A medicina científica desqualificou toda sabedoria popular

Ciencia y EnfermerIa IX (1): 39-53, 2003

CUIDADO POPULAR COM FERIDAS: REPRESENTAÇÕES E
PRÁTICAS NA COMUNIDADE DE SÃO GONÇALO, MATO GROSSO, BRASIL1 IRENE KREUTZ2, MIRIAM APARECIDA BARBOSA MERIGHI3
y DULCE MARIA ROSA GUALDA4

RESUMO

Trata-se de um estudo etnográfico que objetivou compreender o cuidado com feridas junto aos moradores de São Gonçalo, Estado de Mato Grosso, Brasil. Utilizou-se os conceitos e pressupostos da antropologia e da teoria das representações sociais. As narrativas de oito mulheres e a interpretação dos dados possibilitou constatar que o grupo tem modos peculiares de explicar as feridas, revelando uma concepção etiológica de multicausalidade, admitindo causas naturais, sociais e sobrenaturais que orientam seus procedimentos terapêuticos e que se opõem àquelas preconizadas pelos profissionais. Os resultados apontam para a necessidade de estabelecimento de um diálogo intercultural entre esses dois grupos o que poderia ser alcançado por meio de mudanças de paradigmas que orientam o ensino, a pesquisa e a prática dos enfermeiros e demais profissionais de saúde.

Palavras chave: Pesquisa etnográfica, cuidado com ferida, cuidado popular.

ABSTRACT

This is an ethnographic study developed in a community, in Brazil. Its objectives were to understand the care with wounds. Concepts of cultural anthropology and of the Theory of Social Representations were adopted as theoretical frameworks. The narratives of eight women and the analyses of data showed that, in this community, the inhabitants have peculiar manner of explaining the wounds, admitting natural, social and a spiritual causes more than therapeutic procedures. A hiatus between the health professionals and the population was identified, demonstrating that mainly linguistic and cultural barriers generate this. In conclusion, this study showed the importance and the need for the establishment of intercultural dialogue between those two groups, which can be achieved by means of changes in the paradigms that guide the teaching, the research and the practice of nurses and other health professionals.

Keywords: Ethnographic research, care of wounds, popular care.

RESUMEN

Se trata de una investigación que tuvo como objetivo comprender los cuidados de las heridas en habitantes de São Gonçalo, Estado de Mato Grosso, Brasil. Utiliza el concepto y presupuesto de la antropología y de la teoría de la representación social. Las narraciones de 8 mujeres y el análisis de los datos posibilitó comprobar que el grupo tiene maneras peculiares de explicar las heridas, revelando una concepción etiológica de multicausalidad, admitiendo causas naturales, sociales y sobrenaturales que orientan sus procedimientos terapéuticos que se oponen a aquellas preconizadas por los profesionales. Los resultados apuntan a la necesidad del establecimiento de un diálogo intercultural entre estos dos grupos, lo que podrá aportar al logro de cambios en los paradigmas que orientan la enseñanza, la investigación y la práctica de los enfermeros y otros profesionales de la salud.

Palabras claves: Investigación etnográfica, cuidado de las heridas, cuidado popular.

Recepcionado: 28.08.2001. Aceptado: 24.02.2003.

INQUIETAÇÕES E OBJETIVO
DO ESTUDO

Nosso interesse por um tema relacionado ao cuidado com feridas teve suas raízes em experiências vivenciadas durante a prática profissional, prestando assistência de enfermagem, acompanhando alunos nas atividades em campos de estágio e coordenando grupo de pesquisa.

Temos constatado a predominância do enfoque biomédico na assistência a pacientes com lesões de pele, sendo a atenção dos enfermeiros direcionada às manifestações biológicas e alterações clínicas que interferem no processo de reparo tecidual e no tratamento instituído, em função dos fatores geradores dessas alterações.

No meio profissional, observamos uma intensa valorização da tecnologia e um privilegiamento da competência técnica, prevalecendo a concepção da proporcionalidade da qualidade da assistência ao uso da tecnologia, considerando que os profissionais serão mais qualificados quanto mais consumo tecnológico possam operar. Esta concepção leva o enfermeiro a adotar, na maioria das vezes, um papel paternalista e uma postura de detentor do saber e de superioridade ao paciente, o qual é considerado como receptor passivo de cuidado, instituindo-se a idéia de que somente o profissional está qualificado para determinar o que constitui problema para o indivíduo e o tratamento adequado.

Partindo de modelos formais de avaliação e descrição da problemática, com base nas suas experiências e pesquisas, utilizando conceitos pertenecentes ao campo da ciência, os enfermeiros visualizam o indivíduo que busca a cura de sua ferida, isolado do seu contexto sócio-cultural. Da mesma forma que na assistência, estudos e pesquisas que abordam o cuidado com feridas, em sua maioria, revelam uma preocupação com a objetividade, adotam uma perspectiva biomédica, abordando -a como sendo uma desordem biológica em um corpo individual.

Frente à falta de integração e com o distanciamento enfermeiro-cliente que constatamos atualmente, nossa proposta neste estudo procura negar tal perspectiva, apontando para a necessidade de assumir uma postura mais dialética e menos etnocêntrica.

A nossa experiência com indivíduos portadores de feridas e seus acompanhantes, permitiu identificar diferenças marcantes entre as formas terapêuticas indicadas pelos profissionais e aquelas adotadas por pacientes no domicílio. Freqüentemente ouvimos relatos de pacientes sobre alternativas de cura adotadas no cuidado com feridas, as quais lhes são recomendadas por familiares, amigos, vizinhos, benzedeiras, curandeiros, raizeiros ou outros; alternativas essas, muito diferentes da terapêutica que seria profissionalmente recomendada, apontando para a coexistência de práticas populares e das pertencentes à medicina oficial.

Constatamos também que, muitas vezes, o tratamento orientado pelo enfermeiro não é seguido integralmente no domicílio, por parte do paciente ou de seu familiar, ou então é complementado com terapêuticas pertencentes à medicina popular, neste trabalho considerada, conforme definição de QUEIROZ (1993), como sendo todas as representações e práticas relativas à saúde e à doença que se manifestam independentemente do controle da medicina oficial.

Nossa suposição é que essas diferenças estejam relacionadas a divergências no modo de compreender a ferida e seu tratamento, entre profissionais e indivíduos por eles assistidos. Pressupomos que as formas adotadas -em relação ao cuidado- pertencentes à medicina popular, estejam fundamentadas em conceitos e teorias próprias, diversas das da medicina oficial e assim, as necessidades percebidas pelos pacientes podem divergir daquelas percebidas pelos profissionais de saúde.

Conforme OLIVEIRA (1983), "a medicina popular possui lógicas particulares, formas específicas de atuação, eficácia e utilidade, sustentação e legitimidade".

De acordo com UCHÔA & VIDAL (1994), "a percepção do que é relevante e problemático, do que causa ou evita um problema, do tipo de ação que esse problema requer é, para os profissionais de saúde, determinada pelo corpo de conhecimentos biomédicos, mas, para os indivíduos de uma comunidade, é determinada pelas redes de símbolos que articulam conceitos biomédicos e culturais e determinam formas características de pensar e de agir frente a um problema de saúde específico".

Portanto, partimos da premissa de que diferenças conceituais podem interferir na comunicação e aproximação enfermeiro-cliente durante o processo de assistência. Os enfermeiros, ao se utilizarem apenas de concepções legitimadas pela ciência, estabelecendo uma relação de superioridade com o paciente, podem promover um distanciamento profissional-cliente, com a possibilidade desta relação ocorrer através de um monólogo, ou o que poderíamos chamar de "um diálogo de surdos", visto que tal postura nega a existência de outros saberes, o que inviabiliza o diálogo intercultural.

HOGA (1995) alerta para o fato de que, estando a assistência embasada apenas no que o profissional acredita ser a necessidade de saúde e de cuidado, "a satisfação em relação à assistência prestada está sujeita a ser apenas do profissional, mesmo que este tenha se esforçado em prestar o `melhor cuidado' aos seus clientes".

UCHÔA & VIDAL (1994) consideram que "o conhecimento dos modelos explicativos que predominam em um grupo, facilita a comunicação com os indivíduos desse grupo e permite a realização de intervenções que sejam compreensíveis e aceitáveis para eles, duas condições essenciais para o sucesso de qualquer programa de saúde".

Consideramos que a abordagem biomédica do cuidado com feridas representa uma dentre as inúmeras perspectivas sob as quais este fenômeno pode ser analisado. Percebemos assim, uma lacuna na prática, pesquisa e ensino de enfermagem, acreditando que uma abordagem que permita conhecer o outro para atendê-lo nas suas individualidades e singularidades, contribui para o seu preenchimento.

Por acreditar que o conhecimento do outro em sua totalidade dar-se-á ao procurarmos compreendê-lo como indivíduo pertencente a um grupo social com características peculiares, que são coletivamente construídas e aceitas e que influenciam na sua forma de perceber seus problemas de saúde e sua terapêutica, buscamos, com este estudo, uma forma de abordagem que permita essa compreensão.

Trata-se, portanto, de uma abordagem qualitativa do objeto -cuidado com feridas-, buscando o conhecimento êmico, sem imposição, aos sujeitos, de categorias que não lhes dizem respeito, ou seja, aquelas pertencentes ao conjunto de valores próprios do pesquisador e da ciência oficial.

Procuramos, assim, a singularidade de representações que direcionam ou determinam as práticas populares. Para tanto desenvolvemos este estudo com o seguinte objetivo: conhecer e compreender os modos peculiares de explicar o cuidado com feridas, por parte de indivíduos não profissionais do sistema oficial de assistência à saúde, ou seja, a perspectiva, a visão de mundo e o conhecimento que constituem a base para suas decisões e ações.

Tomando a medicina popular como uma categoria que agrupa os saberes que não são incluídos na oficial, julgamos importante abordá-la, como forma de situar as referências a ela no decorrer deste estudo. Assim, no próximo item discutiremos alguns aspectos importantes que a definem, caracterizam e a situam no contexto global das práticas de saúde.

ALTERNATIVA INFORMAL NO
CONTEXTO DAS PRÁTICAS DE SAÚDE

Várias pesquisas têm mostrado que as práticas populares de cura persistem em nossa sociedade. Segundo constatação de LOYOLA (1984a), "essas práticas não restringem-se às regiões rurais ou afastadas, ao contrário, a medicina popular não apenas é extensamente praticada no meio urbano, como constitui uma alternativa que faz concorrência à medicina oficial, considerada pelas classes dominantes como a única legítima".

Na opinião de LOYOLA (1984b), a persistência do cuidado popular em grandes centros urbanos demonstra que ele não é exclusivamente fruto do isolamento geográfico e da falta de atenção médica, representando, também, uma alternativa à dificuldade de acesso aos recursos da medicina oficial. Em pesquisa sobre medicina popular, a autora constata ainda que ela é uma reação à prática autoritária da científica, visto que na relação profissional-paciente, o curandeiro, diferentemente do médico, utiliza uma linguagem que é imediatamente acessível às camadas de baixa renda.

Para CAPRA (1982), "o que se entende por saúde depende da concepção que se possua do organismo vivo e de sua relação com o meio ambiente. Como essa concepção muda de uma cultura para outra, e de uma era para outra, as noções de saúde também mudam".

OLIVEIRA (1983) considera a prática de saúde popular como afirmadora da cultura da população, na medida em que os sistemas de classificação de doenças e de fenômenos orgânicos veiculados e as estratégias de cura por ela produzidas, segundo a autora, "são parte da compreensão que seus sujeitos têm da vida, do mundo, das necessidades, dos valores e das relações sociais que são permanentemente recriados, reinventados. É uma prática de cura que se processa desvinculada das agências institucionais, tanto pelo lado da religião, quanto pelo lado da ciência erudita, e é produzida em espaços domésticos de trabalho".

LOYOLA (1984b) comenta que a medicina popular parece gozar de maior prestígio junto às populações de baixa renda, tanto no que diz respeito ao diagnóstico como ao tratamento das doenças, no entanto, a substituição de condutas prescrita pelos médicos, por estas práticas, na maioria das vezes não são decorrentes exclusivamente da falta de recurso econômico do paciente, mas de crenças populares, visão de mundo, do organismo e da saúde, em grande parte incompatível com aquelas subjacentes à medicina legitimada pelos cânones da ciência.

OLIVEIRA (1985) assinala que a medicina popular é constituída por um amplo e heterogêneo espectro de concepções de vida e de valores que possuem um sentido e um significado forte e verdadeiro para aqueles que a utilizam.

Ao longo dos tempos, a cura foi praticada por curandeiros populares, guiados pela sabedoria tradicional, que concebia a doença como um distúrbio da pessoa como um todo, envolvendo não só o seu corpo como também sua mente, a imagem que tem de si mesma, sua dependência do meio ambiente físico e social, assim como sua relação com o cosmo e as divindades. Essas pessoas, que tratavam a maioria dos pacientes no mundo inteiro, adotam muitas abordagens diferentes, as quais são holísticas em diferentes graus e usam uma ampla variedade de técnicas terapêuticas. O que eles têm em comum é que nunca se restringem a fenômenos puramente físicos, como ocorre no modelo biomédico. Através de rituais e cerimônias, tentam influenciar a mente do paciente, aliviando a apreensão, que é sempre um componente significativo da doença, ajudando-o a estimular os poderes curativos naturais que todos os organismos vivos possuem (CAPRA, 1982).

Ainda, segundo Capra a ciência médica limitou-se à tentativa de compreender os mecanismos biológicos envolvidos numa lesão em alguma das várias partes do corpo. Esses mecanismos são estudados do ponto de vista da biologia celular e molecular, deixando de fora todas as influências de circunstâncias não-biológicas sobre os processos biológicos. Portanto, para a prática médica é baseada em limitada abordagem (CAPRA, 1982).

HELMAN (1994) aponta que a alternativa informal geralmente inclui um conjunto de crenças sobre a conservação da saúde. São, usualmente, uma série de normas, específicas para cada grupo cultural, sobre o comportamento "correto" preventivo de doenças em si e nos outros. As normas incluem crenças sobre a maneira saudável de comer, beber, vestir-se, trabalhar, rezar e conduzir a vida em geral. Em algumas sociedades, a manutenção da saúde inclui também o uso de feitiços, amuletos e medalhões religiosos para afastar a má sorte, inclusive uma doença inesperada e para atrair a boa sorte e a boa saúde.

A maioria dos tratamentos de saúde nesta alternativa ocorre entre pessoas ligadas uma à outra por laços de parentesco, amizade, residência comum ou de associação a organizações profissionais ou religiosas. Isto significa que o paciente e o curandeiro compartilham concepções semelhantes sobre saúde e doença e que serão comparativamente raros os mal-entendidos entre ambos (HELMAN, 1994).

De acordo com LAPLANTINE (1991), nas medicinas populares, além do "papel do contato e da proximidade física de quem cura em um quadro da doença (`tocando' em você) e do caráter abrangente da percepção da doença (a totalização homem-natureza-cultura, que se opõe à tendência à dissociação do homem, da natureza e da cultura, cujo corolário é a hiperespecialização) e da terapia, é sobretudo a imbricação estreita da questão do `como' etiológico-terapêutico e de uma interrogação sobre o `porquê' associada à subjetividade do doente".

Segundo o mesmo autor, "enquanto a intervenção médica oficial pretende apenas fornecer uma explicação experimental dos mecanismos químico-biológicos da morbidez e dos meios eficazes para controlá-los, as medicinas populares associam uma resposta integral a uma série de insatisfações (não apenas somáticas, mas psicológicas, sociais, espirituais para alguns, e existenciais para todos) que o racionalismo social não se mostra, sem dúvida, disposto a eliminar" (LAPLANTINE, 1991).

MONTERO (1985) considera que a recusa ao cumprimento de uma prescrição médica qualquer está associada não somente à falta de recursos econômicos desses grupos, mas também à natureza de suas concepções de organismo, corpo e saúde, muitas vezes incompatíveis com os cânones científicos que orientam a prática médica.

Para LOYOLA (1984b), a eficiência na assistência oficial à saúde não é obtida apenas por meio de iniciativas no sentido da melhoria de qualidade desses serviços, pois existem fatores culturais presentes entre a população, que podem representar obstáculos ao sucesso de determinados programas.

Em pesquisa realizada em Nova Iguaçu, LOYOLA (1984a) identifica que uma das razões da procura dos serviços de curandeiros é a abordagem mais totalizante que estes utilizam, ou seja, abrangem aspectos físicos, espirituais e psicossomáticos da doença.

Na opinião de PAIXÃO (1986), essas medicinas, mesmo se tendem a tornar-se marginais, não podem desaparecer: a população está apegada a elas, porque se baseiam no funcionamento das relações sociais pelas quais são sustentadas. Com efeito, ao mesmo tempo em que a população adere cada vez mais aos valores da sociedade global, que valoriza a medicina científica moderna, guarda suas raízes e tenta manter o seu domínio sobre o corpo, a saúde e a doença, recorrendo às suas terapêuticas próprias.

O conceito "popular" esconde sobre si uma diversidade sócio-cultural muito grande. Há diversidade de classes sociais, de origem racial, religiosa e étnica. A cada etnia, a cada grupo social singular corresponde um sistema simbólico, uma maneira particular de conceber o mundo, bem como um saber não oficial, sistemas médicos e práticas terapêuticas. Daí a "singularidade do adoecer humano" como diz CASTIEL (1994), em "O buraco e o avestruz".

Por isso, não há como prever as práticas e as representações. Somente um inquérito etnográfico pode elucidá-las, visto que se vinculam a estruturas de significados histórica e culturalmente constituídas onde apenas ele construiria o diálogo intercultural.

METODOLOGIA

São Gonçalo é um bairro da cidade de Cuiabá, Capital de Mato Grosso, conhecida na região como uma comunidade tradicional de pescadores e ceramistas, conservando estas atividades como características peculiares. FREIRE (1988) denomina a comunidade com uma "área de resistência cultural", acrescentando que essa localidade é reconhecida no meio popular como uma "área tradicional com raizeiros de grande prestígio", indicando a existência de uma medicina popular como uma prática viva e pulsante. O autor ainda esclarece que processos urbanos em Cuiabá, nos últimos vinte anos, deram origem a novos bairros, todavia alguns, dentre os bairros já existentes, através do privilegiamento de certas práticas culturais da tradição local, colocaram-se como bairros tradicionais, construindo uma identidade específica, diferenciada no contexto da modernização urbana.

Optamos por realizar uma pesquisa do tipo qualitativa, adotando o método etnográfico usando a técnica peculiar a este método, que é a entrevista e a observação participativa. Para tanto, apoiamo-nos em conceitos e pressupostos da antropologia e da Teoria das Representações Sociais.

Considerando que o conjunto de representações de saúde-doença e ferida, a explicação de suas causas, de seu sentido e a busca de sua cura, se dão a partir da ordem social e, mais especificamente, de sistemas simbólicos determinados, este estudo aborda as representações de feridas e as práticas de cura delas decorrentes, em uma comunidade antiga e tradicional de pescadores e ceramistas, do município de Cuiabá, estado de Mato Grosso.

A coleta de dados foi iniciada desde o primeiro contato com os moradores da comunidade. Como forma de conhecer melhor a comunidade e os moradores, optamos pela realização de um "survey" com visitas e entrevistas nos domicílios e nesse momento conseguimos identificar moradores que pudessem ser os colaboradores na investigação direcionada especificamente ao tema da pesquisa -o cuidado com feridas- observando algumas características como: pessoas apontadas por outros moradores como entendidos em práticas da medicina popular; pessoas consultadas pelos moradores por ocasião de problemas de saúde-doença e pessoas dispostas a participar da pesquisa. Assim sendo, tornaram-se nossas colaboradoras no estudo, 8 mulheres, tendo sido este número definido em função do conteúdo e abrangência dos dados que iam sendo obtidos.

Procedemos as entrevistas coletando narrativas sobre as vivências/experiências no processo saúde-doença, enfocando mais detalhadamente o cuidado com feridas. Nesse processo valemo-nos, também, da observação participante. Assim sendo, os dados foram colhidos durante os meses de outubro e novembro de 1999, em encontros formais com entrevista aos colaboradores

Preocupadas com as questões éticas na pesquisa tomamos alguns cuidados como: explicitação dos objetivos da pesquisa no primeiro contato com o morador a ser entrevistado dando-lhes a liberdade e participar ou não; solicitação para autorização quanto à gravação do encontro, com a promessa de devolver-lhes o material transcrito para a sua validação antes da divulgação do mesmo; permissão para apresentar seus nomes no trabalho escrito, no entanto, garantido-lhes sigilo sobre os aspectos que não quisessem tornar públicos; apresentação do termo de consentimento e esclarecimento informado para que lessem e assinassem o mesmo. Quando houve dificuldade de leitura ou entendimento, o termo foi lido juntamente com o entrevistado e, sómente após a sua compreensão foi assinado. Com estes procedimentos cumpriu-se o que reza a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisas envolvendo seres humanos.

Durante os encontros, foi solicitado aos entrevistados que relatassem alguns eventos importantes de sua trajetória de vida, narrando suas experiências no processo saúde doença. Tomando o cuidado de não interromper o raciocínio do entrevistado, em momentos oportunos eram feitas perguntas no sentido de aprofundar aspectos já por eles abordados sobre o tema "cuidado com feridas", objeto principal deste estudo.

ANÁLISE DOS DADOS

Para a análise das narrativas identificamos os temas centrais abordados pelos entrevistados, ou seja, suas categorias conceituais em relação ao cuidado com feridas, procurando compreender como se deu esse conhecimento e assim, fazer a inter-relação com o contexto cultural e histórico-social.

A junção dos aspectos semelhantes das entrevistas compuseram as temáticas: Feridas - etiologia e representações; Cuidado de feridas - as práticas de cura na comunidade.

O tema Ferida - etiologia e representações foi constituído por meio dos seguintes subtemas: o sangue e a ferida; uma doença quente; alimento quente versus alimento fresco; além da origem anátomofisiológica; a ferida como inimigo: metáforas para descrevê-la; avaliando sua evolução. Enquanto que, os subtemas que compuseram o Cuidado de feridas: as práticas de cura na comunidade, foram: a natureza: uma eterna fonte de cura; afinar o sangue; manter descoberta; manter seca; a dieta alimentar e a cura; o lugar da medicina oficial; cura pela benzeção: a supremacia do sobrenatural.

FERIDA: ETIOLOGIA E REPRESENTAÇÕES

Uma concepção de multicausalidade no surgimento, agravamento ou permanência mostra-se muito evidente nos depoimentos, admitindo a ação conjunta de diversos fatores, rejeitando a explicação unicamente biologicista dada pela medicina científica moderna. Podemos constatar esse fato através dos seguintes subtemas:

O sangue e a ferida

Nas concepções etiológicas dos moradores da comunidade de São Gonçalo, a causa endógena está sempre presente, sozinha ou aliada a uma causa exógena sendo sempre influenciada pelas "condições do sangue", seja na sua origem ou evolução. Por isto, essas devem ser levadas em consideração tanto na procura das causas quanto na avaliação e no tratamento de qualquer lesão.

Como decorrência dessa concepção, aparece com freqüência, nos depoimentos, a noção de predisposição/resistência do indivíduo, à aquisição de feridas relacionadas a essas condições, considerando-se que um estado de equilíbrio é fundamental na prevenção e tratamento de qualquer lesão.

Na avaliação do sangue são consideradas as categorias grosso-fino/aguado/ralo e forte-fraco. As primeiras referem-se à viscosidade, sendo que o segundo grupo pode referir-se tanto à viscosidade como pode ter um significado simbólico exprimindo a resistência ou não do indivíduo ao desenvolvimento de feridas em decorrência de "mau olhado" ou "quebrante" - causado por pessoa de sangue "forte" no sentido de "ruim" e "fraco" , no sentido de "corpo fraco".

As representações seguintes aparecem nas declarações dos moradores:

Quando o sangue ele não tá bom, ele tá grosso e quando ele tá ralo tá bom. O sangue engrossou, tá ruim, não é nada bom.

Quando a pessoa sofre de diabete o sangue fica aguado e também a ferida não fecha, fica aí parado. Sangue muito forte também não é bom.

O sangue grosso assim, acho que é da idade, da pressão. Candir (marido) quase morreu pondo sangue pelo nariz.

Uma doença quente

Durante todo o processo de pesquisa e ao examinar com cuidado os relatos de experiências no processo saúde-doença das colaboradoras, pudemos constatar que os moradores da comunidade de São Gonçalo estabelecem uma relação de homologia entre doenças quentes-alimentos quentes, doenças frias-alimentos frios.

Estando a origem sempre relacionada às "condições do sangue" -um elemento interno-, embora ocorra a influência de causas externas (como picada de inseto, "mau olhado", "quebranto" ou outros), esta é classificada na categoria das doenças quentes.

Quer dizê, o que é quente é forte demais, e o fresco é fraco. A manga é forte. Abacate também é quente, e o limão é fresco. Alimento quente versus alimento fresco

É comum o estabelecimento de uma relação entre o tipo de alimento consumido e a origem de uma ferida. Sendo estas classificadas na categoria das doenças quentes, existe na comunidade a idéia de que os alimentos classificados como quentes podem provocar ou prejudicar a sua cura.

Quando come carne de porco a ferida também arruina, porque a carne de porco é forte, é quente. E ali faz mal. Se come peixe também faz mal, porque o peixe também é quente. As coisa que são quente, prá ferida não é bom. Café muito, não pode, a ferida não seca, fica sempre soltando aquela água, fica pasmado, não sara, porque é muito quente.

A manga, se tá com uma ferida, não adianta nem espiá pro lado de manga, que não tem manga fresco, tudo é quente. A senhora sabe que quando eu era criança, que tinha manga assim, quando cabava a manga, meu Deus do céu, tudo ficava que era só ferida! Aí precisava tomá as coisa fresco prá sará as ferida. Porque criança não tinha juízo, via aquela manga, queria chupá mesmo e aí que fazia mal. A manga é um veneno, prá esse negócio".

No depoimento, está implícita uma noção de quantidade - na época da manga é impossível controlar as crianças, que passam o dia comendo manga. Observa-se, nos terreiros, uma grande quantidade de mangueiras e no período de safra da manga, todos consomem a fruta, exceto os que possuem doenças "quentes". No entanto, todos revelam uma preocupação em não comer grande quantidade e "vigiam" também as crianças. O consumo diário em pequena quantidade, de uma forma geral não é considerado nocivo.

Analisando as narrativas das colaboradoras sobre suas experiências no processo saúde-doença, observa-se que alguns dos alimentos, mesmo considerados essenciais para a manutenção da saúde e prevenção de doenças pelos moradores da comunidade, não são recomendados por eles para consumo em situações de fragilidade do organismo, como as ocasiões de doença ou puerpério, respeitando-se, de uma forma geral, a classificação "quente" e "fresco" em relação às doenças também classificadas nessas categorias.

Assim, alimentos "quentes" - como por exemplo a carne de porco - não são recomendados para indivíduos com feridas ou até mesmo, dependendo do caso, são tidos como causadores das mesmas. Por outro lado, são citados como tendo mais "sustância", mais "força" deixando a pessoa "forte" e portanto, mais resistente a doenças.

Em função dessa concepção, fazem referência a um tempo passado como um período em que as pessoas tinham mais saúde, considerando que antigamente as pessoas eram mais fortes e mais saudáveis pois, dentre outras coisas, "comia carne de porco gorda e a carne de gado sebosa mesmo".

Além da origem anatomofisiológica

É interessante observar que, ao mesmo tempo que a explicação remete sempre a causas anatomofisiológicas, para certos tipos de feridas há também explicações de ordem sobrenatural e/ou de ordem social, que não excluem as demais, como aparece no seguinte depoimento:

A erisipela, é uma coisa que fala que é do sangue forte. Tem muitos que fala que dá de mau olho da pessoa, sangue forte e aí arruina. Ou ainda nessas palavras, ao descrever a origem: De primeiro era só veia muito feia e grossa assim... aqui nas pernas. Era varize e as varize chegou de furá. Abriu e deu ferida. Fica como uma provação, porque as outras tudo sara e essa daí agora parece que vai fechar, mas qualquer coisinha... A ferida como inimigo: metáforas para descrevê-la

Ao descreverem a ferida os moradores da comunidade de São Gonçalo muito freqüentemente fazem uso de metáforas. É interessante perceber que, apesar de admitirem como uma das suas causas a condição individual, interna, ou o nível de resistência de cada indivíduo, representam-na como um intruso que tem "vida própria", um agressor que, se não combatido, pode penetrar no interior do organismo, apossando-se dele. Estabelecem analogias com plantas, percebendo a ferida de forma idêntica ao que é vivenciado no cotidiano de suas relações com a natureza, como mostram os seguintes depoimentos:

Às vez a ferida tá querendo secar mas aquela raizinha embrabeceu, vira de novo ferida outra vez. Num instante ele abre de novo. Quando vira câncer, não tem remédio que cura.

Esta daí parece que está encravada, não quer fechar. Acho que ela está entre a carne e o couro, porque não afunda e nem alarga, mas não quer fechar.

Quando tem aquela ferida que encrava, custa sarar.

Nestes depoimentos, ferida aparece comparada a uma planta. Por isso, se a sua cura não for conseguida a tempo, pode criar raízes e penetrar no interior do organismo. Comparam sua imagem com a do câncer, atribuindo algumas das propriedades metafóricas do câncer: espalha-se, invade, cria raízes.

Avaliando sua evolução

Os moradores da comunidade de São Gonçalo revelam em seus depoimentos a idéia de úmido como doente e seco como sadio, tomando esta concepção como parâmetro para avaliar a evolução e determinar a gravidade da ferida, como mostram os seguintes depoimentos:

Café muito, não pode, a ferida não seca, fica sempre soltando aquela água, fica pasmado, não sara, porque é muito quente.

Sangue muito forte ou muito fraco não é bom. Sangue aguado também não presta, aí não seca a ferida.

A gravidade também é avaliada pelos moradores da comunidade de São Gonçalo em função da necessidade ou não da assistência médica, embora a ela atribuam apenas a competência de intervenção nas alterações anatomofisiológicas. Assim, as ocorrências que não necessitam da intervenção médica são consideradas menos graves, como mostram os depoimentos a seguir: Uma vez, duas filha minha queimaram e eu nem não levei no médico. Fui usando só água fria até abrandar o calor.

Nem não precisou ir no médico, só atou o pé, aí suspendi o pé, fiquei com o pé em cima até parar.

Quando não atrapalha a dinâmica do cotidiano não é vista como problemática, sendo considerada pouco grave.

Por fim, pode-se concluir que as concepções etiológicas relacionadas aos problemas de saúde que os moradores da comunidade de São Gonçalo, neste estudo, incluíram na categoria das feridas, remetem a causas anatomofisiológicas, sociais e sobrenaturais, estando sempre presente uma noção de multicausalidade.

Dentro desta concepção de multicausalidade, muitas vezes existe uma culpabilidade que é atribuída ao indivíduo portador da ferida. Essa "responsabilidade" na ocorrência de uma lesão é definida levando em consideração a presença de causas sobrenaturais ou sociais, avaliando-se a observação das regras de sociabilidade, as prescrições alimentares e as relações com o sagrado. A presença de causa natural -como uma agressão física externa- quase nunca significa culpa do indivíduo.

Cuidando de feridas: as práticas de cura na comunidade

As diversas alternativas de cuidado adotadas pelos moradores da comunidade de São Gonçalo são articuladas à perspectiva sócio-cultural que o grupo tem de saúde-doença, ou seja, estão vinculadas às suas representações do funcionamento do corpo humano, concepções sobre cura, ação de medicamentos, bem como, suas concepções etiológicas de tipos específicos.

A partir de sua "visão de mundo", definem que recursos adotar, sempre associando mais de uma estratégia para cada problema identificado, o que vai ao encontro à sua concepção de multicausalidade das feridas. Como conseqüência desta concepção a terapia exige a mobilização de múltiplos recursos adotando-se mais de uma alternativa ao mesmo tempo ou em seqüência, utilizando os recursos da medicina oficial e os "remédios do mato" para aliviar os sintomas físicos e a benzeção (se for o caso), para combater a causa.

É possível, assim, identificar na comunidade, um conjunto de representações que permeiam as condutas no cuidado com feridas e que, portanto, lhes indicam as condutas validadas pelo grupo, apontando também aquelas que devem ser excluídas, não podendo ser adotadas em nenhum caso e aquelas que sempre poderão ser adotadas por não oferecerem nenhum risco.

Na maioria dos casos de doença, o tratamento é iniciado em casa. Uma vez estabelecido o diagnóstico, avaliam a pertinência ou necessidade da intervenção de um benzedor ou curandeiro ou a necessidade de assistência médica. O tratamento no domicílio sempre inclui o uso de produtos encontrados no ecossistema local, conforme a seguinte opinião:

Só remédio de farmácia não é bom, tem que ajudar com remédio caseiro.

A natureza: uma eterna fonte de cura

Existe uma idéia entre os moradores de São Gonçalo de que todo "remédio" que vem da natureza é benéfico. Por isso, os "remédios do mato" não são questionados quanto à sua contribuição para a cura. Se não fazem bem, certamente não farão nenhum mal, ao contrário, historicamente, sempre foram os maiores aliados dos moradores da comunidade.

Para inflamação no útero é bom aquele carrapichinho - toma chá e toma banho com o chá prá escaldar a virilha. O banho entra e a gente sente aquele alívio, acaba penetrando no útero. Pode fazer lavagem pela vagina.

Aquele carrapichinho que tem ali, aquele que prega na roupa da gente, aquele ali é bom prá inflamação, é bom prá fígado é bom prá rim, é bom prá bastante coisa.

Afinar o sangue

Esta idéia vai ao encontro da concepção de sangue grosso, que fica parado e causa ferida, abordada anteriormente, como mostram os depoimentos a seguir, revelando a determinação da concepção etiológica na escolha das terapias.

Às vez as pessoa de mais idade tem ferida porque o sangue é muito grosso. Geralmente vai no médico prá afiná o sangue. Muitos tomam água de maravilha.

O sangue engrossou, tá ruim, não é nada bom. Prá afiná, toma remédio fresco. Leite de magnésia é bom prá afiná. Tem que ser tudo fresco.

Manter descoberta

A conduta considerada adequada em qualquer situação é deixa-la descoberta, cobrindo-a somente quando exposta a sujidades externas, como poeira. Ela portanto, deve permanecer "fresca", "tomar vento" para não alastrar.

Não é bom abafá porque esquenta. Tem que fechá a ferida para não entrar poeira e infeccionar, mas não pode deixá o tempo todo tampada.

Para sarar ferida, não pode abafar. Fechar só prá não tomar poeira. De tardinha tira, faz o escaldamento e deixa aberto, prá tomar vento, não ficar abafado.

Manter seca

A representação do úmido como patológico e o seco como sadio, discutida anteriormente, influencia decisivamente as práticas curativas, pois estas sempre têm o objetivo de promover o ressecamento e são opostas às práticas preconizadas atualmente pela biomedicina.

Prá fechar ferida, a gente tem costume de ficar lavando com marva, erva São Francisco, até fechá. Outro coloca aquele pó que a gente põe no umbigo de criança, vai secando, melhor que pomada.

Punha o cataplasma da mandioca também. Em três dia tava tudo sequinho outra vez.

A dieta alimentar e a cura

Sendo a ferida classificada na categoria das doenças quentes e considerando a influência de alguns alimentos no seu surgimento e evolução, os moradores da comunidade de São Gonçalo incluem a dieta alimentar na determinação da terapêutica, onde os alimentos quentes devem ser evitados e os frescos utilizados como auxiliares na terapia, pois têm propriedades de remover o excesso de calor, favorecendo o equilíbrio.

A representação de quente como negativo, em casos de doenças quentes, explica a concepção da ação adversa do alimento quente no processo de cura da ferida, como revelam os depoimentos a seguir:

Mulher que tá de dieta não pode comê nada quente também. E quando tá com ferida, do mesmo jeito, nada quente, só fresco.

Quando come carne de porco a ferida também arruina, porque a carne de porco é forte, é quente. E ali faz mal. Se come peixe também faz mal, porque o peixe também é quente.

A pessoa operada não pode comer manga porque é muito quente, tem que fazer resguardo. Ele pode dar assim, ele inflama muito, por isso que não pode comer.

O lugar da medicina oficial

Para os moradores da comunidade de São Gonçalo, a medicina oficial representa uma fonte de recursos que não são, entretanto, acionados de forma incondicional, representando assim, uma dentre as alternativas a serem usadas. Embora a utilização de recursos domésticos seja considerada importante e os mesmos estejam sempre presentes no cuidado com feridas, quando comparados com a medicina oficial muitas vezes aparecem como inferiores, isto é, recorre-se à medicina oficial em casos de maior gravidade, mesmo reservando a ela apenas o tratamento dos distúrbios anatomofisiológicos presentes.

Muitas vezes, o tratamento médico é realizado apenas de forma parcial; outras vezes é realizado integralmente, mas é sempre complementado com a medicina popular, principalmente os chás.

A utilização da medicina erudita inclui o uso de medicamentos adquiridos em farmácias, seguindo prescrição médica anterior, indicações de pessoa conhecida que já tem "experiência" com o medicamento, indicação do prático de farmácia ou mediante prescrição médica após consulta atual.

Nesse processo, avaliam os efeitos benéficos numa primeira indicação médica e adotam em presença de situações que consideram semelhantes pela manifestação dos sinais e sintomas. Adotar medicamentos prescritos anteriormente e em situações semelhantes àquela que gerou a primeira indicação, torna-se mais econômico. É também uma medida gerada em parte pela dificuldade de acesso à medicina oficial.

Aí eu fui na farmácia, cheguei, aí o farmacêutico que tava lá falou: `é da mesma ferida. A senhora pode comprar a injeção e tomar'. Aí eu comprei, tomei e parou.

Os outros ensinam prá gente porque já tomaram e foi bom, daí a gente experimenta.

Quando tem ferida que demora prá sará, lava com remédio de mato e não melhora, tem que tomar anti-inflamatório. Existe muito remédio que lava e melhora.

Cura pela benzeção: a supremacia do sobrenatural

A adoção do ritual de benzeção como parte das práticas terapêuticas é um aspecto revelador de uma concepção etiológica que extrapola a dimensão física e da relação que é estabelecida entre a religião e a medicina popular.

Os depoimentos a seguir mostram que a benzeção atua num campo já codificado de doenças, atacando diretamente o mal, visando suprimi-lo.

As feridas que vieram das varize não adianta benzê, porque benze quando tá com a erisipela, quando ela arruina, aí precisa benzê, mas ferida assim não.

Erisipela faz tempo que deu. Depois que benzeu, nunca mais deu. A erisipela é só benzeção mesmo. Remédio de farmácia, de médico, não tem. É só benzeção.

NOVO OLHAR NO CUIDADO DO OUTRO:
RELATIVIZANDO O CONHECIMENTO "CIENTÍFICO"

Para os moradores da comunidade de São Gonçalo, o surgimento e a piora de uma ferida sempre tem um componente social referente a comportamento, ou seja, o não cumprimento daquilo que é estabelecido pelo grupo como adequado para a manutenção ou recuperação da saúde; ou então é determinada pelo sobrenatural e aceita com resignação.

A pesquisa mostra que, no cuidado com a saúde-doença, os moradores obedecem a uma "hierarquia de recursos" sancionados pelo grupo, adotando quase sempre, num primeiro momento, os que lhe são mais próximos e mais congruentes com suas representações de saúde-doença - os produtos que encontram na natureza. A essas práticas podem ou não recorrer à alternativa da medicina oficial, geralmente por meio da auto-medicação.

Por acreditarem que as terapêuticas que incluem a utilização de produtos da natureza ou aquelas que envolvem forças sobrenaturais sempre auxiliam na cura, estas são largamente adotadas.

A orientação na adoção de quaisquer práticas é empírica e pragmática. Baseia-se nas suas próprias experiências ou experiências alheias, seja com produtos da natureza ou farmacêuticos.

A eficácia comprovada de uma ou outra terapêutica é fundamental na opção por um determinado tratamento. Da mesma forma, a conduta de qualquer profissional de cura é confrontada com a eficácia de sua atuação anterior, o que vai direcionar a opção pelo tratamento.

A procura dos profissionais ou serviços da medicina oficial ocorre, em geral, em última instância e não representa o abandono do recurso adotado até então, ou seja, o uso de plantas ou os rituais não contradizem nem se conflituam com a medicina oficial, sendo que na maioria dos casos, todas alternativas terapêuticas são encaradas como complementares.

Ao contrário das práticas populares, como critica MONTERO (1985), as oficiais, atuam sempre "no lugar de" todas as outras , isto é, desconhecendo-as ou desqualificando-as por considerá-las supersticiosas e ignorantes.

Autores como LOYOLA (1984a), MONTERO (1985), LAPLANTINE(1991), QUEIROZ (1993), HELMAN (1994), dentre outros, citam este aspecto com uma das razões da não adoção da medicina oficial pela população e muitas vezes um certo descrédito e distanciamento em relação à mesma, pois, geralmente os curandeiros populares compartilham os mesmos valores culturais básicos e visões de mundo das comunidades em que vivem, incluindo crenças sobre a origem, significado e tratamento de doenças.

Observa-se que a tendência na procura dos recursos da medicina oficial mostra-se mais acentuada nos jovens, ato que, muitas vezes, é criticado pelos mais idosos. Estes parecem encarar esta atitude como uma das formas de negar a eficiência das práticas populares e um risco de perda da tradição e da identidade do grupo. Por parte dos mais idosos parece haver uma preocupação em manter o que ainda têm e que ninguém pode lhes tirar e de que podem lançar mão na hora da necessidade. Em caso contrário, perdem sua autonomia e deverão se subjugar a uma medicina que para eles tem se mostrado pouco eficiente. É, então, uma forma de resistência cultural à medicina científica e manutenção do próprio grupo.

Na opinião de LOYOLA (1984a), o jogo com as diferentes possibilidades terapêuticas e religiosas constitui-se num sistema de defesa coletivo frente aos processos de imposição da racionalidade e legitimidade da ciência médica, que não contempla a dimensão metafísica, como acontece na medicina popular.

Neste sentido, MONTERO (1985) afirma que "a capacidade de `resistência' do discurso dominado não reside tanto na natureza da `oposição' ou da inversão que ele opera com relação ao discurso oficial, mas na sua possibilidade de preencher os `espaços vazios' deste discurso, invertendo-lhe as regras do jogo e furtando-se ao seu sentido".

Negando a assistência oficial como a única capaz de curar, os moradores da comunidade de São Gonçalo resistem, sabendo também que ela é inadequada para atender a todos. Portanto, a dependência apenas do modelo biomédico de saúde é rechaçada, pois pela experiência histórica sabem que não podem contar somente com ele.

É uma maneira que eles ainda têm de decidir sobre sua vida, sua saúde-doença, de sentirem-se relativamente independentes. Tentam conservar nas práticas médicas aquilo que dominam, que faz parte de sua cultura, sabendo que se isso acabar, ficam totalmente subjugados à medicina erudita e sua cultura é invalidada. Pelos depoimentos constata-se que os moradores percebem-se parte de um grupo de excluídos -os pobres- considerando o seu acesso à assistência oficial muito limitado. A condição histórica de "isolamento" da comunidade, muito ressaltado pelos moradores, parece ter influenciado decisivamente para o desenvolvimento e manutenção de uma prática de cura que lhes permitisse uma relativa "autonomia" nas questões de saúde-doença.

Historicamente tiveram o ecossistema como a fonte de cura próxima e acessível, sempre puderam contar com ele, diferentemente dos recursos oferecidos pelo sistema de saúde oficial. Assim, aprenderam a extrair da natureza muitos produtos para a cura de seus males. Esta lhes fornecia os alimentos ou condições para a produção dos mesmos, bem como a matéria prima para a sua atividade profissional. Desta forma tinham sua autonomia, mantendo uma relação estreita com a natureza.

Confrontados com o discurso dos profissionais do sistema formal de saúde, os depoimentos dos moradores da comunidade de São Gonçalo mostram claramente as incompatibilidades, as divergências no modo de pensar a saúde-doença e os tratamentos utilizados. Isto permite inferir que o fato de os enfermeiros e seus clientes partirem de pontos de referências diferentes (científico e popular), contribui para reforçar um dos pontos críticos da assistência de enfermagem: a dificuldade no estabelecimento de um diálogo intercultural entre profissionais e clientes.

No entanto, chamamos a atenção para o perigo de se perpetuar a hegemonia ou seja, como alerta GARNELO (s/d), os estudos serem apenas um instrumento para continuar dominando e impondo a biomedicina. Ouvir os clientes, conhecer suas ansiedades, suas concepções, é uma forma de permitir sua participação, permitir-lhes o exercício da cidadania. Entretanto, essas informações não devem servir como instrumento de dominação/manipulação, ou seja, para julgar as suas práticas de saúde-doença a partir da perspectiva da medicina científica, determinando o que é certo ou errado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não pretendemos com esta investigação passar a idéia de menosprezo aos avanços em saúde obtidos pela ciência, ao contrário, sabemos da validade e importância desses conhecimentos, entretanto, ao considerarmos este o único saber necessário para exercer uma prática profissional competente e eficaz, desaparece a necessidade de conhecer o outro como um ser sócio-cultural e histórico.

Portanto, com o intuito de valorizar todas as formas de conhecimento e não ignorar nenhuma dimensão que faz parte da vida do ser humano total, propomos, neste estudo, reflexões profundas sobre os paradigmas que orientam a prática dos profissionais da área da saúde, relativizando alguns conceitos e pressupostos tidos como definitivos pela ciência.

Para tanto, julgamos fundamental repensar constantemente nosso modelo de formação que, ainda hoje, esta centrado na ciência e no cuidado hospitalar e que difunde a idéia da assistência qualificada pelo uso da tecnologia.

Numa tentativa de reverter esse quadro, é preciso não pensar nossa "ciência" só do ponto de vista dessa ciência mas sim com uma visão mais alargada. Neste sentido, citamos como um passo importante a recente reformulação curricular do curso de enfermagem.

Propomos, assim, que questionemos as "verdades" na nossa prática profissional como representantes da ciência, adotando uma postura que permita visualizar nossos objetos de trabalho também na dimensão sócio-cultural e histórica, tendo em vista, especialmente, a enorme diversidade cultural no nosso país.

Por isso, apontamos para a importância da adoção de uma postura que permita conhecer o indivíduo na sua relação com o social em que vive e compreender o sentido que ele mesmo dá às suas ações, numa tentativa de estabelecer um diálogo intercultural -entre a teoria nativa e do campo acadêmico.

Enfim, consideramos que é papel dos profissionais da área da saúde, contribuir para a construção da cidadania dos usuários através de condutas adequadas de envolvimento por inteiro para vislumbrar o cidadão na sua totalidade sócio-cultural e histórica.

Assim, diante destas considerações, acreditamos que as reflexões desta pesquisa certamente contribuirão para o debate -no meio profissional- sobre os paradigmas que orientam nossa prática, na tentativa de procurar novos caminhos para o desenvolvimento de serviços mais sensíveis às realidades culturais e sociais específicas dos usuários, contribuindo para melhorar o diálogo, aproximar o profissional do cliente, humanizar e individualizar a assistência.

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1Extraído da Tese de Doutorado "Cuidado popular com feridas: representações e práticas na comunidade de São Gonçalo, Mato Grosso, Brasil".

2Enfermeira. Professor Doutor da Universidade Federal do Mato Grosso. Brasil.

3Enfermeira. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da EEUSP. São Paulo. Brasil. Orientadora da Tese.

4Enfermeira. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da EEUSP. São Paulo. Brasil. Co-orientadora da Tese.