O que é o princípio da fungibilidade

Pelo princípio da fungibilidade, o Magistrado admite um recurso ou até peça processual interposta de forma errônea, em detrimento de uma que deveria ser usada de forma correta.

Muito utilizado em sede de recursos, este princípio deve ser aceito apenas quando não há um erro grosseiro da parte que interpõe o recurso, exista uma dúvida objetiva quanto à natureza jurídica da decisão a ser combatida e que o recurso interposto de forma equivocada esteja dentro do prazo do recurso correto que deveria ser manejado.

A fungibilidade também pode ser utilizada nas ações possessórias conforme dicção expressa no artigo 554 do Código de Processo Civil. Vejamos: “A propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados.”

Este princípio é derivado da instrumentalidade das formas, e tem o escopo de dar mais celeridade, economia, cooperação e aproveitamento dos atos processuais.

1 de setembro de 2015, 6h20
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Por Dierle Nunes

O princípio recursal da fungibilidade consiste na possibilidade de admissão de um recurso interposto por outro, que seria o cabível, na hipótese de existir dúvida objetiva sobre a modalidade de recurso adequada.

É um princípio de aproveitamento do recurso interposto erroneamente, quando ocorra dúvida gerada pelo próprio sistema[1] e que no âmbito do Código de Processo Civil (CPC) 2015 obtêm novos fundamentos normativos, como na propalada regra interpretativa da primazia (ou preponderância)[2]da análise de mérito,[3] prevista em seu artigo 4º, que busca o máximo aproveitamento da atividade processual.

A aplicação deste princípio aos recursos é uma das variantes do princípio do “maior favor”, que segundo explicava Goldschmidt, no direito alemão, significava “[...] que o recurso é admissível tanto se corresponde à resolução que por ele se induz que houvera desejado o recorrente (teoria subjetiva), como se é o adequado a que se ditou (teoria objetiva). Isto constitui a teoria do ‘recurso indiferente’ (Sowohl-als-auch-Theorie)” (tradução nossa).[4]

Note-se, contudo, que a discussão no caso alemão era diferente do caso brasileiro, eis que “[...] partia de um quadro fático em que a decisão do magistrado fosse, sob certo prisma, errada, e que esta circunstância, ensejasse a dúvida no espírito da parte”,[5] sendo que a teoria do recurso indiferente “[...] foi fruto da ideia de que a parte não poderia ser prejudicada por um erro do tribunal, pois, afinal, o tribunal deve, presumivelmente, conhecer mais o direito do que as partes”.[6]

O revogado CPC de 1939, para evitar os inconvenientes da interposição errônea,[7] decorrente de seu tumultuado sistema recursal, adotava, de forma expressa, o princípio da fungibilidade. O artigo 810 estabelecia que “salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou Turma, a que competir o julgamento”.

Isto porque não existia a “simplificação”[8] pregada pelo CPC-1973, que por exemplo estabelecia que contra toda sentença definitiva ou terminativa cabe apelação, uma vez que, no código de 1939, na primeira hipótese, caberia apelação (artigo 820[9]) e na segunda agravo de petição[10] (artigo 846[11]).

Contudo, a propalada simplicidade não foi capaz de evitar algumas hipóteses em que o recorrente fica em fundada dúvida acerca do recurso a interpor em face da dissensão existente na lei, na doutrina ou na jurisprudência.

O CPC 2015, buscando a primazia do mérito e constatando a inata complexidade do sistema recursal, viabilizou normativamente hipóteses de fungibilidade.

Em verdade segundo o Enunciado 104 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, “o princípio da fungibilidade recursal é compatível com o CPC e alcança todos os recursos, sendo aplicável de ofício.”[12]

Tal adoção normativa se deu com o objetivo de garantir maior aproveitamento dos recursos e corrigir vícios de uma aplicação do princípio sem levar a sério o devido processo constitucional.

Isto porque em algumas situações os tribunais aplicavam a referida fungibilidade sem ofertar para a parte um contraditório como influência, tão somente aproveitando um recurso pelo outro, mas diminuindo muito as chances de seu provimento (acatamento).

Uma situação recorrente deste uso era a hipótese de conversão do julgamento dos Embargos de Declaração (ED) que atacassem decisões monocráticas dos relatores nos tribunais em Agravo Interno (AI). O Superior Tribunal de Justiça (STJ), nestas hipóteses, embasado no princípio da fungibilidade (e da economia processual), aceita, com recorrência, os embargos declaratórios com efeito infringente como recurso de agravo interno.[13]

O problema da simples conversão é evidente, pois o objeto dos EDs é o de se buscar esclarecimento ou integração de uma decisão eivada dos vícios de obscuridade, contradição ou omissão (ou mesmo a correção de erro material — vide artigo 1.022, CPC 2015) e o objeto do AI já é o de se buscar no colegiado a reforma da decisão impugnada.

Isto significa que a parte arrazoava um recurso que possui uma finalidade e o mesmo era convertido em outro sem possibilitar a devida adequação à nova situação jurídica.

Ao constatar tais vícios, o legislador garante que a fungibilidade nesta hipótese ocorra assegurando à parte o direito de complementar e/ou adequar suas razões recursais.

Tal compreensão poderia ser facilmente extraída da intelecção dos artigos 10 e 933 do CPC 2015, que asseguram o contraditório como influência e não surpresa e impedem atividades decisórias que potencialmente possam gerar prejuízo às partes sem possibilitar sua participação e manifestação.

No entanto, para se evitar digressões interpretativas, o Código expressamente prevê no artigo 1.024, parágrafo 3º que o “órgão julgador conhecerá dos embargos de declaração como agravo interno se entender ser este o recurso cabível, desde que determine previamente a intimação do recorrente para, no prazo de 5 (cinco) dias, complementar as razões recursais, de modo a ajustá-las às exigências do art. 1.021, § 1º.[14]

Trata-se de uma excelente inovação normativa que auxiliará na melhoria da atividade decisória dos tribunais e, consequentemente, no sistema recursal, viabilizando o cumprimento efetivo do devido processo constitucional.

[1] BRASIL, STJ, REsp nº 12.610, MT, 4T, Rel. Min. Athos Carneiro, DJU 24.02.1992.

[2]DUARTE, Zulmar. Preponderância do Mérito no Novo CPC. Acessívelemhttp://genjuridico.com.br/2015/01/23/preponderancia-do-merito-no-novo-cpc/

[3]THEODORO JR, NUNES, BAHIA, PEDRON. Novo CPC- fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro. GEN Forense, 2015, p. 25.  Didier nomina a regra de princípio. Cf. DIDIER, Fredie. Curso de direito processual civil. Salvador: Juz Podivm, 2015. v.1. p. 136

[4]“[...] que el recurso es admisible tanto si corresponde a la resolución que por él se induce que hubiera deseado el recurrente (teoría subjetiva) como si es el adecuado a la que se ha dictado (teoría objetiva). Esto constituye la teoría del ‘recurso indiferente’ (Sowohl-als-auch-Theorie)” (GOLDSCHMIDT. Derecho procesal civil, p. 402; Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, t. VII, p. 54).

[5]WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. “Dúvida” objetiva: único pressuposto para aplicação do princípio da fungibilidade. Revista de Processo, São Paulo, n. 65, p. 61, jan./mar. 1992.

[7]BUZAID, Alfredo. Exposição de motivos do Código de processo civil de 1973, item 31.

[9]“Art. 820. Salvo disposição em contrário, caberá apelação das decisões definitivas de primeira instância.”

[10]LIEBMAN.Decisão e coisa julgada. Revista Forense, p. 333.

[11]“Art. 846. Salvo os casos expressos de agravo de instrumento, admitir-se-á agravo de petição, que se processará nos próprios autos, das decisões que impliquem a terminação do processo principal, sem lhe resolverem o mérito.”

[12]NUNES, Dierle; SILVA, Natanael. Código de Processo Civil Referenciado. Belo Horizonte: Fórum, 2ª edição, 2015, p. 416.

[13]“O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de conhecer dos embargos de declaração como agravo regimental em razão da nítida pretensão infringente que deles emerge, prestigiando os princípios da fungibilidade e da economia processual.” BRASIl, STJ, 1 Seção, EDcl na Rcl 5932/SP, Ministro Mauro Campbell Marques, j. 23/05/2012, p. DJe 29/05/2012. “Os embargos de declaração que exclusivamente objetivam o novo exame do mérito da decisão impugnada devem ser recebidos como agravo regimental em homenagem ao princípio da fungibilidade recursal. Precedentes: EDcl no MS 15.275/DF, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJ de 17 de novembro de 2010; EDcl nos EREsp 986.857/SP, Relatora Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, DJ de 7 de abril de 2009; EDcl no Ag 943.576/RS, Relator Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, DJ de 6 de abril de 2009;  EDcl nos EREsp 949.764/SP, Relator Ministro  Francisco Falcão, Corte Especial, DJ de 2 de abril de 2009.” BRASIL, STJ, 1T, EDcl nos EDcl no AREsp 65522/SP, j. 22/05/2012, p. DJe 28/05/2012, EDcl no AREsp 558606 / SP, Rel Min. Ministro Humberto Martins, DJe 14/10/2014.

[14]Art.1.021. […]§ 1º Na petição de agravo interno, o recorrente impugnará especificadamente os fundamentos da decisão agravada.


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Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

Revista Consultor Jurídico, 1 de setembro de 2015, 6h20

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