Por que os motivos de grande parte da população indígena do Brasil residir em centros urbanos?

      A  Realidade dos Povos Ind�genas no Brasil

53 - Atualmente, t�m-se conhecimento da exist�ncia de povos ind�genas, com suas respectivas terras tradicionais, demarcadas ou n�o, vivendo em 24 unidades da federa��o. Estima-se que a popula��o ind�gena total seja de  550.438 pessoas, pertencentes a 225 povos, falando cerca de 180 l�nguas diferentes.  Desta popula��o, cerca de 358.310[1] vivem em seus territ�rios, outros 191.228[2] migraram para centros urbanos e h� uma estimativa de 900[3] �ndios que s�o pertencentes a povos n�o contactados.

54 - O significativo aumento da popula��o ind�gena, comparado a dados da d�cada de 70, se deve a tr�s fatores em especial: ao crescimento real da popula��o de muitas aldeias; ao fato de muitas comunidades terem voltado a revelar a identidade cultural, antes ocultada, e � atualiza��o dos dados do Censo oficial, em 1999, considerando tamb�m os �ndios que vivem nos centros urbanos.

55 - H� dois segmentos da popula��o ind�gena para os quais h� aus�ncia total de pol�tica de atendimento por parte do governo: s�o os �ndios que vivem nas cidades e os povos considerados �ressurgidos ou emergentes�.

56 - As fam�lias ind�genas que vivem em centros urbanos, em sua grande maioria, foram for�adas a migrar. Elas geralmente n�o deixam suas terras por op��o, mas para tentar encontrar condi��es melhores de vida. Suas hist�rias s�o marcadas pela viol�ncia, fogem das amea�as constantes, da escassez intensa ou do preconceito. A migra��o n�o ocorre apenas em dire��o �s cidades. Em v�rias regi�es encontram-se grupos familiares dispersos, que nas migra��es v�o se afastando, tanto de suas terras tradicionais quanto de outros membros de seu povo. Podemos citar o exemplo do povo Atikum, que embora seu territ�rio tradicional se localize na Regi�o Nordeste, no Estado de Pernambuco, encontra-se hoje distribu�do entre os Rstados do Par�, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Bahia.

57 - Outro segmento da popula��o ind�gena, desassistido pelo governo brasileiro, s�o os povos ressurgidos.  S�o povos que foram for�ados a manter no anonimato as suas identidades �tnicas e culturais durante anos e at� s�culos, em conseq��ncia de violentos processos de persegui��o e de discrimina��o. A conjuntura dos �ltimos anos tem possibilitado que estes povos reassumam suas identidades e reivindiquem  a devolu��o de seus territ�rios tradicionais, cabendo ao Estado Brasileiro demarc�-los, conforme determina a Constitui��o Federal. Nos encontros, assembl�ias e momentos coletivos, os povos ind�genas t�m alertado para a necessidade de se assegurar aos �ndios que vivem nas cidades e aos povos ressurgidos os mesmos direitos consagrados na Constitui��o.

 

Muitas faces da viol�ncia

58 - �Achamos aqui assados vivos a homens racionais: crian�as, mulheres e var�es. � costume comum desses homicidas [os paulistas] que quando v�o embora apressados queimem os enfermos, os velhos e os impedidos de caminhar�. (Ruiz de Montoya, mission�rio jesu�ta, 1639, sobre as barbaridades cometidas pelos paulistas � redu��o jesu�tica de Sant�Ana, no Paraguai).

59 - N�o h� d�vidas de que, a partir da chegada dos europeus, os povos ind�genas passaram a conviver com os mais variados tipos de viol�ncia. Componente intr�nseco ao regime imposto pela coloniza��o portuguesa, a pr�tica da viol�ncia acontecia, sobretudo, no trato com os escravos. Era tamb�m a estrat�gia mais comum na disputa pela terra e amplia��o das fronteiras do territ�rio colonial. Passados quinhentos anos, a viol�ncia continua em pauta, na pol�tica indigenista atual. � uma viol�ncia estrutural, estrategicamente incorporada aos processos genocidas que se revelam hoje nas invas�es de terra, aliciamento, repress�o cultural e religiosa,  roubos, fome, alcoolismo, prostitui��o, esteriliza��o de mulheres, discrimina��o e etc.

60 - Desde a d�cada de 80, o Cimi vem publicando relat�rios da viol�ncia contra os povos ind�genas. Estes constituem-se num verdadeiro retrato sem retoques da dura situa��o vivenciada pelos �ndios no Brasil. Observando estes relat�rios, verifica-se, na segunda metade da d�cada de 90, um aumento consider�vel da viol�ncia praticada contra os povos ind�genas.

61 - Um dado assustador �  o crescimento do n�mero de assassinatos, associados, em grande parte, � luta pela terra. No per�odo compreendido entre 1995-1998, foram 46 �ndios assassinados.[4]  Tamb�m houve um acentuado aumento das viol�ncias cometidas pelo Poder P�blico (funcion�rios p�blicos civis e militares, Poder Executivo das esferas municipal, estadual e federal). Em 1996 houve um aumento de cerca de 92% em rela��o a 1995. O levantamento registrou 138.722 ocorr�ncias, com um total de 10.385 v�timas. O mais grave � que, entre os praticantes de delitos, encontram-se at� funcion�rios da Funai, �rg�o destinado a defender os interesses ind�genas.

62 - Uma das principais causas da viol�ncia contra os �ndios � a cobi�a de suas terras. Pode-se afirmar que 85% das terras ind�genas (incluindo-se as demarcadas) s�o objeto dos mais diversos tipos de invas�o, tais como a presen�a de posseiros, garimpeiros, madeireiros, projetos de coloniza��o, abertura de estradas, hidrel�tricas, linhas de transmiss�o, hidrovias, ferrovias, gasodutos, oleodutos, minerodutos, cria��o de unidades de conserva��o ambiental e etc.

63 - As reivindica��es dos povos ind�genas s�o justas, pois se fundamentam nos direitos que possuem, como pessoas, como cidad�os e como povos diferenciados. Para a supera��o da viol�ncia, eles exigem a garantia da terra, da dignidade, da justi�a e de um atendimento respeitoso e adequado. Nos caminhos tra�ados em suas lutas, os �ndios questionam n�o apenas a pol�tica indigenista, mas  a base de toda a pol�tica que coloca em segundo plano o bem estar da pessoa humana. Suas lutas questionam a concentra��o da terra em grandes latif�ndios, a privatiza��o dos bens, recursos e conhecimentos produzidos socialmente. Estas s�o tamb�m as reivindica��es de todos aqueles que lutam para construir uma sociedade mais humana e igualit�ria, de todos os que cultivam a utopia da transforma��o ampla da sociedade.

64 - Neste sentido, � fundamental  conhecermos e refletirmos sobre o significado da terra, da conviv�ncia, do meio ambiente, da sa�de, da educa��o para os povos ind�genas e quais os caminhos apontados por eles na constru��o de um pa�s melhor. Compreendendo a realidade ind�gena e os caminhos de luta constru�dos coletivamente por estes povos, podemos vislumbrar, n�o apenas as formas poss�veis de solidariedade com eles, mas as diversas maneiras de viver, de lutar, de acreditar e de forjar o amanh�, �teis tamb�m para a transforma��o de nossa pr�pria realidade.

A Terra e seu significado para os povos ind�genas

65 - Os povos ind�genas mant�m uma rela��o muito especial com a terra. Para ocup�-la, n�o distribuem t�tulos ou lotes particulares, ocupam-na de  forma coletiva. A terra � posse de todo o povo. Uma das mais expressivas vit�rias na hist�ria recente dos �ndios no Brasil foi a conquista de um cap�tulo especial na Constitui��o Brasileira. O artigo 231, referente aos direitos ind�genas, reconhece a posse coletiva das terras, o significado do territ�rio para as culturas dos povos. Afirma serem elas �inalien�veis e indispon�veis�, ou seja, n�o podem ser vendidas, n�o est�o a servi�o do mercado, mas sim do usufruto exclusivo dos �ndios.

66 - A terra para o �ndio �� seu ch�o cultural, habitada por suas tradi��es, refer�ncia b�sica dos seus valores vitais, prenhe de mitos, campo de sua hist�ria�[5] O relacionamento dos �ndios com sua terra assemelha-se ao modo  como o povo hebreu concebia a terra prometida. Para eles, a Palestina n�o era igual �s outras terras, porque era a terra da Promessa. Fora daquela terra era imposs�vel celebrar a liturgia, as festas e at� mesmo cantar um dos c�nticos de Si�o (2 Rs 5, 17). Da mesma maneira, os povos ind�genas t�m seus lugares sagrados, espa�os de seus rituais, de manifesta��o de suas cren�as e da for�a de seus ancestrais. A terra � o ch�o de sua hist�ria, de sua cultura, de sua coes�o, de sua sobreviv�ncia.

67 - Trechos da carta escrita em 1855 pelo Cacique Seathe, do povo Duwamish, ao presidente dos Estados Unidos, podem ajudar-nos a compreender melhor esta quest�o. Esta carta foi escrita depois que o governo americano prop�s a compra do territ�rio daquele povo:

�Como se pode comprar o c�u, o calor da terra?

Tal id�ia nos � estranha. N�s n�o somos donos da pureza do ar ou do resplendor da �gua. Como podes ent�o compr�-los de n�s?...

Toda esta terra � sagrada para meu povo.

Cada folha reluzente, todas as praias arenosas, cada v�u de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir s�o sagrados nas tradi��es e na consci�ncia do meu povo.

Sabemos que o homem branco n�o compreende o nosso modo de viver. Para ele um torr�o de terra � igual ao outro porque ele � um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo aquilo quanto necessita. A terra n�o � sua irm�, mas sim sua inimiga e, depois de sug�-la, ele vai embora...

Sua gan�ncia empobrecer� a terra e vai deixar atr�s de si os desertos.

Uma coisa sabemos que o homem branco talvez venha um dia a descobrir: o nosso Deus � o mesmo Deus.

Julgas talvez que O podes possuir da mesma maneira como desejas possuir nossa terra. Mas n�o podes. Ele � Deus da humanidade inteira. E quer bem igualmente ao �ndio como ao branco. A terra � amada por Ele. Causar dano � terra � demonstrar desprezo pelo seu Criador...

N�s amamos a terra como um rec�m-nascido ama o bater do cora��o de sua m�e...O nosso Deus � o mesmo Deus e esta terra � querida por Ele�.

 

Conquistar a terra, garantir a vida

�Eu sirvo at� de adubo para minha terra,

mas dela eu n�o saio�.

(Samado, l�der Patax� H�-H�-H�e, +09/09/1998)

68 - A luta dos povos ind�genas para defender e garantir a posse de seus territ�rios j� dura cinco s�culos. Mas �, certamente, uma luta justa e aben�oada, porque  tem a finalidade de assegurar uma vida digna e plena destes povos t�o sofridos.

�Eu vi, eu vi a mis�ria do meu povo que est� no Egito. Ouvi seu clamor por causa dos opressores, pois eu conhe�o suas ang�stias. Por isso vim libert�-lo(...) e faz�-lo subir daquela terra para  uma terra vasta e boa, terra onde jorra leite e mel (Exodo,3:7-8)

69 - Como o Povo de Deus buscando e acreditando na Terra Prometida, os �ndios seguem nestes cinco s�culos, refazendo a utopia, lutando de muitas maneiras para conquistar a �terra sem males�.

70 - A invas�o portuguesa, no s�culo XVI,  � o in�cio desta luta. No entanto, nos trinta primeiros anos, os europeus dedicaram-se � explora��o das riquezas aqui existentes e � busca de metais preciosos. A luta pela posse do territ�rio se intensificou na quarta d�cada, quando a Coroa Portuguesa implantou as capitanias heredit�rias. As capitanias foram a forma encontrada por Portugal para ocupar e explorar o territ�rio, assim como para impedir a presen�a de outros povos nele, ou, inclusive, expulsar os que nele estivessem.

71 - Entretanto, gra�as � persist�ncia guerreira dos povos, que n�o se curvaram ao dom�nio Portugu�s, protagonizando incont�veis guerras, os �ndios conseguiram conquistas importantes, mesmo dentro do ordenamento jur�dico do Estado colonial portugu�s, que era obrigado a fazer concess�es. Foi assim que, j� em 1680, a Coroa Portuguesa, atrav�s de um alvar� r�gio, reconheceu aos ind�genas o t�tulo de �prim�rios e naturais senhores� de suas terras, mesmo que incidentes em terras concedidas atrav�s de regime de sesmarias[6]. Inicialmente direcionado �s �reas do Gr�o-Par� e Maranh�o, em 1758 este reconhecimento estendeu-se a todo o Pa�s.

72 - O reconhecimento formal do direitos dos povos ind�genas sobre suas terras n�o se constituiu, no entanto, em nenhuma medida de prote��o efetiva e as comunidades continuaram a perder suas terras para invasores, refugiando-se em outras �reas, sendo empurrados para  situa��es insustent�veis de vida. A Lei de Terras, editada em 1850 determinava que as terras ind�genas n�o eram pass�veis de coloniza��o, por j� estarem destinadas aos seus ocupantes tradicionais (ind�genas). Apesar desta garantia, a conseq��ncia mais evidente desta lei foi o confinamento dos �ndios em reservas, cercadas por grandes fazendas, muitas delas implantadas dentro da pr�pria terra ind�gena. A situa��o atual das terras ind�genas no sul do Pa�s � uma conseq��ncia direta da aplica��o da Lei de Terras.

73 - Na segunda metade do s�culo XIX, os governadores das prov�ncias, principalmente das regi�es Nordeste e Sudeste, para atender a interesses da elite rural, passaram a declarar, por decreto, a extin��o dos aldeamentos ind�genas, para que pudessem os respectivos terrenos ser revertidos ao patrim�nio das mesmas prov�ncias e da� �s c�maras municipais e particulares. Embora tivessem sido extintos seus aldeamentos, os �ndios n�o deixaram de existir e continuaram sendo �um problema� para o Pa�s, pois faziam frente �s fronteiras expansionistas, resistindo, para permanecerem em seus territ�rios. O SPI foi incumbido de fazer a integra��o pac�fica das popula��es ind�genas, para desobstruir gradativamente os territ�rios.  Ser �ndio era visto como uma condi��o transit�ria e estas popula��es seriam totalmente integradas � sociedade brasileira.

74 - A persist�ncia dos �ndios em reivindicar seus direitos fez com que a quest�o ind�gena emergisse pela primeira vez num texto constitucional. A Constitui��o Federal de 1934 reconheceu o respeito � posse territorial ind�gena e proibiu sua aliena��o, como mecanismo de garantia contra a investida de terceiros. Mas, novamente, a legisla��o n�o foi suficiente para conter o avan�o das invas�es, que na d�cada de quarenta, estavam voltadas para os territ�rios dos povos ind�genas no Brasil Central. Integrantes do SPI, a exemplo de Darcy Ribeiro e dos irm�os Villas Boas, achavam que a �nica forma de evitar o exterm�nio dos povos ind�genas era agrup�-los em grandes parques, onde estariam protegidos. A primeira experi�ncia neste sentido foi o Parque Ind�gena do Xingu, idealizado na d�cada de 50 e criado em 1961. Apesar de bastante elogiado como modelo de prote��o e garantia da sobreviv�ncia dos povos ind�genas, na verdade esses parques constitu�ram-se em uma esp�cie de dep�sito de �ndios, para onde foram transferidos diversos povos, atingidos pelo processo desenvolvimentista. Al�m de serem deslocados para terras desconhecidas, o que abalava significativamente suas formas de viver e seus conhecimentos sobre o meio ambiente, muitas vezes povos que mantinham rela��es hist�ricas de colabora��o, de troca de bens e at� de casamentos, foram separados e tiveram que reconstruir suas pr�prias estruturas sociais.

75 - Com a extin��o do SPI, em 1967, os governos militares passaram a conceber a figura da reserva ind�gena � pequenas por��es de terras destinadas aos grupos, n�o necessariamente em seus territ�rios tradicionais. Foi a estrat�gia encontrada para acomodar aqueles povos ao processo de ocupa��o das terras no centro e norte do Pa�s. Na d�cada de 70 emergem uma s�rie de conflitos pela posse da terra, em decorr�ncia das estrat�gias de ocupa��o do territ�rio brasileiro implantadas durante 470 anos. Nas regi�es Centro-Oeste e Norte encontrava-se o maior n�mero de povos e as mais variadas situa��es de contato. Havia povos que n�o eram mais considerados ind�genas, tais como os �caboclos� do Acre, incorporados ao trabalho nas frentes seringalistas, e os �caboclos� de Roraima, integrados �s fazendas dos invasores. Havia tamb�m povos desconhecidos, sem contato com a sociedade brasileira. Todos eles permaneciam em seus territ�rios tradicionais, que precisavam ser demarcados e protegidos das invas�es dos n�o-�ndios, pois estavam amea�ados pela viol�ncia e trucul�ncia caracter�sticas do processo de ocupa��o recente da regi�o amaz�nica. Os �ndios das regi�es Sul, Sudeste e Nordeste j� apresentavam uma situa��o totalmente diferenciada. Em fun��o de j� existir ali uma estrutura agr�ria mais consolidada, dada sua antiga ocupa��o, as popula��es ind�genas viviam confinadas em pequenas reservas, ou em comunidades dispersas, sem terra.

76 - Esses cen�rios embasaram o surgimento de v�rios grupos de apoio �s lutas dos �ndios pela demarca��o de suas terras. Conjugaram-se, desta forma, duas vontades e duas consci�ncias: a dos povos, com suas experi�ncias de v�rios s�culos de resist�ncia e a dos que ap�iam a causa ind�gena e s�o aliados estrat�gicos dentro da sociedade brasileira. O apoio de setores da sociedade trazia, no bojo, a cr�tica ao sistema agr�rio do Pa�s, atrav�s do qual se constituem e fortalecem os latif�ndios, sob  o peso da expuls�o de popula��es tradicionais.

77 - Este processo estimulou o esp�rito guerreiro dos povos ind�genas, recriando novas formas de luta, conscientes de que precisavam agir de maneira mais organizada para defender seus territ�rios e garantir a continuidade de suas vidas. E foi o protagonismo ind�gena, nos anos 70, que possibilitou conquistas significativas, tanto legislativas como na pr�tica concreta das demarca��es e garantia dos territ�rios. Ao mesmo tempo, gerou uma rea��o das elites no poder, que propuseram iniciativas que significavam frontal agress�o aos direitos ind�genas. Foi o caso da �campanha da emancipa��o� que, de forma obstinada, o Ministro do Interior, Rangel Reis, levou adiante na segunda metade da d�cada de 70. O projeto s� foi barrado a partir de uma mobiliza��o ampla dos povos ind�genas e de setores aliados da sociedade brasileira e internacional. O verdadeiro objetivo do projeto era a �emancipa��o das terras ind�genas�. Ou seja, liberar as terras para o avan�o do latif�ndio e da coloniza��o e ocupa��o dos espa�os pelo grande capital.

78 - Nesse contexto, os �ndios foram desenvolvendo formas diferenciadas de luta pela terra, desde as a��es de reivindica��o junto aos �rg�os p�blicos respons�veis pela quest�o ind�gena, at� as iniciativas pr�prias de recupera��o da terra invadida. Assim, surgiram as retomadas, express�o usada para designar a reconquista territorial, pr�tica comum nas regi�es Leste, Nordeste, Sul e Sudeste. O ato de retomar implica sempre o confronto direto dos �ndios com o invasor, j� que a posse ind�gena depende da expuls�o daquele. H�, portanto, muita viol�ncia praticada contra os povos ind�genas nestas iniciativas de luta para assegurar seus territ�rios.

79 - Na regi�o Norte h� experi�ncias de auto-demarca��o, onde os �ndios, antecipando-se � a��o do Estado, organizam-se e fazem a delimita��o de suas terras tradicionais, apoiando-se em assessoria t�cnica especializada. Em alguns casos, tem sido poss�vel estabelecer conv�nio com o �rg�o indigenista federal � Funai e coopera��o internacional, para o procedimento auto-demarcat�rio, assim como pleitear o reconhecimento das auto-demarca��es  j� realizadas.

80 - Durante a d�cada de 80, os povos ind�genas de todas as regi�es do Pa�s estiveram intensamente mobilizados para conquistar e garantir seus territ�rios. Enquanto isso, o governo investia no avan�o dos grandes projetos, colocando entraves e dificultando os processos de reconhecimento e demarca��o dos territ�rios ind�genas. Foram in�meras as mudan�as no processo de identifica��o e demarca��o das terras ind�genas, que passaram, em �ltima inst�ncia a depender da estrutura militarizada do MEAF (Minist�rio Extraordin�rio de Assuntos Fundi�rios).Na Amaz�nia, havia uma posi��o firmada, por parte dos militares e setores do governo, de que n�o se deveria demarcar terras ind�genas numa extens�o de 150 km da faixa de fronteira. Com isso, quase um ter�o da popula��o ind�gena da Amaz�nia teria que ser removida de seus territ�rios tradicionais, para atender a esses �crit�rios de seguran�a nacional�. O projeto Calha Norte, concebido no final da ditadura militar, e implantado a partir de 1986, tinha a clara inten��o de evitar a demarca��o de terras ind�genas na fronteira. Ao mesmo tempo em que previa toda uma ocupa��o desse espa�o por �popula��es confi�veis�, atrav�s da instala��o de bases militares, de projetos de coloniza��o e da constru��o de estradas para o desenvolvimento econ�mico dessas �reas. Para alguns analistas, tratava-se de um verdadeiro �plano genocida�.

81 - Na esfera institucional, os povos ind�genas tiveram duas conquistas importantes na segunda metade do s�culo XX: a primeira, com base no artigo 198 da Emenda Constitucional n.� 1 de 1969 � a lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que disp�e sobre o Estatuto do �ndio. A segunda,  muito mais abrangente, s�o os artigos 231 e 232 da Constitui��o Federal de 1988. A lei magna rompe com quase cinco s�culos de vis�o etnoc�ntrica, que apontava como �nico caminho poss�vel para os povos ind�genas a sua incorpora��o � Sociedade Nacional envolvente. O texto constitucional passou a reconhecer como origin�rios e imprescrit�veis os direitos ind�genas de posse permanente e usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, rios e lagos das suas �terras de ocupa��o tradicional�  determinando � Uni�o Federal o dever de demarcar as terras conforme os limites tradicionais, ou seja, de acordo com seus usos, costumes e tradi��es (CF/88 art. 231).

Demarcar e proteger as terras ind�genas � uma responsabilidade negligenciada pelo Estado

�Quando as popula��es ind�genas s�o privadas do seu territ�rio, perdem  um elemento vital da pr�pria exist�ncia e correm o risco de desaparecer enquanto povos� ( Papa Jo�o Paulo II, 8 de dezembro de 1988).

82 � A demarca��o das terras ind�genas � um drama, que pode ser contado em cap�tulos, na longa hist�ria de omiss�o do governo federal. Em 1973 o Estatuto do �ndio ( Lei 6001) estabeleceu um prazo de cinco anos para que todas as terras ind�genas fossem demarcadas. A Constitui��o de 1988 reafirmou este prazo. No entanto, quase 30 anos se passaram e apenas 35% das terras ind�genas t�m conclu�do o procedimento de demarca��o. 

83 � A demarca��o depende de decretos presidenciais, e um presidente sempre desfaz o que o anterior prop�s. Foi assim que, em janeiro de 1996, o presidente Fernando Henrique revogou o Decreto 22/91 do ex-presidente Collor, editando o Decreto 1.775/96 que colocou em revis�o todas as terras ind�genas que j� estavam demarcadas, gerando assim uma situa��o de muita instabilidade. De acordo com o Decreto 1.775, apenas aquelas terras registradas e reservadas/dominiais s�o consideradas realmente demarcadas. Todas as outras ainda est�o sujeitas a revis�o, podendo ser reduzidas ou n�o demarcadas,  dependendo do entendimento do governo.

84 - O decreto abriu a possibilidade de que terceiros particulares fa�am uso de t�tulos de posse ou propriedade considerados nulos pela Constitui��o Federal de 1988, para se oporem aos limites propostos ou demarcados. Permite tamb�m que Estados e Munic�pios se oponham �s demarca��es. Em apenas nove meses (janeiro a outubro de 1996), 155 �reas ficaram sujeitas a contesta��es, possibilitando que o governo federal, a partir dos pedidos encaminhados pelos interessados, procedesse ou n�o � revis�o dos limites das demarca��es de terras. Ficaram pass�veis de revis�o desde as terras que j� tivessem laudo de identifica��o publicado pela Funai, at� aquelas j� homologadas pela Presid�ncia da Rep�blica. Apesar de a Constitui��o de 1988 ter definido que todas as terras ind�genas deveriam ser demarcadas no prazo de 5 anos, atualmente apenas 32% (222 �reas) das terras ind�genas do Pa�s se encontram com a demarca��o conclu�da. Os outros 68% (519 �reas) ainda aguardam procedimentos administrativos.

85 - Diante da lentid�o do governo, os povos ind�genas v�o encontrando suas pr�prias formas para apressar o processo de demarca��o. Vamos ler com aten��o o relato dos professores ind�genas Xukuru, contando a experi�ncia do seu povo:

� Como as autoridades n�o terminam o processo de homologa��o e desintrus�o de nossas terras, n�s �ndios � que temos de tomar provid�ncias para que isso aconte�a e por isso � que n�s fazemos as retomadas de nossas terras.

� como disse o nosso cacique Xic�o: �Para se fazer a retomada tem que se fazer uma grande programa��o porque a terra estava nas m�os de um homem que se dizia muito poderoso, um vereador daqui de Pesqueira (...). E a gente sem recurso nenhum, o pessoal passando fome mesmo, em estado de mis�ria e conseguimos nos organizar junto �s entidades, junto ao Cimi e pedir apoio a v�rias entidades internacionais. Conseguimos reconquistar e o pessoal hoje j� vive uma vida muito diferente�.

A primeira retomada foi a de Pedra D��gua no in�cio de novembro de 1990, com 110 hectares que haviam sido arrendadas ilegalmente a posseiros da regi�o, onde implementaram um projeto agr�cola subsidiado pela prefeitura local. A retomada da Pedra D��gua foi um passo decisivo na nossa luta porque l� abriga a mata onde se localiza a Pedra Sagrada do Reino do Ororub�. � um lugar sagrado onde ganhamos for�a para continuarmos nossa luta.

Em fevereiro de 1992, ap�s v�rias queixas de parentes de que os fazendeiros n�o estavam deixando os �ndios botarem suas ro�as e tirarem seu sustento, cerca de 1000 Xukuru retomaram a fazenda Ca�pe de Baixo, com 1.200 ha. At� os meados de 1990, o vereador �arrendava� aos �ndios para plantio de meio ou mesmo contratava-os como m�o-de-obra barata. Atualmente, cerca de 22 fam�lias est�o morando na fazenda retomada e 180 �ndios est�o trabalhando na terra, fazendo ro�ados e mutir�o para o fabrico de telhas e tijolos para constru��o de casas.

Os conflitos por causa das terras agravaram-se e em 1992 foi assassinado o filho do paj� (Jos� Everaldo Rodrigues Bispo). Revoltado, um grupo Xukuru incendiou a casa grande e ocupou a Fazenda Queimadas, em Cana Brava.

  Ainda em 1994, houve outra retomada na Aldeia P� de Serra, 3 hectares de terras improdutivas que a �gua n�o consegue cobrir quando est� cheia, pois quando a barragem seca, a quantidade de terra aumenta. Hoje, 8 fam�lias est�o trabalhando plantando verduras e legumes.

Em mar�o de 1998 houve a retomada da Fazenda Tionante e S�tio do Meio, onde os �ndios est�o ocupando com o objetivo de produzir o seu pr�prio sustento. A luta pela terra continua, sendo a maior prioridade do povo Xukuru.

Nas aldeias de Pedra D��gua e Ca�pe, a situa��o econ�mica melhorou em 90%, pois j� est�o cultivando terras e o �ndice de destrui��o das matas quase n�o existe. Nas demais �reas os �ndios vivem o sonho da posse das terras.

Atualmente a �rea ind�gena Xukuru do Ororub�, � composta de 7.842 habitantes, e temos um n�mero de aproximadamente 1.807 fam�lias, distribu�das em 23 (aldeias). Moram tamb�m aproximadamente 200 fam�lias nos bairros de Pesqueira.

A terra Xukuru encontra-se com sua demarca��o f�sica conclu�da. Ap�s a demarca��o do territ�rio Xukuru da Serra do Ororub�, foi constatado que a �rea abrange 27.555 ha de terras. Esperamos apenas a homologa��o destas terras. Soubemos que o processo encontra-se no gabinete do Ministro da Justi�a. Esta homologa��o � bastante esperada, com indeniza��o dos posseiros, para que seja poss�vel a evas�o dos mesmos das nossas terras.

Fruto da nossa luta com o Cacique Xic�o, conseguimos a identifica��o e delimita��o, faltando s� a homologa��o e o desintrusamento de nossas terras. O nosso cacique por conta dessa luta sofreu muitas persegui��es e por fim foi assassinado no dia 20 de maio de 1998, na cidade de Pesqueira, por um pistoleiro.� [7]

Retomar a terra, recobrar a esperan�a

�Vai, re�ne os anci�os de Israel e dize-lhes: Jav�, o Deus de nossos pais viu o seu sofrimento e nos lavar� a terra prometida.�( �xodo, 3: 16-18)

86 - As retomadas  de terra s�o a��es de grande significado na luta pela terra, porque s�o  iniciativas das pr�prias comunidades ind�genas. S�o geralmente motivadas por um �chamado� dos ancestrais, dos encantados, dos esp�ritos de luz. Nas retomadas se articulam tr�s princ�pios: o princ�pio da realidade, o princ�pio da ruptura e o princ�pio da esperan�a. A luta pela terra assume um valor simb�lico de �xodo e de busca da �terra sem males�, a terra representa o n�cleo de um outro modelo de vida. O movimento ind�gena e tudo o que acontece na aldeia tem um valor educativo. Se a "retomada do sistema educacional" pelos povos ind�genas significa assumir a escola para construir uma sociedade que n�o produz menores abandonados nem drogados, a retomada das terras ind�genas - al�m de ser uma vit�ria contra o latif�ndio e a repara��o de uma injusti�a - � um projeto pedag�gico que mostra como "produzir para viver" em vez de "viver para produzir".

87 - O "lucro" est� na conquista e retomada de espa�os de vida e no orgulho de pertencer a um povo ind�gena, na auto-estima da comunidade, n�o na acumula��o de bens ou no neg�cio de alguns. Ao retomar as suas terras, as comunidades est�o reafirmando seu projeto hist�rico de bem viver, de liberdade e de dignidade, como o fazem, tamb�m,  outros movimentos como o dos sem-terra, o movimento negro e o movimento feminista. S�o movimentos que reagem � nega��o de um direito fundamental, a partir do qual se concretiza e se assegura a vida em abund�ncia. Para ilustrar este movimento de verdadeira resist�ncia e protagonismo, relatam-se alguns fatos:

88 - Expulsos de sua �rea Caramuru-Catarina-Paraguassu/BA, que desde 1937 foi progressivamente reduzida e atrav�s de "t�tulos arrendat�rios", liberada para a invas�o, os Patax� H�-H�-H�e viveram at� 1982 como exilados em suas pr�prias terras.[8] Com a terra perderam, tamb�m a sua l�ngua e a possibilidade de realizar os seus rituais. Muitos foram recolhidos ao Centro de Recupera��o Krenak/MG, uma esp�cie de �Febem para os �ndios�, ou se refugiaram na Fazenda Guarani, em Minas Gerais. Em abril de 1982, os Patax� H�-H�-H�e retomaram a �rea da ent�o denominada "Fazenda S�o Lucas", de 1079 hectares, e reiniciaram a luta pelo seu territ�rio tradicional e por sua mem�ria. Hoje, o Povo Patax� H�-H�-H�e, com cerca de 1.800 ind�genas aldeados, est� de posse de 3.269 hectares. Seu territ�rio de 54.100 hectares, demarcado em 1926, ainda est� invadido por mais de 380 fazendas. A morosidade da justi�a e a impunidade perpetuam todos os tipos de viol�ncia: assassinatos de lideran�as, seq�estros, torturas f�sicas, esteriliza��o criminosa de suas mulheres. Na recente hist�ria patax� se encontra condensada a viol�ncia de 500 anos contra os povos ind�genas. No final de 1988, o l�der Jo�o Cravim, pai de tr�s filhos, foi brutalmente assassinado numa emboscada  na estrada que liga a aldeia � cidade de Pau Brasil/BA. Nove anos depois, no dia 20 de abril de 1997, o irm�o de Jo�o Cravim, Galdino Jesus dos Santos, foi queimado vivo em Bras�lia, enquanto dormia numa marquise de �nibus. Ele estava com um grupo de lideran�as, cobrando da Justi�a provid�ncias para regulariza��o de suas terras. O crime que chocou o pa�s, at� hoje clama por justi�a. No entanto, a luta dos Patax� H�-H�-H�e pela recupera��o de suas terras continua. Retomaram alguns dos seus rituais, nos quais aconselham-se com os "encantados", esp�ritos ancestrais que v�m � terra para amparar o povo. Embalados pelos sons dos marac�s e os cantos da comunidade, os Patax� realizam a "Dan�a do Tor�", ritual l�dico que marca os acontecimentos importantes no territ�rio reconquistado.

89 - Em outro ponto do Pa�s, no dia 20 de dezembro de 1998, 58 fam�lias da comunidade ind�gena de Cerro Marangatu do povo Guarani-Kaiov� retomou a fazenda "Fronteira", de onde havia sido expulsa em 1959.[9] At� o dia 19 de dezembro, a comunidade, com uma popula��o de 380 pessoas, vivia comprimida em um peda�o de terra de 8,5 hectares, localizado no distrito de Campestre, no munic�pio de Ant�nio Jo�o (MS). Mar�al de Souza, assassinado em 1983, residia, na �poca da sua morte, junto � comunidade do Cerro Marangatu. Ele se op�s ao processo de encurralamento dos ind�genas. Desde 1959, a comunidade Guarani-Kaiov� alimentava o sonho de retornar � sua terra. Ap�s dias de rezas e conversa��es, optou pela retomada e liberta��o de sua terra, descaracterizada pelo desmatamento e pelas pastagens de gado.

90 - Na madrugada de 11 de maio de 2000, um grupo de duzentos Kaingang das �reas ind�genas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul acompanhou os seus "parentes" sem-terra do Toldo Imbu (SC), na retomada do territ�rio dessa comunidade.  51 anos antes, os Kaingang do Toldo Imbu haviam sido expulsos de suas terras pelo pr�prio Servi�o de Prote��o ao �ndio (SPI). Amarrados na carroceria de dois caminh�es, foram levados para a sede do posto da atual �rea Ind�gena Xapec�, no vizinho munic�pio de Ipua�u (SC). Virg�nia Mendes, �ndia centen�ria que em 1949 foi uma das pessoas colocadas naqueles caminh�es, era uma das mais felizes no momento da reocupa��o da terra. Ap�s meio s�culo de ex�lio, voltou para ficar. Lutar n�o foi em v�o. Lamentavelmente, esta terra est� hoje invadida pela Escola T�cnica Municipal de Abelardo Luz. Um m�s mais tarde, na madrugada de 10 de julho de 2000, cerca de duzentos Guarani, procedentes de �reas ind�genas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, retomaram parte de suas terras de Ara�a�, vendidas pela Colonizadora Sul Brasil, a partir da d�cada de 1920. Com a invas�o de suas terras, os Guarani foram morar nas �reas Ind�genas de Nonoai, Votouro e Serrinha (RS), basicamente terra dos Kaingang. Liderada pelo cacique Pedro Barbosa e  lideran�as da aldeia M'barac� (AI Nonoai), a comunidade est� acampada em 49 hectares localizados no munic�pio de Saudades, oeste de Santa Catarina, em �rea ocupada por uma serraria.

91 - Nesta vontade corajosa de reconquistar a terra, espa�o de mem�ria, de culto, de realiza��o plena da vida, os povos ind�genas nos ensinam diferentes caminhos de luta. Caminhos que n�o se constr�em somente com bra�os e m�os, mas com coragem, com f�, com rituais, articulando passado, presente e futuro, contando com a for�a dos ancestrais. Apontam para as exig�ncias da justi�a e para o mist�rio da esperan�a. Tanto o movimento ind�gena quanto o movimento Sem-Terra lutam para reconstruir uma sociedade sem exclus�o e para libertar a terra da ditadura do latif�ndio. E a reconstru��o desta nova sociedade p�e em quest�o tamb�m os modelos de desenvolvimento que t�m por base a  explora��o e exaust�o dos recursos ambientais. � necess�rio reconstruir tamb�m as rela��es com a natureza e com o meio ambiente e neste campo, podemos aprender com os povos ind�genas, bebendo de sua sabedoria milenar que confirma: n�o foi o homem que teceu a trama da vida; ele � apenas um de seus fios. E se o tecido adoece, toda a vida adoece com ele. 

92 � Nesta vis�o integrada da vida, como um tecido composto por muitos fios, situa-se tamb�m a quest�o ambiental. Nos dias de hoje esta � uma tem�tica que est� sempre em pauta. Todos os pa�ses, em especial aqueles do chamado primeiro mundo, dizem-se preocupados com a qualidade de vida no planeta. Por este motivo assistimos nos �ltimos anos a v�rias iniciativas de governos, organismos internacionais, tais como a Eco 92, Agenda 21 etc., que pretendem propor mecanismos de prote��o do meio ambiente. Surgiram, em fun��o de toda esta mobiliza��o ambientalista, alguns conceitos considerados �ecologicamente corretos�, que t�m como refer�ncia o desenvolvimento sustent�vel. Como o pr�prio termo sugere, a preocupa��o primeira n�o � com o meio ambiente, mas com o desenvolvimento e, consequentemente, com as possibilidades de explora��o dos recursos naturais existentes, exaurindo-lhes toda a capacidade de produzir capital. Desta forma, a sustentabilidade almejada � a do sistema econ�mico e n�o dos seres humanos e toda a vida existente no planeta. A verdadeira sustentabilidade planet�ria depende de mudan�as profundas na concep��o de homem e de natureza, e de implementa��o de um outro modelo de sociedade, onde o determinante n�o seja o capital, o lucro, mas a vida dos homens e mulheres interagindo com toda a natureza.

93 - Na l�gica ind�gena, que considera a  vida na integralidade,  a utiliza��o dos recursos naturais n�o � predat�ria. N�o � parte do sistema econ�mico a exaust�o dos recursos, por isso n�o � necess�rio criar leis para evitar o corte de �rvores, ou proibir a pesca ou ainda determinar quantos metros c�bicos ser�o cortados, nem quantos quilos poder�o ser pescados.

94 - Na sociedade capitalista, no entanto, as leis s�o um instrumento indispens�vel para frear a gan�ncia, o lucro inconseq�ente, concentrado em m�os de minorias privilegiadas. Muitas vezes a pr�pria lei assegura e  legitima essa ordem social desigual. A quest�o ambiental tamb�m n�o foge � regra. Nos notici�rios podemos ver agricultores pobres sendo presos por pegar um tatu, derrubar uma �rvore, pescar em tempo de desova, mas n�o conhecemos casos em que empres�rios da madeira, minera��o e outros, s�o punidos pela explora��o ilegal e destrui��o do meio ambiente.

95 - Os �ndios s�o tamb�m v�timas da aplica��o injusta das leis ambientais. Mais grave ainda, eles v�m sendo acusados injustamente por v�rios setores do movimento ambientalista brasileiro, de estarem depredando as �reas destinadas � preserva��o ambiental. A acusa��o est� sendo justificada com base na falaciosa argumenta��o de conflitos gerados pela sobreposi��o de unidades de conserva��o em terras ind�genas. Chamamos aqui a aten��o para o perigo ideol�gico desta falsa quest�o, na medida em que ela promove a invers�o dos pap�is historicamente desempenhados pelos respectivos atores sociais. No caso dos povos ind�genas, n�o se faz necess�rio recorrer a registros documentais para comprovar o lugar sociol�gico sempre ocupado por eles. A incid�ncia das unidades de conserva��o em seus territ�rios tradicionais constitui prova inconteste de que, em suas rela��es com a natureza, os povos ind�genas s�o seus protetores e defensores.

96 - Mesmo assim, os povos ind�genas s�o v�timas das press�es exercidas por empresas madeireiras, mineradoras, hidrel�tricas, hidrovias, gasoduto, etc. que, em suas pr�ticas de aliciamento, se utilizam, inclusive de inst�ncias representativas dos poderes do Estado brasileiro. Por esse motivo, acontecem casos em que lideran�as e at� comunidades ind�genas inteiras s�o cooptadas e envolvidas em empreendimentos predat�rios. Neste contexto, os povos ind�genas, os pequenos agricultores, os ribeirinhos, e tantos outros tornam-se �ref�ns� do modelo de desenvolvimento a que o pa�s est� submetido. S�o for�ados a situa��es que somente interessam �queles que det�m o poder econ�mico: os latifundi�rios e os empres�rios interessados nas �reas ind�genas.

97 - A �bandeira ambiental� � utilizada muito mais como uma justificativa diante da opini�o p�blica, do que, propriamente, como uma pol�tica efetiva de preserva��o. Como exemplo disso, podemos destacar a implanta��o recente do plano de desenvolvimento Avan�a Brasil, do Governo Federal. Conforme prev� um estudo realizado por cientistas brasileiros e norte-americanos, este plano provocar� a destrui��o de 42% da Amaz�nia brasileira, nos pr�ximos 20 anos. Segundo o mesmo estudo, em 2020, apenas 4,7 % da floresta permanecer� intacta. (Jornal Folha de SP 12/11/2000).

 

Conquistar o direito a uma assist�ncia adequada   de sa�de

98 - Para todos os povos ind�genas, como tamb�m para n�s,  sa�de � uma condi��o para a vida plena. Aprendemos da vis�o ind�gena que ter sa�de � muito mais do que estar sem doen�a � ter alegria, poder trabalhar, fazer festa, estar protegido pela for�a dos paj�s e rezadores e viver de acordo com a pr�pria cultura. Portanto, n�o � poss�vel assegurar a sa�de limitando esta dimens�o da vida humana apenas ao tratamento pela medicina ocidental e, pior ainda, investindo apenas na medicina curativa. � preciso garantir, antes de tudo, a qualidade de vida, que se conquista com a terra demarcada e garantida, com um meio ambiente protegido, que assegure a abund�ncia e a fartura, e a possibilidade de viver plenamente suas culturas e cren�as, sem imposi��es, preconceitos e discrimina��es.

99 - Desde os primeiros anos da invas�o e coloniza��o europ�ia, os povos ind�genas do Brasil sofrem em fun��o do descaso, da omiss�o e da sistem�tica viola��o de seus direitos fundamentais.

100 - No in�cio do s�culo XX, com a abertura das frentes de expans�o �econ�mica� - estradas, ferrovias, linhas telegr�ficas - numerosos massacres foram cometidos, sendo que os maiores �ndices de mortalidade ocorreram em fun��o das doen�as transmiss�veis. Povos inteiros foram dizimados e muitos outros tiveram uma dr�stica redu��o populacional, com risco de extin��o, como os Myky, Juma, Deni, Assurini, Tapirap�, Arara, Gavi�o, Waimiri-Atroari, Yanomami e Av�-Canoeiro.

101- Uma das formas mais perversas de dizima��o f�sica, cultural e �tnica dos in�meros povos ind�genas foi o alastramento de epidemias infecciosas, cujo impacto era favorecido pelas mudan�as no seu modo de vida ou pelas fugas constantes que os empurravam para ambientes pouco conhecidos. A coloniza��o e impostas aos habitantes destas terras trouxeram a escravid�o, trabalho for�ado, maus tratos, confinamento e a sedentariza��o compuls�ria em aldeamentos e internatos.           

102 - Esperava-se que, a partir da cria��o do SPI, o governo estabelecesse a��es constantes de combate � causas de doen�as e de mortalidade nas aldeias. Mas o SPI implementou apenas algumas a��es, de forma muito desarticulada, para tentar combater os grandes surtos de sarampo, mal�ria, tuberculose e outras doen�as transmiss�veis. Essas a��es emergenciais, que marcam at� hoje a a��o do Estado, controlam apenas momentaneamente o alastramento das doen�as.  S�o medidas paliativas, que n�o atacam as verdadeiras causas do problema.

103 - A FUNAI, criada em 1967 ap�s a extin��o do SPI, passou a realizar servi�os espor�dicos de sa�de e supervis�o em algumas comunidades ind�genas, atrav�s de Equipes Volantes de Sa�de. Sem contar com uma estrutura administrativa, financeira e de recursos humanos capacitados para atender �s demandas existentes na �rea de sa�de, a FUNAI acabou por legitimar a omiss�o e a viol�ncia. Mesmo com as mudan�as na Constitui��o Federal, a pol�tica oficial de atendimento � sa�de ind�gena continuou caracterizada apenas por a��es fragmentadas e emergenciais, especialmente quando estes casos ganham repercuss�o nacional.         

104 - Diz a Constitui��o Federal que a sa�de � um �direito de cidadania�, e portanto, deve ser assegurada a todos, sem exce��o. No entanto, as condi��es de sa�de no Brasil s�o prec�rias. As pol�ticas oficiais s�o ainda insuficientes, submetendo, freq�entemente, as popula��es das cidades e do interior, das aldeias e povoados a situa��es degradantes de atendimento, que desrespeitam a dignidade humana e p�em em risco a pr�pria vida. Para os povos ind�genas, esse atendimento deveria, al�m de ser adequado,  ter um car�ter de integralidade, respeitando as diferentes maneiras ind�genas de compreender e tratar os processos de sa�de e doen�a.

105 - Buscando alternativas para essa situa��o de omiss�o e descaso do Estado, muitas comunidades ind�genas passaram a participar de encontros e momentos de discuss�o sobre a sa�de. Nesse processo, foram organizadas e realizadas tr�s Confer�ncias Nacionais de Sa�de Ind�gena, em 1986, em 1993 e em 2.000, com o objetivo de repensar o modelo de assist�ncia � sa�de ind�gena, com a participa��o de representantes ind�genas e de amplos setores da sociedade civil. Estas Confer�ncias propuseram  a estrutura��o de um modelo de aten��o integral e diferenciada, para as comunidades ind�genas e o acesso universal �s a��es e servi�os p�blicos de sa�de. O atendimento dever� realizar-se nas aldeias, contemplando a forma��o e qualifica��o de agentes de sa�de escolhidos pelas comunidades, assist�ncia, saneamento b�sico, nutri��o, habita��o, meio ambiente, demarca��o de terras, educa��o sanit�ria, numa vis�o abrangente e integral da sa�de.

106 - Uma lei aprovada pelo Congresso Nacional em 1999, conhecida como �Lei Arouca�, incumbe o governo por criar as condi��es para um atendimento pr�prio para as popula��es ind�genas, com a cria��o de um subsistema de aten��o diferenciada. A terceiriza��o s� � v�lida se respeitar esses princ�pios.

107 - Refletir sobre as reivindica��es ind�genas para a sa�de, como para a educa��o, � importante numa an�lise da quest�o ind�gena na sua integralidade. Vida, autonomia e  liberdade n�o se conquistam sem que haja condi��es adequadas para manter a sa�de, para educar conforme as tradi��es e para celebrar tudo isso de acordo com as cren�as e a religiosidade.

Recriar escolas que respeitem o jeito de ser ind�gena

108 - A educa��o numa comunidade ind�gena n�o � uma tarefa realizada apenas pelos pais ou parentes de uma crian�a. A educa��o e a inser��o desta crian�a na vida da aldeia � uma tarefa coletiva. Toda a comunidade est� envolvida e empenhada em tornar cada crian�a um membro integral de sua cultura, participando de toda a vida, gozando de todos os benef�cios gerados no trabalho coletivo.

109 - Pela educa��o se transmite e se reconstr�i a cultura, se atualizam as tradi��es e se vivenciam concretamente os valores da f�, da reciprocidade, que � uma forma ampla do exerc�cio da solidariedade, no dia-a-dia. Neste processo integral da educa��o ind�gena, a escola tamb�m passa a ter seu lugar. Ela � vista pelos povos ind�genas como uma necessidade, um lugar em que se pode conhecer e construir id�ias, para entender melhor a realidade que os cerca, e, sobretudo, para lutar melhor pelos direitos coletivos.

110 - Mas a escola teve, e ainda tem em muitas aldeias, um papel hist�rico na domina��o e  na submiss�o dos povos ind�genas. Trazendo na bagagem a id�ia de que a cultura, a ci�ncia, a sabedoria, a arte e a religi�o verdadeiras s�o as da sociedade ocidental, a escola serviu para desvalorizar muitos fundamentos da vida ind�gena.

111 - Mar�al Tup�-i Guarani avaliou com sabedoria que: �o ensino aplicado at� hoje tem matado o que h� de mais sagrado para n�s, que � a nossa cultura. Se conservarmos o que � sagrado para n�s seremos um povo que vai caminhando na liberta��o�

112 - A escola foi imposta a muitas comunidades ind�genas, desde os tempos da coloniza��o, com interesses integracionistas, ou seja, para abrir a estrada tortuosa que leva os �ndios a viver como exclu�dos, numa sociedade que cultua a  acumula��o de bens,  a  competi��o e o individualismo.

113 - A partir da d�cada de 70, quando muitas comunidades passaram a lutar no campo das leis, das id�ias, dos discursos, a escola passou a ter uma utilidade concreta: vista como um dos meios de conscientiza��o na conquista dos direitos. A escola pode ser um lugar onde se aprende a ler � letras, leis e realidades,  a escrever � cartas, den�ncias, relatos de viol�ncia  e a conhecer melhor o funcionamento da sociedade n�o-�ndia. Essas possibilidades novas para a escola fazem germinar a vontade de transform�-la, de construir uma educa��o escolar espec�fica e diferenciada, que respeite as formas pr�prias de pensar dos povos ind�genas, suas sabedorias, suas vis�es de mundo e que coloque tamb�m � sua disposi��o as conquistas da ci�ncia, necess�rias � vida cotidiana, ao desenvolvimento e aos embates pol�ticos. 

114 - A vontade de transformar a escola tem como raiz uma busca muito mais ampla, que a vontade de conquistar, pelas pr�prias m�os, o respeito negado historicamente, a liberdade tantas vezes amea�ada e a possibilidade de planejar e construir seu pr�prio futuro. Desta disposi��o coletiva em construir outros modelos de escola, nascem os movimentos de professores ind�genas, que promovem encontros, reflex�es, reivindica��es e um avan�o  importante  na conceitua��o  de �escola ind�gena� , a partir da discuss�o em muitas aldeias da �escola que queremos ter�. Assim, v�o definindo princ�pios para as suas escolas, compartilhando experi�ncias e buscando maneiras de organizar o trabalho, que respeitem as tradi��es, as l�nguas, as cren�as e, sobretudo, a vontade de cada comunidade.

Assegurar a prote��o dos territ�rios dos Povos Livres

115 - Nos meios indigenistas, os povos livres s�o mais comumente designados como �ndios, grupos ou povos �isolados�, �arredios� ou �sem contato�. Mas todas essas designa��es partem de um referencial que tem como pressuposto o fato de que seria inevit�vel e at� mesmo desej�vel, o estabelecimento de rela��o progressiva e cont�nua entre esses povos e a sociedade brasileira.

116 - O termo �livres� � uma designa��o que parece ser mais apropriada para identificar esses grupos, porque descarta a perspectiva da necessidade absoluta da �pacifica��o� daqueles povos ind�genas que sempre fizeram quest�o de guardar dist�ncia da sociedade brasileira. S�o povos livres, portanto, todos os que, ao longo dos �ltimos cinco s�culos, optaram por se manter independentes da �civiliza��o�, que foi imposta nas terras brasileiras � quase totalidade dos povos nativos. At� os dias de hoje, os povos livres procuram viver de forma aut�noma, preservando condi��es de vida relativamente originais, vivendo da ca�a, da pesca, da coleta e da agricultura de subsist�ncia. Evitam o estabelecimento de rela��es, at� mesmo com outros povos ind�genas que habitam as proximidades de seus territ�rios. Resistem � invas�o de seus dom�nios territoriais e, quando n�o podem mais enfrentar os invasores, acabam recuando ao seu avan�o, procurando locais mais inacess�veis aos agressores. Foram essas as formas encontradas pelos povos livres, para continuarem independentes ao longo de sucessivos processos de expans�o e ocupa��o territorial e econ�mica no Pa�s.

117 - A realidade vivenciada pelos povos livres, nos cen�rios que compuseram os �ltimos 500 anos, � extremamente grave. E a sua trajet�ria contempor�nea revela e denuncia a vergonhosa continuidade de um processo de exterm�nio de povos ind�genas inteiros, agora praticado com outros meios e em outros contextos. Resistindo para garantir a liberdade, n�o raras vezes, os povos livres v�m pagando um pre�o bastante alto. No decorrer do s�culo XIX, as frentes de expans�o territorial e de ocupa��o econ�mica passaram a avan�ar ainda mais ferozmente sobre os seus territ�rios, promovendo a persegui��o violenta e a elimina��o f�sica daqueles que ofereciam resist�ncia. A partir de meados do s�culo XX, a implanta��o de projetos governamentais de cunho desenvolvimentista, conjugados ao exerc�cio de uma pol�tica indigenista orientada pela perspectiva de integra��o dos povos ind�genas �� comunh�o nacional�, foram tamb�m respons�veis pelo quase desaparecimento de muitos povos.

118 - Em todos esses casos, a interven��o do �rg�o indigenista � seja o SPI, seja a FUNAI � foi conduzida segundo os interesses de pol�ticas desenvolvimentistas e integracionistas. Respons�vel pelo contato, o �rg�o indigenista atuava como agente �pacificador� dos povos livres, for�ando-lhes o contato, com a finalidade de, ora possibilitar a constru��o de um empreendimento, ora para evitar ataques e assaltos dos que resistiam � instala��o de outros brasileiros em seus territ�rios. E o resultado desses contatos compuls�rios,  significou dr�stica redu��o de popula��o ind�gena, v�tima das armas de fogo dos invasores, ou de epidemias.

119 - Nas d�cadas de 70 e 80, devido � atua��o do Cimi, da Opera��o Amaz�nia Nativa (Opan) e de uma s�rie de outras entidades que atuam com o mesmo objetivo, os povos livres conseguiram conquistar solidariedade e apoios significativos na sociedade brasileira, a fim de que a sua vontade fosse respeitada e, assim, tamb�m impedir a continuidade de massacres. Foi ent�o que o Cimi, a Opan e a Miss�o Anchieta come�aram, por meio de experi�ncias concretas com povos livres em situa��o de risco, no Mato Grosso e no Amazonas, a demonstrar que � poss�vel estabelecer com eles uma rela��o respeitosa e promissora, que n�o resulte em depopula��o e depend�ncia. Essas experi�ncias, especificamente junto aos povos M�nk�, Enauen�-Nau� e Suruah�, partiram da premissa b�sica de reconhecer e de afirmar os direitos hist�ricos desses povos aos seus territ�rios tradicionais e � sustentabilidade de seus projetos de vida. Foi somente na d�cada de 90, que a FUNAI, finalmente, adotou uma nova perspectiva de atua��o junto aos povos livres, reconhecendo que a melhor pol�tica � a de respeitar a sua vontade e, consequentemente, de n�o mais proceder a contatos for�ados.

Reafirmar e fortalecer a identidade � a luta dos Povos Ressurgidos

120 - Em fun��o da pol�tica adotada pelos governos, desde o tempo da col�nia, muitos povos ind�genas foram sendo extintos, seja atrav�s dos sucessivos massacres (genoc�dio), seja atrav�s de repress�o cultural e religiosa e muitos foram considerados extintos por decreto. O governo imperial editava um decreto dizendo: �a partir desta data deixam de existir os aldeamentos ind�genas da Prov�ncia do Cear�, Bahia...�.Assim, durante d�cadas e at� s�culos, muitos povos passaram a ser considerados extintos. Na maioria dos casos, as pessoas sobreviventes viviam dispersas por v�rias regi�es do Brasil. Grande n�mero deles serviu, durante v�rios anos, como m�o-de-obra barata para fazendeiros invasores de suas terras. Viveram, portanto, como escravos dentro de seus territ�rios tradicionais. Passados muitos anos, eles voltaram a aparecer e reivindicam seus direitos. S�o os chamados povos ressurgidos.

121 - � dif�cil compreender como, ap�s tantos anos de dispers�o, impedidos de vivenciar suas pr�ticas culturais, sem realizar seus rituais, festas, sem falar sua l�ngua, sem ter mais uma organiza��o social pr�pria, as pessoas conseguem reencontrar-se, reorganizar-se enquanto grupo social distinto dentro da sociedade dita nacional e reivindicar o direito de serem reconhecidas e respeitadas como tal. Mais ainda, assumir uma identidade �tnica vinculada �s popula��es denominadas aut�ctones, os �ndios aqui encontrados pelos portugueses em 1500.

122 - Para os n�o �ndios est� posto o desafio de compreender, respeitar e apoiar esta iniciativa. Isto demanda um longo processo de conscientiza��o pois, durante d�cadas, foi constru�do pela sociedade um conceito estereotipado de �ndio, determinado por caracter�sticas f�sicas, onde sua identidade era definida a partir do exterior. Era sempre o de fora, o estudioso, o pol�tico, o indigenista quem definia se algu�m era ou n�o �ndio, a partir de seus conceitos teoricamente formulados.                 123 -  Foi com base nesses conceitos que, ao final do s�culo XIX, j� n�o se falava mais em povos ind�genas no Nordeste. �quela �poca, eles j� haviam sofrido um processo de total expropria��o de seus territ�rios. N�o eram mais reconhecidos enquanto coletividades e seus membros eram chamados de �remanescentes� ou �descendentes de �ndios�, de forma gen�rica, como indica a express�o. No come�o do s�culo XX, esses �remanescentes� passaram a se mobilizar, exigindo a demarca��o de, suas terras tradicionais. Assim, o governo brasileiro foi obrigado a reconhec�-los enquanto povos distintos. � por este motivo que na classifica��o das �reas culturais ind�genas apresentada por Darcy Ribeiro[10], s�o identificados 13 povos na regi�o Nordeste, nos anos 60, chegando hoje a 37. Isto foi poss�vel gra�as � intensifica��o da movimenta��o ind�gena a partir dos anos 70, mas tamb�m ao apoio de v�rias entidades indigenistas. A realiza��o das assembl�ias de chefes ind�genas, incentivadas pelo Cimi, no in�cio dos anos 70, estimulou v�rios povos a assumir publicamente suas identidades. Desta forma, muitos que se escondiam, com medo de repress�o, foram encorajados e voltaram a identificar-se como �ndios.

124 - S� � poss�vel entender este processo de ressurgimento �tnico dentro das lutas de resist�ncia dos 500 anos. Ele representa uma rejei��o ao projeto colonizador implantado no pa�s e constitui-se numa oposi��o a modelos que negam as identidades espec�ficas, sejam elas locais, regionais ou nacionais. N�o � por acaso que, em v�rios pa�ses, nas mais variadas partes do mundo, est�o ocorrendo conflitos �tnicos.

125 - Os povos ressurgidos t�m conseguido recuperar suas identidades historicamente negadas a partir da reconstru��o ou elabora��o de novas utopias, gestadas pela fertilidade da mem�ria da resist�ncia. Comp�em essas utopias valores culturais, religiosos, morais e pol�ticos, que d�o � etnicidade uma dimens�o ritual, religiosa e pol�tica, t�o importantes quanto a territorial. A luta pela demarca��o das terras tradicionalmente ocupadas por eles confunde-se com a pr�pria luta pela recupera��o da identidade �tnica, posto que a terra � o lugar sagrado, espa�o vital, indispens�vel para a continuidade daquelas culturas. As utopias s�o, portanto, consideradas novas porque s�o atualizadas conjunturalmente, mantendo-se ligadas pelo fio da hist�ria de cada povo, atrav�s da reinterpreta��o dos mitos, traduzindo-os e reinserindo-os no atual momento hist�rico. Foi assim que os Kambeba (Om�gua), povo que vive �s margens dos rios Solim�es e Negro, no Amazonas, puderam (re)aparecer ap�s 60 anos de sil�ncio. Da mesma forma os Xet�, no Paran�, ocupam espa�o na m�dia regional, depois de terem sido considerados extintos na d�cada de 60, e os Pipipan ressurgem, em Pernambuco, mais de um s�culo ap�s ser decretada sua extin��o.


[1] PREZIA, Benedito e HOORNAERT, Eduardo. Esta Terra Tinha Dono, 6� ed., FTD, 2000

[2] IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domic�lios - 1999

[4] Ind�genas assassinados nos anos de 1995 a 1998:

1995 - Jos� Edilson Maranduba Xukuru-Kariri/ AL; Alberto Roroti Krah�/ GO; Manoel Mendes Guajajara/ MA; Davi Pompeu Guajajara/ MA; Ademar de Souza Guajajara/ MA; Sebasti�o Kutaria Karaj�/ MT; Hilda Maria de Jesus Atikum / PE; Adel Rodrigues da Silva, Xukuru/ PE; Jos� Erivaldo Fraz�o, Xukuru/ PE; Pedro Gomes da Silva Fulni-�/ PE; Manoel Jos� Torres, Pankararu/ PE; �ngelo Miguel Kaingang/ RS; Juli�o Yanomami/ RR; Felipe Rodrigues da Silva Wapixana/ RR; Severino Kataflo Jarawara/ AM; C�ndido Apurin� / AM; Estev�o de Souza Guarani/ MS;  Ant�nio Mariano Kiriri / BA; Jo�o dos Santos Kiriri/ BA; Cristiano Santos Patax�/BA

1996 - Raimundo Silvino, Shanenawa/ AC; Braiano Paulino/ RR; Carlos Alencar Tapeba/ CE; Eronilde Lopes da Silva, Xukuru/ PE; Francisco Apurin�/ AM; Ivo Jacinto Kaingang/RS; Jesus Thom� Apurin�/AM; Maria do Carmo de Alencar Tapeba/ CE; Alencar de Alencar Gomes Tapeba/ CE; Pedro Yanomami e mais dois Yanomami / RR.

1997 - Natal Apurin�/ AM; Marcelo Kanela / PA; Galdino Jesus dos Santos, Patax� H�-H�-H�e/ BA; Donato Jorge de Oliveira, Guarani-Kaiow�/ MS; Marcos da Silva Machado, Guarani-Kaiow�/ MS; Lucas J�nior Paiva, Guarani-Kaiow�/ MS; Alfredo Guajajara/ MA; Avelino Guajajara/ MA; Edison Guajajara/ MA; Alvino Guajajara/ MA.

1998 - Francisco de Assis Ara�jo,Xukuru/PE; Miho Kulina, Kulina/ AM; Davi Caiap�, Caiap�/ PA; Manoel Alfredo, Kaingang/ PR

[5]SUESS, Paulo. Porantim n.� 16, mar�o de 1980, p. 8.

[6] CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os Direitos do �ndio. S�o Paul: Edusp, 1987.

 [7]PROFESSORES XUKURU.  Xukuru, filhos da M�e Natureza . Centro de Cultura Luiz Freire, 1999

[8] CIMI-REGIONAL LESTE. Campanha internacional pela regulariza��o do territ�rio Patax� H�-H�-H�e. 2000.

[9] CIMI.  Porantim  XX/212, Jan./Fev-1999, p.8

[10] RIBEIRO, Darci. Os �ndios e a Civiliza��o. Ed. Vozes. Petr�polis, RJ. 3� edi��o. 1982.

Por que a maior parte da população indígena do Brasil reside em centros urbanos?

Duas causas principais aproximam os índios do ambiente urbano: o movimento de migração das terras de origem para as cidades e a integração de áreas indígenas pelo alcance do crescimento urbano.

Quais podem ser os motivos de grande parte da população indígena?

A escassez de alimentos, o desmatamento e o avanço das cidades sobre as matas são alguns fatores que motivaram povos tradicionais a migrar para áreas urbanas.

Qual foi o motivo da população indígena do território brasileiro?

A população indígena no país sofreu um enorme decréscimo, entre o século XVI e o século XX, passando de milhões para a casa dos milhares. Extermínios, epidemias e também escravidão foram os principais motivos dessa redução. Foi após a década de 80 que esse cenário mudou e a população indígena voltou a aumentar.

Onde está localizada a maior parte das terras indígenas no Brasil?

Assim, 13.8% das terras do país são reservados aos povos indígenas. A maior parte das TIs concentra-se na Amazônia Legal: são 424 áreas, 115.344.445 hectares, representando 23% do território amazônico e 98.25% da extensão de todas as TIs do país.