Se considerarmos a cultura seriamente, veremos que as pessoas não precisam só que comer, mas uma cozinha própria e específica. Cultura pode ser até descrita simplesmente como aquilo que faz a vida valer a pena viver. Show T.S. Eliot. Notes towards a Definition of Culture, 1948. Como se define cultura?Pois é, não se define. Em 1952 os antropólogos A.L. Kroeber e Clyde Kluckhohn analisaram 162 diferentes definições de cultura e concluíram que não seria possível uma definição de cultura que contentaria a maioria dos antropólogos. Com esse balde-de-água-fria, seguem algumas definições já “clássicas” de cultura na antropologia que devem ser consideradas criticamente. Um dos pioneiros da antropologia, Edward Tylor (1832-1917) fez uma das primeiras propostas científicas de que cultura seria “em seu amplo sentido etnográfico, este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou quaisquer outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. (1871, p.1). Note o adquirido e o membro de uma sociedade nessa definição. Apesar de não ficar tão claro a cultura material na proposta de Tylor, a cultura seria algo socialmente adquirido, não genético ou inato. Em uma definição menos estática, outros pioneiros como Franz Boas e Bronislaw Malinowski propuseram que “cultura abrange todas as manifestações de hábitos sociais de uma comunidade, as reações do indivíduo afetado pelos hábitos do grupo em que vive e o produto das atividades humanas, como determinado por esses hábitos.” (BOAS, 1930, p. 79) e que “a cultura é uma unidade bem organizada dividido em dois aspectos fundamentais – um corpo de artefatos e um sistema de costumes”. (MALINOWSKI, 1944). Voltando a Clyde Kluckhohn, ele lista uma rol de acepções sobre cultura, que seria: 1. o modo de vida global de um povo; 2. o legado social que o indivíduo adquire do seu grupo; 3. a forma de pensar, sentir e acreditar; 4. uma abstração do comportamento; 5. uma teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente; 6. um celeiro de aprendizagem em comum; 7. um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recorrentes; 8. comportamento aprendido; 9. um mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento; 10. um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens; 11. um precipitado da história; Além das analogias da cultura como um mapa, uma peneira e uma matriz. Complementarmente, para Kroeber a cultura seria o superorgânico destacado do mundo biológico e material, com existência própria. Assim, a cultura geraria a própria cultura. Já sob aspecto organizacional, “a cultura é a programação coletiva da mente que distingue os membros de um grupo ou categoria de pessoas de outro”. (HOFSTEDE, 1997). Sob um aspecto ecológico, cultura é “uma parte dos meios distintos pelos quais a população local se mantém em um ecossistema e pelo qual essa população se mantém e coordena seus grupos e os distribui através da terra disponível”. (RAPPAPORT, 1971). Semelhante à definição ecológica, Darcy Ribeiro via a cultura como “o conjunto e a integração dos modos de fazer, agir, pensar desenvolvidos ou adotados por uma sociedade como solução para as necessidades da vida humana associativas”. Tendo em mente o trabalho de Kroeber e Kluckhohn, Geertz propõe uma visão não essencialista de cultura como “um padrão historicamente transmitido de significados incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e atitudes em relação à vida” e “ a cultura é a ‘totalidade acumulada’ de padrões simbólicos que aparecem em diferentes sociedades, (…) não é apenas um ornamento da existência humana, mas … uma condição essencial para isso”. (GEERTZ 2013). Essas perspectivas refletem uma falsa dicotomia no debate sobre a cultura. De um lado, a cultura como um parâmetro de comportamento social (como em Rappaport, Hofstede) e de outro, a cultura como um sistema simbólico de valores e significados (como em Geertz). Finalizando com a sínteses de Kroeber e Kluckhohn, eles usaram o conceito operacional de cultura como “consistindo em padrões, explícitos e implícitos, de e para os comportamentos adquiridos e transmitidos por símbolos, constituindo as realizações distintivas de grupos humanos, incluindo a sua incorporação em artefatos; o núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais (isto é, historicamente derivadas e selecionadas) e, principalmente, seus valores anexos; sistemas de cultura podem, por um lado, ser considerado como produtos de ação, sobre os outros elementos, como condicionais de ações futuras”. De onde veio essa complicação de cultura?O termo cultura vem do latim colere e é cognata às palavras agricultura, cultivar, colher, culto (tanto o adjetivo quanto o substantivo), ou seja, tudo aquilo que requer esforço humano para transformar em oposição ao encontrado na natureza. Para Cícero, educar um indivíduo em um ser social e político implicava em cultivá-lo: a filosofia é a cultura da mente. No século XVIII e XIX, filósofos alemães passaram a empregar o termo Kultur como cultivado, culto ou civilizado, daí vem a acepção de cultura como erudição. Com a popularização do termo pela antropologia, surgiram outras nuances. Antecedido pelo modificador “outro”, o termo cultura é usado para referir a um grupo social. É nesse sentido que aparece no plural: culturas. É o caso de a cultura dos xavantes, a cultura japonesa ou a cultura ocidental. Nessa acepção, há uma idealização de uma cultura como pertencente a um grupo, idealmente com suas fronteiras e conteúdos definidos. Entretanto, essa concepção é mais uma abstração empregada no sentido lato que propriamente reflexo da realidade. Falar algo como cultura brasileira ou cultura paraguaia seria um tipo ideal. Internamente há outras facetas nessas culturas nacionais. Nesse contexto, pode-se falar ainda em cultura popular, de massa, subcultura, contracultura e a cultura subalterna.
Apesar dessa diversidade de empregos do termo, Avruch (1998) aponta seis usos equivocados da noção antropológica de cultura:
Como se vê, ainda que haja uma pluralidade semântica no termo “cultura”, esse conceito possui seus contornos. Entre outros, o uso inadequado desse termo produz atitudes similares ao racismo. Se racistas pressupõem (1) a existência de raças fixas determinando atributos, comportamento e valores a seus membros; (2) a superioridade entre raças; (3) a raça ser propriedade do indivíduo e de um povo; (4) que a raça deva ser protegida contra contaminação externa; basta trocar a palavra “raça” nessas afirmações por “cultura” para identificar um preconceituoso “culturista”. Como se configura a culturaA cultura não é uma mera soma de elementos. A experiência de cada pessoa com a cultura é única. A cultura condiciona a visão de mundo, interfere na existência física do ser humano, opera com uma lógica própria e se mantém dinâmica (LARAIA, 1986). Com isso, a configuração dos elementos da cultura, às vezes funcionais (ou não), é complexa. Uma das divisões mais simples e úteis é a entre cultura material e cultura imaterial. Proposta por Ogburn (1922), organiza a cultura como uma moeda de duas faces. De um lado, os artefatos, o design (a arquitetura ou configuração de objetos), animais e plantas domesticados constituem a cultura material, o hardware da cultura. E vale ressaltar que artefato é qualquer objeto, tangível ou não, que possa ter um significado atribuído. Por exemplo, uma pedra pode ser deixada na natureza ou se tornar um artefato quando passa a ser reverenciada como sagrada ou misturada com cimento para fazer concreto. Já cultura imaterial ou cultura não material inclui tanto os significados atribuídos à cultura material como também os sistemas de crenças, valores, símbolos, linguagens, normas, instituições e organização social desde a família até o Estado. Ogburn notou que há um descompasso (cultural lag) entre a cultura material e a cultura imaterial, pois as tecnologias da cultura material estão desenvolvendo com maior velocidade enquanto a cultura imaterial tem dificuldade em se adaptar rapidamente a essas modificações. Nesse modelo de cultura de Lloyd Kwast (1992), um pouco modificado pela adição do habitus, compreende a cultura como um sistema concêntrico de atributos: a visão de mundo, as crenças, os valores, o comportamento e o habitus. Kwast adverte: este modelo de cultura é demasiado simples para explicar a vastidão de componentes e relações complexas existentes em cada cultura. Já o modelo de cultura de Edgar Schein (1988) representa a cultura sob outra estrutura de diferentes níveis quando aplicada aos estudos organizacionais: Atributos da CulturaUma vez posto o que cultura não é, vale apontar alguns de seus atributos clássicos:
Mas, realmente existe a cultura?Há quem diga que não. O termo tem sido usado com tantas significações que perdeu sua serventia como unidade de análise. É impossível usá-lo na antropologia sem antes ter de delimitá-lo operacionalmente. Termos mais específicos como ethos, imaginário, cosmovisão, habitus, estrutura ou artefato são preferidos ao genérico cultura. Adicionalmente, cultura tende a ser usada como uma simples abstração para ajuntar acriticamente tudo quanto é atividade humana. Desconfie de explicações de causalidade do tipo “isso só deu certo/errado naquele país por causa da cultura”, “esse tipo de crime acontece porque há uma cultura de crime” ou “os fulanos se comportam assim por causa da cultura deles”. Explicam tanto quanto dizer “que peixe é molhado porque vive na água”. Para esse debate, veja Abu-Lughod (1991), Gupta e Ferguson (2000) e Brumann (1999). Seja como for, quando qualificado criticamente ainda o conceito de cultura é um instrumento cotidiano da teoria antropológica. QUESTÕES SOBRE CULTURATeste seus conhecimentos:
REFERÊNCIASABU-LUGHOD, Lila. “Writing against Culture”. Em: R. Fox (ed.) Recapturing Anthropology. Santa Fe: School of American Research, 1991, pp.137-162. Disponível em http://xcelab.net/rm/wp-content/uploads/2008/09/abu-lughod-writing-against-culture.pdf AVRUCH, K. Culture and Conflict Resolution. Washington DC: United States Institute of Peace, 1998. BOAS, Franz. “Anthropology”. Em: Encyclopedia of the Social Sciences, vol. 2. pp. 73-110. BRUMANN, C. “Writing for culture: why a successful concept should not be discarded”. Current Anthropology, Vol. 40 (S1), 1999: 1-15, 18-19 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. [1936]. GEERTZ, Clifford. “O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem”. Em: A interpretação da cultura. Rio de Janeiro: LTC, 2013. p. 25-39. [The Interpretation of Cultures. New York: Basic Books. 1973] GUPTA, Akhil e FERGUSON, James. “Mais além da ‘cultura’: espaço, identidade e política da diferença” [1992]. In: Arantes. A. A. (org.). Espaço da Diferença. Campinas: Ed. da Unicamp, 2000, pp. 30-4 HOFSTEDE, Geert. Cultures and Organizations: Software of the Mind. McGraw-Hill, 1997. KLUCKHOHN, Clyde. Mirror for man: The relation of anthropology to modern life. New York: Whittlesey House, 1949. KROEBER, Alfred e KLUCKHOHN, Clyde. Culture: A Critical Review of Concepts and Definitions. New York: Vintage Books, 1952. KWAST, Lloyd. “Understanding Culture”. Em WINTER, Ralph D. e HAWTHORNE, Steven C. (editores). Perspectives on the World Christian Movement. Pasadena: William Carey Library, 1992. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. MALINOWSKI, Bronislaw. A Scientific Theory of Culture and other Essays. Chapel Hill: University of North Carolina Press; London: Humphrey Milford, Oxford University Press. 1944. RAPPAPORT, Roy. Nature, culture and ecological anthropology. Warner Modular Publication, 1971. OGBURN, William Fielding. Social Change with respect to culture and original nature. 1922. SCHEIN, Edgar. “Coming to a new awareness of organizational culture,” Em LAU, J.B. e SHANI, A.B. (editores). Behavior in Organizations: An Experiential Approach. Homewood, IL: Irwin Press, 1988, pp. 375-390. TYLOR, Edward B. Primitive Culture. Londres: 1871. Como citar esse texto no formato ABNT:Referência: ALVES, Leonardo Marcondes. O que é cultura? Antropologicamente falando… . Ensaios e Notas, 2014. Disponível em: https://wp.me/pHDzN-hm . Acesso em: 24 mar. 2020. Citação com autor incluído no texto: Alves (2014) Citação com autor não incluído no texto: (ALVES, 2014) |