reformismo de Dubcek, o governo soviético ordenou a invasão da Tchecoslováquia por tropas do Pacto de Varsóvia, em 20 de agosto de 1968. Os dirigentes do movimento, tendo à frente Dubcek, foram presos e enviados a Moscou e, mais tarde, expulsos do Partido Comunista da Tchecoslováquia.

O final do governo Brejnev

As medidas de força, como a repressão à Primavera de Praga, não eliminaram as crescentes críticas ao centralismo soviético. Pelo contrário, em 1976, os partidos comunistas da Europa Ocidental manifestaram sua oposição ao dirigismo e à tutela ideológica dos soviéticos e divulgaram um documento por meio do qual defendiam a passagem do socialismo para o capitalismo de maneira autônoma e independente do Partido Comunista da União Soviética. Era a oficialização do eurocomunismo.

Na Polônia, já na década de 1980, as pressões pela participação do operariado no governo lideradas pelo Sindicato Solidariedade, dirigido por Lech Walesa, reativaram a questão do socialismo democrático. Ganhando cada vez mais prestígio nacional e internacional, a atividade de Walesa e do Solidariedade acirrou as dificuldades nas relações Leste-Oeste.

Comparativamente às décadas de 1950 e 1960, a perda do ritmo produtivo soviético - com diminuição das taxas de crescimento industrial e agrícola e da produtividade do trabalho, da renda per capita e do Produto Interno Bruto (PIB) - foi agravada pela queda da participação soviética no comércio mundial. O país deixou de exportar principalmente maquinário, meios de transporte e equipamentos, como fazia nos anos 1960, para se concentrar cada vez mais na exportação de petróleo e gás (matérias-primas, portanto), os quais representavam, em 1985, perto de 53% das exportações soviéticas.

Na mesma época, 60% de suas importações eram basicamente de máquinas e produtos industrializados. O país procurava com isso satisfazer suas necessidades mais prementes, segundo as determinações da nomenklatura (a alta burocracia soviética). Resolvia problemas localizados e obtinha produtos importados e receitas imediatas, sem atacar com profundidade os impasses produtivos, o que tornava cada vez mais urgente uma alteração de rumos.

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Taxas de crescimento anual médio da União Soviética (1950-1985) (em porcentagem)

FONTE: Citado em: SEGRILLO, Ângelo. O declínio da União Soviética. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 259.

FONTE: Cassiano Röda/Arquivo da editora

Com a morte de Brejnev, em 1982, aumentaram as dificuldades econômicas soviéticas, os entraves burocráticos ao desenvolvimento tecnológico e as dissidências internas, enquanto a ofensiva anticomunista do governo Reagan ganhava fôlego.

Em 1985, ascendeu ao poder o dirigente Mikhail Gorbatchev, que seria responsável por profundas alterações na política da União Soviética.

O governo de Gorbatchev (1985-1991)

O novo governo lançou, ainda em 1985, um amplo projeto de transformações, sintetizado nas expressões perestroika e glasnost. O plano previa mudanças na economia, na sociedade e até mesmo no socialismo, por meio da dinamização da produção e da democratização das estruturas políticas. No âmbito externo, Gorbatchev propôs a gradual desativação das armas nucleares até o ano 2000.

Em 1988, a União Soviética iniciou sua retirada do Afeganistão, finalizada no ano seguinte, depois de oito anos de árduo e desastroso enfrentamento contra a guerrilha apoiada por estados vizinhos e financiada pelos Estados Unidos. Começava na União Soviética uma fase de distensão profunda, a mais ampla desde o advento da Guerra Fria, o que indicava uma política de desaceleração da corrida armamentista, pelo menos no bloco do Leste.

No plano interno, o ponto alto na política de Gorbatchev foi o fim do monopólio do poder pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o que possibilitou o multipartidarismo e a definição de eleições diretas em todos os níveis para 1994. Ao mesmo tempo, nas 15 repúblicas que formavam a União Soviética, tais mudanças políticas estimularam movimentos nacionalistas, que lutavam pelas respectivas independências, colocando em risco a própria existência da unidade socialista estabelecida por meio de métodos totalitários depois de 1945.

No plano econômico, ainda em 1990 a perestroika foi implantada para dinamizar a produção e o desenvolvimento. Assim, foram legalizadas as funções de artesãos e comerciantes e restabeleceu-se a propriedade privada no campo, embora com limites. Também se efetivou a abertura do país às empresas estrangeiras, facilitando a concessão de licenças.

LEGENDA: As estruturas econômicas e políticas da União Soviética e dos países do Leste Europeu eram tão rígidas que as reformas de Gorbatchev provocaram sua implosão. Na foto, de 1987, o líder soviético é recebido com entusiasmo pelos cidadãos de Praga.

FONTE: Thierry Orban/Sygma/Corbis/Latinstock

243

As mudanças no Leste Europeu

Nos demais países do bloco socialista, as mudanças iniciadas pela União Soviética foram rapidamente assimiladas, ganhando dinamismo próprio e mudando a face do Leste Europeu.

Alguns países do Leste Europeu em 1990

FONTE: Adaptado de: DUBY, Georges. Grand atlas historique. Paris: Larousse, 2006.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

LEGENDA: Guarda de fronteira da Alemanha Oriental cumprimenta uma mulher da Alemanha Ocidental através de um buraco no Muro de Berlim durante o período de reunificação (1990).

FONTE: Peter Turnley/Corbis/Latinstock

1. Na Alemanha Oriental (antiga República Democrática Alemã), Erich Honecker (1912-1994) foi destituído em outubro de 1989, e em novembro caía o Muro de Berlim, tendo início a reunificação com a Alemanha Ocidental, concluída em outubro de 1990.

2. Na Polônia, em abril de 1989 foi legalizado o Solidariedade, sindicato independente, e, em junho, o país passou a ser o primeiro do Leste Europeu a ter um governo de maioria não comunista. No ano seguinte, as reformas econômicas e democráticas avançaram e, em, dezembro, o líder sindical Lech Walesa venceu as eleições presidenciais.

3. Na Tchecoslováquia, as manifestações pela democracia levaram à renúncia do dirigente Milos Jakes, acompanhada da abertura das fronteiras, do pluripartidarismo e de eleições livres, passando o governo a Alexander Dubcek (1921-1992) e Vaclav Havel (1936-2011). Era a Revolução de Veludo, assim chamada devido à forma pacífica das transformações. Em 1991, teve início a privatização da economia e, em janeiro de 1993, o país foi dividido em duas repúblicas, a República Tcheca e a Eslováquia.

4. Na Hungria, em 1989, adotou-se o multipartidarismo, e o Partido Comunista mudou de orientação política, passando a se chamar Partido Socialista. Em seguida, o país procedeu a uma ampla privatização da economia, permitindo também a entrada de capital estrangeiro.

5. Na Romênia, manifestações populares na cidade de Timisoara, que exigiam mudanças políticas e econômicas, foram reprimidas a tiros, causando milhares de mortes e dando início a uma revolta incontrolável. Em dezembro de 1989, o ditador Nicolae Ceausescu (1918-1989) e sua esposa, Elena Ceausescu (1916-1989), foram presos e executados sumariamente. No ano seguinte, realizaram-se eleições livres e gerais, seguidas de reformas econômicas.

6. Na Iugoslávia, em 1990 os comunistas foram derrotados nas eleições gerais em quatro das seis repúblicas que formavam o país, mas venceram na Sérvia (a mais poderosa delas) e em Montenegro, mantendo o controle político federal. Tal situação estimulou as lutas étnico-políticas e o anseio de independência das demais repúblicas (Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina e Macedônia), desencadeando uma guerra civil.

7. Na Bulgária, o dirigente comunista Todor Jivkov renunciou após 35 anos no poder. Nas eleições de novembro de 1991, a União das Forças Democráticas foi vitoriosa e estabeleceu o primeiro governo não comunista búlgaro desde 1944.

8. A Albânia foi o último Estado do Leste Europeu a implementar mudanças liberalizantes. O país encontrava-se sob ditadura stalinista, liderada por Enver Hoxha (1908-1985), que governou de 1946 a 1985. Em março de 1991, o Partido Comunista, rebatizado de Socialista, venceu as primeiras eleições livres do país, permitindo que se acelerassem as ligações com o Ocidente capitalista. Em meio a dificuldades econômicas, o Partido Democrata obteve a maioria dos votos nas eleições parlamentares de março de 1992, pondo fim ao tradicional controle comunista.

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O fim do socialismo no Leste Europeu

A implosão do socialismo real existente no Leste Europeu desmontou as tradicionais estruturas socioeconômicas da região, aumentando o desemprego, a inflação, as desigualdades sociais e os conflitos étnicos e políticos. A maior parte das novas posições empresariais, nos moldes ocidentais de um comando burguês, coube aos membros da tradicional burocracia e seus parentes, em íntima associação com empresários internacionais. A situação de crise da região representou incertezas quanto à solidez da ordem internacional que se estabelecia em substituição à Guerra Fria.

O fim da União Soviética

O governo de Gorbatchev, que produziu num curto período uma verdadeira revolução no bloco socialista, afetando e alterando por completo as relações políticas e econômicas nos âmbitos nacional e internacional, teve de enfrentar, dentro da União Soviética, a passividade e a inércia burocráticas. Esse entrave desorganizou a já limitada produção econômica e as pressões dos grupos que desejavam reformas mais rápidas e profundas.

Ainda no plano interno, a administração de Gorbatchev enfrentava grande impopularidade em virtude basicamente de dois fatores: primeiro, a explosiva questão do separatismo nacionalista no interior das fronteiras do país; segundo, e mais grave, a questão do desabastecimento interno, provocando filas e manifestações, e ampliado pela sabotagem das elites burocráticas que dirigiam a economia soviética e eram contrárias às reformas.

Em agosto de 1991, membros dessa burocracia conservadora, aliados a um setor dos militares, afastaram Gorbatchev do poder com um golpe que visava reverter o quadro político-econômico da União Soviética, à beira do descontrole. Boris Yeltsin (1931-2007), presidente da principal república soviética, a Rússia, e líder dos radicais reformistas, convocou uma greve geral e obteve o apoio de milhares de civis e militares, que, mobilizados em frente ao Parlamento russo, derrotaram os golpistas.

Yeltsin transformou-se no principal líder político soviético, sobrepondo-se ao próprio Gorbatchev, que se viu obrigado a renunciar ao cargo de secretário-geral do PCUS e dissolver o partido, então acusado de ligações com os golpistas, ficando apenas com o enfraquecido cargo de presidente da União Soviética.

Em setembro de 1991, declarações unilaterais de independência das repúblicas bálticas (Estônia, Letônia e Lituânia), acompanhadas de distúrbios e conflitos com tropas soviéticas, levaram Gorbatchev a reconhecer oficialmente a soberania dos três Estados, que, em seguida, foram admitidos na ONU. Era o primeiro golpe mortal na debilitada União Soviética.

O golpe final contra Gorbatchev ocorreu em 8 de dezembro de 1991, quando Rússia, Ucrânia e Belarus assinaram o Acordo de Minsk (capital de Belarus), proclamando o fim da União Soviética e a criação da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), que, pouco depois, obteve a adesão de outras ex-repúblicas da ex-União Soviética. Em 25 de dezembro do mesmo ano, Gorbatchev renunciava ao cargo de presidente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Estado que, naquele momento, já não existia.

LEGENDA: O golpe de Estado contra Gorbatchev (à esquerda), na verdade, beneficiou Yeltsin (à direita), cujas ações precipitaram o fim da União Soviética.

FONTE: Guneev Sergey/RIA Novosti/Agência France-Presse

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Os ex-países socialistas na globalização capitalista

Após o fim da União Soviética, os ex-países socialistas viveram graves crises econômicas e políticas. A abertura de seus mercados ao capitalismo internacional e a desmontagem da ordem socialista favoreceram a emergência de uma nova elite econômica, uma nova -burguesia", em grande parte descendente das elites burocráticas que ocupavam os altos cargos administrativos no período anterior.

A crise socioeconômica que assolou a ex-União Soviética e os países do Leste Europeu, com inflação galopante e queda da produção nacional, somou-se, em algumas regiões, com confrontos étnico-políticos, destacando-se os conflitos da Bósnia-Herzegovina, Croácia e Kosovo, da ex-Iugoslávia; e a da Chechênia, na Rússia.

Em 1991, na Iugoslávia, as repúblicas da Croácia e da Eslovênia se declararam independentes, dando início a uma guerra civil. Em meio ao confronto, o Parlamento de Belgrado (capital da antiga Iugoslávia), na Sérvia, criou em 1992 a nova Iugoslávia, formada apenas pela Sérvia e por Montenegro.

Em fevereiro de 2003, a Iugoslávia deixou de existir oficialmente, passando a se chamar União da Sérvia e Montenegro. Em 2006, por meio de um plebiscito, decidiu-se pela completa separação entre Sérvia e Montenegro. Em 2008, Kosovo, uma província da Sérvia também se separou, completando a fragmentação da ex-Iugoslávia.

A Federação Russa, em meio às mudanças políticas, aos conflitos étnicos e ao agravamento da crise socioeconômica, também teve de enfrentar a declaração de independência da Chechênia, de maioria muçulmana, na região do Cáucaso, em 1991. A capital, Grózni, e várias outras cidades mergulharam em violentos confrontos; nem mesmo um acordo de paz, assinado entre rebeldes e autoridades russas, conseguiu pacificar o território.

Mesmo com a transformação da Chechênia em República -autônoma" - porém ainda parte integrante da Rússia - em 1996, a região continuou sendo um polo de frequentes conflitos separatistas com o governo russo. Em 1999, depois de vários atentados terroristas em diversas cidades russas, atribuídos a muçulmanos apoiados pela Chechênia, o governo de Moscou iniciou uma forte ofensiva militar contra o território rebelde, sem conseguir, no entanto, sua completa submissão.

A divisão da Iugoslávia

FONTE: Adaptado de: SIMIELLI, Maria Elena. Geoatlas. 32. ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 67.

FONTE: Banco de imagens/Arquivo da editora

LEGENDA: Na foto, em frente ao prédio da Lubyanka, antiga sede da KGB (Comitê de Segurança do Estado), o pedestal sobre o qual ficava a estátua de Felix Dzerzhinsky, fundador da KGB, está vazio e com pichações. Foto de setembro de 1991.

FONTE: Peter Turnley/Corbis/Latinstock

246

Em 2002, novos atentados realizados por separatistas chechenos levaram o presidente Vladimir Putin, eleito em 2000, a convocar um plebiscito para março de 2003. De cada cem eleitores chechenos, 89 votaram a favor de uma nova Constituição chechena, confirmando seu vínculo à República da Rússia. Seguiram-se eleições para presidente (2004) e para o Parlamento (2005).

Várias outras regiões da Rússia também proclamaram sua independência, a exemplo da Tartária e do Dniester (na Moldávia). A diversidade étnica do país, no início do século XXI, era o combustível para a instabilidade sociopolítica. A dificuldade para acordos de paz residia nessa ampla variedade étnica, que há séculos prevalece na região. Predominam os russos étnicos (85% da população), mas também há diversos outros grupos minoritários distribuídos por seu vasto território, entre eles tártaros, ucranianos, chuvaques, bashquires, belarusianos, casaques, usbeques e ossétios, etc.

No plano político, o primeiro presidente da Federação Russa, Boris Yeltsin, enfrentou franca oposição parlamentar, o que o levou a fechar o Parlamento em 1993. Seguiram-se eleições que renovaram o Legislativo russo e a aprovação de uma nova Constituição.

Reeleito em 1996, Yeltsin sofreu forte oposição política e renunciou à presidência em 31 de dezembro desse mesmo ano, quando assumiu Vladimir Putin, primeiro-ministro.

LEGENDA: Em outubro de 1993, Moscou teve a sede do Parlamento atacada por tanques do exército russo, cumprindo ordens de Yeltsin.

FONTE: Peter Turnley/Corbis/Latinstock

Leituras

Boxe complementar:

No trecho a seguir, Eric Hobsbawm comenta os efeitos que o fim da União Soviética tiveram sobre a população russa.

Os efeitos do colapso da União Soviética

[...] O resultado foi um desastre completo. Se compararmos os efeitos positivos do colapso da União Soviética e de seu sistema político aos seus efeitos negativos, eu diria que estes últimos são incomparavelmente maiores. E isto certamente vale para a maioria dos russos. Muitos russos mais velhos dizem que preferiam retornar à década de 1970, sob o governo de Brejnev. Um sinal claro do desastre russo é o fato de que a Era Brejnev possa aparecer como uma época de ouro para os russos. No Ocidente, simplesmente não fazemos a menor ideia das dimensões da catástrofe humana que se abateu sobre a Rússia. Ela significa a inversão total de tendências históricas: a expectativa de vida da população masculina caiu dez anos ao longo da última década, e grande parte da economia reduziu-se à agricultura de subsistência. Não creio que tenha acontecido nada de similar no século XX.

HOBSBAWM, Eric J. O novo século: entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 84.

Fim do complemento.

247

Por essa época, a sociedade russa enfrentava grandes dificuldades: embora 99% da população fosse alfabetizada, 35% dela vivia abaixo da linha da pobreza; o índice de desemprego era de 12,4% em março de 1999; a inflação, de 40% ao ano (1999); e o mercado negro movimentava 22% do Produto Interno Bruto (PIB). Até mesmo Putin reconhecia: "Somos um país rico de gente pobre". Contudo, em março de 2004, a imagem de autoridade firme de Putin no governo foi decisiva para que ele fosse reeleito, com 71% dos votos nas eleições presidenciais. Em 2008, Putin apoiou o candidato vitorioso à Presidência, Dmitri Medvedev, que o sucedeu. Ainda em 2008, Putin assumiu o cargo de primeiro-ministro do governo Medvedev.

Glossário:

mercado negro: na economia de um país, conjunto de atividades ilegais, em geral de compra e venda de mercadorias sem pagamento de impostos; pode envolver mercadorias proibidas, como drogas ou armas, roubadas ou, ainda, produtos importados sem obedecer aos trâmites legais.

Fim do glossário.

Durante o governo Medvedev/Putin, foi retomado o crescimento da economia, em grande parte por causa das exportações de petróleo e seus altos preços no mercado internacional. Em 2012, Putin foi novamente eleito presidente, sucedendo Medvedev, que assumiu então o cargo de primeiro-ministro.

Em 2014, formou-se um novo polo de atrito entre a Rússia e o Ocidente. A Ucrânia, ex-República Soviética e independente desde 1991, transformou-se em área de disputas. A intensificação de manifestações populares em Kiev, capital ucraniana, iniciadas no final de 2013, culminaram na deposição do então presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych no início de 2014. Contudo, a região ucraniana da Crimeia, com a maioria da população de origem russa, decidiu, via plebiscito, pela independência ante a Ucrânia, ganhando o reconhecimento do governo Putin, seguida da integração à Federação Russa e a reprovação dos governos dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, que adotaram sanções econômicas e diplomáticas contra a Rússia. Em seguida, outras regiões ucranianas de maioria russa também passaram a negar o governo da Ucrânia e a buscar a integração com a Rússia. Montou-se um quadro de movimentação de tropas ucranianas e russas, além de forças da Otan, o que ampliou a tensão regional.

Outro foco de tensão com envolvimento russo era a guerra civil da Síria, com as atuações das potências ocidentais, de vizinhos e do Estado Islâmico. Em 2016, a Rússia reforçou o apoio ao governo sírio de Bashar al-Assad, contrário aos países ricos do Ocidente, além de bombardear domínios do Estado Islâmico (EI), firmando Putin como um importante participante nos jogos de força e de interesses na região.

LEGENDA: Manifestantes seguram as bandeiras da Rússia e da Crimeia durante ato pró-Rússia em Simferopol, na República da Crimeia, em março de 2014.

FONTE: Sean Gallup/Getty Images

248

Dialogando com a Química

A Química vai à guerra

Nos conflitos do século XX, a Alemanha foi o primeiro país a utilizar armas químicas em grande escala. Em 1915, o gás cloro provocou a morte de mais de 5 mil soldados britânicos e franceses que estavam nas trincheiras da Bélgica.

Glossário:

armas químicas: conduzem substâncias tóxicas que provocam efeitos diversos no organismo vivo, como asfixia, irritações, distúrbios dos sistemas respiratório, nervoso ou digestivo.

Fim do glossário.

Formalizado em 1925, o Protocolo de Genebra, um acordo internacional, proibiu o uso de gases asfixiantes, tóxicos e de agentes bacteriológicos - embora não tenha proibido a posse e a fabricação deste tipo de artefato bélico. Inicialmente, o acordo foi respeitado pelos países europeus e pelos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, visto que nenhum exército utilizou esse tipo de arma contra combatentes. Ainda assim, Hitler utilizou o Zyklon B, um composto gasoso letal à base de ácido cianídrico, no genocídio de milhões de judeus, ciganos e outros povos considerados inferiores pelo regime nazista.

Mais tarde, em 1935, o ditador Benito Mussolini utilizou gás de mostarda contra soldados na Abissínia, atual Etiópia. Os japoneses recorreram a armas químicas e biológicas na China, durante o conflito em 1940. Entre 1965 e 1967, o presidente do Egito, Gamal Nasser, ordenou o uso sistemático de armas químicas numa catastrófica guerra contra o Iêmen.

Os Estados Unidos bombardearam o Vietnã, nos anos 1960, com cerca de 80 milhões de litros de um herbicida conhecido como agente laranja, destruindo o meio ambiente e provocando enfermidades como câncer, doenças congênitas e neurológicas em cerca de 4 milhões de vietnamitas.

Em 1972, realizou-se a Convenção sobre Armas Químicas, cujos acordos previam não apenas a proibição, mas a posse, produção e transferência de armas químicas e biológicas. Atualmente, mais de 160 países ratificaram o acordo.

No entanto, Saddam Hussein empregou o uso de armas químicas contra iranianos, na Guerra do Iraque (1980-1988) e contra curdos, em março de 1988, matando cerca de 5 mil civis num único ataque em território iraquiano.

Em 2003, com apoio do Reino Unido, os Estados Unidos iniciaram uma intensa operação militar de invasão do Iraque, afirmando que Saddam Hussein mantinha ativo um programa de construção de armas biológicas que contrariava os acordos internacionais. Havia fortes indícios de que o Iraque possuía armas químicas, como o VX, o gás de mostarda e o sarin, além de agentes biológicos, como o antraz.

Glossário:




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