Mais vale uma pedra no caminho do que duas no rim recurso intertextual

Por Elaine Brito Souza

Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ; Doutoranda em Literatura Brasileira pela UFRJ

Assunto comum no Enem, a intertextualidade acontece quando um texto retoma uma parte ou a totalidade de outro texto – o texto fonte. Geralmente, os textos fontes são aqueles considerados fundamentais em uma determinada cultura. No exemplo dado, compositores brasileiros contemporâneos retomam um dos textos mais reverenciados da literatura portuguesa.

Nos anos 90, Pedro Luis e Fernanda Abreu lançaram a canção “Tudo vale a pena”, cujo refrão diz o seguinte: “Tudo vale a pena, sua alma não é pequena”. O mote, na verdade, faz referência ao famoso poema “Mar português” (1934), do poeta Fernando Pessoa: Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma não é pequena.Quem quer passar além do BojadorTem que passar além da dor.Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.


Como podemos ver, temos dois textos que, apesar de distantes no tempo e no espaço, dialogam entre si. A intertextualidade é exatamente essa relação, uma forma de diálogo entre dois ou mais textos.

É importante considerar que a intertextualidade pode ocorrer entre textos de mesma natureza ou de naturezas diferentes. 

Mais vale uma pedra no caminho do que duas no rim recurso intertextual
Cartum - Vida de passarinho (Foto: Reprodução)

Veja, por exemplo, que o cartum de Caulos tem como texto fonte o poema No Meio do Caminho de Carlos Drummond de Andrade, de 1930. No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho Tinha uma pedra No meio do caminho tinha uma pedra.A seguir, veremos vários exemplos de intertextualidade, seja em forma de citação, paródia ou paráfrase.

Citação

Mais vale uma pedra no caminho do que duas no rim recurso intertextual
Propaganda Chevrolet (Foto: Reprodução)

Esse procedimento intertextual acontece quando um texto reproduz outro texto ou parte dele. Para sinalizar que houve a reprodução de outro texto, são utilizados alguns marcadores, como as aspas. Dessa forma, o texto deixa claro que o trecho ou o texto citado foi tirado de outra fonte.

A compreensão adequada de um intertexto depende, naturalmente, do conhecimento do texto fonte. No exemplo dado, a propaganda buscou inspiração no texto bíblico "Do pó vieste e ao pó voltarás", marcando sua reprodução por meio de aspas.

Paródia

A paródia consiste em uma subversão ao texto fonte, recriando-o de maneira satírica ou crítica. Dizendo de outra maneira, a paródia ironiza o texto original e inverte seu sentido. “Canção do exílio” (1847) é um dos textos mais parodiados da cultura brasileira, exercendo sua influência por várias gerações.

Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, 

Não gorjeiam como lá.


Agora, leia parte da paródia composta pelo humorista e apresentador Jô Soares:

Minha Dinda tem cascatasOnde canta o curióNão permita Deus que eu tenhaDe voltar pra Maceió.Minha Dinda tem coqueirosDa Ilha de MarajóAs aves, aqui, gorjeiam

Não fazem cocoricó.

No poema de Gonçalves Dias, do final do século XIX, o eu lírico deseja cantar a saudade que sente de sua terra natal, o Brasil, enfatizando seus encantos e belezas naturais. O texto de Jô Soares, do final do século XX, desconstrói o sentido do texto original, já que o eu lírico quer distância da terra natal, pois prefere as mordomias da Casa da Dinda, como ficou conhecida a residência oficial do Presidente da República na época, Fernando Collor de Mello.

Através da paródia, Jô Soares faz uma crítica aos escândalos de corrupção do governo, que culminaram no processo de “impeachment” do presidente. 

Paráfrase

Fazer uma paráfrase significa reproduzir as ideias de um texto, só que utilizando outras palavras, dentro de uma nova montagem. É o recurso intertextual que se faz presente, por exemplo, em resumos, atas e relatórios, que fazem parte do nosso cotidiano.

Veja um exemplo de paráfrase da tão parodiada “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias: Meus olhos brasileiros se fecham saudosos Minha boca procura a “Canção do Exílio”. Como era mesmo a “Canção do Exílio”? Eu tão esquecido de minha terra... Ai terra que palmeiras 

onde canta o sabiá


Perceba que o poema “Europa, França e Bahia”, de Carlos Drummond de Andrade, estabelece um diálogo com o texto de Gonçalves Dias, mas não tem uma intenção satírica – é uma paráfrase.

Caiu no Enem

(Enem 2009 - prova azul) 
Texto 1
No meio do caminho

No meio do caminho tinhauma pedraTinha uma pedra no meiodo caminhoTinha uma pedraNo meio do caminho tinhauma pedra

ANDRADE, C. D. Antologia poética. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 2000. (fragmento).

Texto 2

Mais vale uma pedra no caminho do que duas no rim recurso intertextual
Questão de português do Enem 2009 (prova cancelada) (Foto: Reprodução/Enem)

A comparação entre os recursos expressivos que constituem os dois textos revela que

a) o texto 1 perde suas características de gênero poético ao ser vulgarizado por histórias em quadrinho.b) o texto 2 pertence ao gênero literário, porque as escolhas linguísticas o tornam uma réplica do texto 1.c) a escolha do tema, desenvolvido por frases semelhantes, caracteriza-os como pertencentes ao mesmo gênero.d) os textos são de gêneros diferentes porque, apesar da intertextualidade, foram elaborados com finalidades distintas.e) as linguagens que constroem significados nos dois textos permitem classificá-los como pertencentes ao mesmo gênero.

Resolução:
Letra D. Como vimos, a intertextualidade pode ocorrer entre textos de naturezas diferentes. No caso, temos uma história em quadrinhos que retoma um poema de Drummond. Aliás, o conhecimento do poema é fundamental para compreender a paródia realizada nos últimos quadrinhos da história. Por fim, enquanto o texto 1 faz uma reflexão de caráter existencial e filosófica, o texto 2 tem um objetivo mais modesto, que é provocar humor.

O poema No Meio do Caminho é uma das obras-primas de autoria do escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade.

Os versos, publicados em 1928 na Revista de Antropofagia, abordam os obstáculos (pedras) que as pessoas encontram na vida.

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

As pedras mencionadas nesta poesia podem ser classificadas como obstáculos ou problemas que as pessoas encontram na vida, descrita neste caso como um "caminho". Essas pedras podem impedir a pessoa de seguir o seu percurso, ou seja, os problemas podem impedir de avançar na vida.

Os versos "nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas" transmitem uma sensação de cansaço por parte do autor, e do acontecimento que ficará sempre na memória do poeta. Assim, as pedras mencionadas também podem indicar um acontecimento relevante e marcante para a vida de uma pessoa.

As críticas ao poema

Assim que publicado, o poema No Meio do Caminho foi profundamente criticado pela sua simplicidade e repetição. Com o passar do tempo, os versos foram sendo compreendidos pelo público e pela crítica. Atualmente o poema é uma espécie de cartão postal da obra de Carlos Drummond de Andrade.

Para alguns, No Meio do Caminho é considerado como o produto de um gênio, para outros é descrito um poema monótono e sem sentido. É possível afirmar que as críticas e ofensas feitas ao autor foram pedras no meio do seu caminho.

Interpretação biográfica

Uma das teorias sobre a gênese do poema No Meio do Caminho remonta para a própria biografia de Carlos Drummond de Andrade.

Drummond se casou em 26 de fevereiro de 1926 com a amada Dolores Dutra de Morais. Um ano depois nasceu o primeiro filho do casal: Carlos Flávio. Por uma tragédia do destino, o menino sobreviveu apenas por meia hora.

Entre janeiro e fevereiro de 1927 foi encomendado ao escritor um poema para o primeiro número da Revista de Antropofagia. Drummond, imerso na sua tragédia pessoal, mandou então o tal polêmico poema No Meio do Caminho. A publicação da revista saiu no ano a seguir, em 1928, consagrando o trabalho poético do autor.

O teórico Gilberto Mendonça Teles sublinha o fato da palavra pedra conter as mesmas letras da palavra perda (trata-se da presença da hipértese, uma figura de linguagem). O poema teria sido então uma espécie de túmulo para o filho e também uma lição de como o Drummond escolheu processar esse triste acontecimento pessoal.

O poema se opõe ao parnasianismo

No Meio do Caminho é uma criação de Drummond que dialoga com o soneto Nel mezzo del camin..., escrito pelo poeta parnasiano Olavo Bilac (1865-1918).

O soneto de Olavo Bilac também usa o recurso da repetição, embora siga uma estética muito mais elaborada, com uma linguagem enfeitada e uma estrutura muito calculada.

A criação de Drummond é uma espécie de deboche a poesia parnasiana. O poeta modernista faz uso de uma linguagem simples, cotidiana, clara, através de uma estrutura sem rima, musicalidade ou métrica. O objetivo de Drummond é produzir uma poesia mais pura, mais voltada para a essência.

Muitos teóricos interpretam que a pedra no meio do caminho de Drummond eram os parnasianos, que impediam o desenvolvimento de uma arte acessível e inovadora.

Tanto Drummond quanto Olavo Bilac criaram os seus poemas inspirados na mais famosa criação do italiano Dante Alighieri (1265-1321). A frase “No meio do caminho” é um verso presente no canto I da importante Divina Comédia, escrita em 1317.

Sobre a publicação do poema

O poema No Meio do Caminho foi publicado pela primeira vez em julho de 1928, no número 3 da Revista de Antropofagia dirigida por Oswald de Andrade e causou polêmica tendo recebido duras críticas.

Muitas das críticas eram se deviam ao fato do poeta utilizar a redundância e repetição: a expressão "tinha uma pedra" é usada em 7 dos 10 versos do poema.

O poema, mais tarde, veio a integrar o livro Alguma poesia (1930), o primeiro publicado pelo poeta e já caracteristicamente drummoniano: com uma linguagem simples, coloquial, um discurso acessível e despojado.

Que tal ouvir os clássicos versos de Drummond declamados?

Mais vale uma pedra no caminho do que duas no rim recurso intertextual

Descubra Carlos Drummond de Andrade

Nascido em 31 de outubro 1902 em Itabira, interior de Minas Gerais, Carlos Drummond de Andrade foi um dos maiores nomes da poesia brasileira.

Sua primeira infância foi passada no interior, em Itabira, ao lado dos pais, os proprietários rurais Carlos de Paula Andrade e Julieta Augusta Drummond de Andrade. Muitos anos mais tarde, Drummond viria a dar o segundo nome da filha em homenagem a sua mãe.

Mais vale uma pedra no caminho do que duas no rim recurso intertextual
Mais vale uma pedra no caminho do que duas no rim recurso intertextual
Carlos Drummond de Andrade e a filha, Maria Julieta Drummond de Andrade.

Aos 14 anos, Drummond foi para Belo Horizonte onde ficou em um colégio interno. Quatro anos mais tarde foi a vez de se mudar para Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em busca de melhores oportunidades de ensino.

O jovem poeta acabou por se formar no curso de Farmácia da Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte embora tenha desde 1921 investido na sua carreira jornalística e literária.

Lançou em 1925 A Revista, publicação essencial do modernismo mineiro. Publicou no Diário de Minas onde mais tarde veio a ser redator. Mais tarde veio a se tornar funcionário público.

No serviço público atuou, a princípio, como auxiliar de gabinete da Secretaria do Interior. Depois assumiu a chefia do gabinete do Ministério da Educação. Entre 1945 e 1962 atuou como funcionário do Serviço Histórico e Artístico Nacional.

Sendo um dos nomes mais conhecidos do modernismo brasileiro, Carlos Drummond de Andrade marcou a literatura brasileira por expressar de maneira inspiradora as profundas inquietações que atormentam o ser humano.

Na vida pessoal o poeta casou com Dolores Dutra de Morais e foi pai de Maria Julieta Drummond de Andrade e de Carlos Flávio Drummond de Andrade.

O poeta faleceu no Rio de Janeiro em 1987. Há quem diga que a sua morte tenha sido de alguma forma influenciada pelo falecimento da filha, que morreu apenas doze dias antes do pai.

Obras publicadas

  • No Meio do Caminho, 1928
  • Alguma Poesia, 1930
  • Poema da Sete Faces, 1930
  • Cidadezinha Qualquer e Quadrilha, 1930
  • Brejo das Almas, 1934
  • Sentimento do Mundo, 1940
  • Poesias e José, 1942
  • Confissões de Minas (ensaios e crônicas), 1942
  • A Rosa do Povo, 1945
  • Poesia até Agora, 1948
  • Claro Enigma, 1951
  • Contos de Aprendiz (prosa), 1951
  • Viola de Bolso, 1952
  • Passeios na Ilha (ensaios e crônicas), 1952
  • Fazendeiro do Ar, 1953
  • Ciclo, 1957
  • Fala, Amendoeira (prosa), 1957
  • Poemas, 1959
  • A Vida Passada a Limpo, 1959
  • Lições de Coisas, 1962
  • A Bolsa e a Vida, 1962
  • Boitempo, 1968
  • Cadeira de Balanço, 1970
  • Menino Antigo, 1973
  • As Impurezas do Branco, 1973
  • Discurso da Primavera e Outras Sombras, 1978
  • O Corpo, 1984
  • Amar se Aprende Amando, 1985
  • Elegia a Um Tucano Morto, 1987

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