O que acontece se não fizer o exame de corpo de delito?

05 de Dezembro de 2013

Da invalidade da prova testemunhal para comprovação de materialidade em crime que deixa vestígio quando possível a realização de perícia

Muito se discutiu, nos últimos tempos, a respeito da prova da materialidade em crimes que deixam vestígio quando não se tem a prova técnica.

Podemos nos lembrar de caso muito famoso que tomou repercussão nacional, conhecido como “caso do goleiro Bruno”, este, o ex-goleiro do Flamengo, e algumas outras pessoas foram acusadas de ter matado a ex-modelo Eliza Samudio. E, no seio acadêmico, várias foram as discussões sobre a possibilidade ou não da condenação dos acusados, haja vista que o desaparecimento do corpo impossibilitou a realização do auto de corpo de delito, o que, em tese, era o obstáculo para a prova da materialidade do crime.

O Código de Processo Penal, em seu art. 158, afirma que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. Ora, se não se pode provar um crime que deixa vestígio sem a prova técnica, impossível seria, em tese, a condenação por homicídio, já que crime material é que deixa vestígios.

Em uma tentativa de resolver situações em que não se pode realizar a prova pericial, art. 167 do CPP, trazendo exceção quanto à realização do exame de corpo de delito em crimes que deixam vestígios quando o exame for impossível. Nesse caso, a prova testemunhal poderá suprimir a prova técnica, podendo a materialidade ser comprovada exclusiva e satisfatoriamente com a prova testemunhal. E é aí a maior polêmica da lei. O que o legislador quis dizer com o termo impossível?

Ao depararmos com o termo impossível, ao menos a princípio, deve ser ele entendido como possível a prova da materialidade pela prova testemunhal apenas quando não há possibilidade de se realizar o exame pericial. Ou seja, ainda que haja prova testemunhal, caso seja possível ao Estado a realização da prova técnica, esta será indispensável.

Para aclarar ainda mais a questão, necessário se falar sobre o auto de corpo de delito, justificando de modo cabal a necessidade do exame pericial (laudo) direto ou indireto para a prova dos crimes de deixam vestígios, e somente se este não for possível, é que será admissível a prova testemunhal:

“Se a infração deixa vestígios, impõe-se a realização do exame de corpo de delito, seja ele direto ou indireto (art. 158, CPP). (...).

Em não sendo possível a realização do exame, seja o direto ou o indireto, podemos nos valer da prova testemunhal para atestar a materialidade delitiva, como dispõe o art. 167 do CPP. A confissão, como já ressaltado, não se presta a esse propósito, por expressa vedação legal.

Nessa ótica, segundo uma ordem de predileção na tentativa de demonstração da materialidade, primeiro e ideal é a realização do exame direto, que deve ser o mais próximo do acontecimento, sem delongas, para que os vestígios não desapareçam. Tanto é verdade que o mesmo pode ser realizado a qualquer hora do dia ou da noite (art. 161, CPP). Não sendo possível, será realizado o exame indireto, com atuação dos peritos, que elaborarão o respectivo laudo através das percepções extraídas dos elementos acessórios investigados. Na impossibilidade de ambos, a prova testemunhal supre a omissão”(Távora e Alencar, 2009, p. 337, destaques nossos).

Assim, o Código de Processo Penal, de maneira clara, escolheu a prova pericial para demonstração da materialidade de delitos que deixam vestígio. E o prestígio dado a esta prova é explicável, já que, se deixa vestígio o delito, nada mais lógico que para provar sua ocorrência busquem-se exatamente estes vestígios, o que, por certo, tornará estreme de dúvida a ocorrência do ilícito.

E para prova pericial, no caso específico chamada de Auto de Corpo de Delito (ACD), podem-se utilizar tanto o exame direto como o indireto. 

Dois são os tipos de prova periciais chamadas auto de corpo de delito. O primeiro, chamado direto, realizado, por peritos, sobre o próprio corpo do delito. O segundo, chamado indireto,também realizado por peritos, será feito quando não for possível se fazer o exame pericial no corpo, mas por informações médicas ou coisas que o valham, que darão aos peritos informações fundamentais para a realização do laudo pericial. Ou seja, tanto no auto de corpo de delito direto quanto no indireto, haverá sempre um laudo pericial que a lei denomina Auto de Corpo de Delito (Pacelli, 2008, p. 360).

O problema ocorre no caso de ser impossível fazer a prova pericial, quando, somente nesse caso, poderá suprir a prova pericial a prova testemunhal. Isto é, diante da impossibilidade de se fazer a perícia, seja de forma direta, seja de forma indireta, o Judiciário poderá utilizar-se exclusivamente da prova testemunhal para a prova da materialidade, não sendo citada a possibilidade de utilização de outros meios de prova que não a testemunhal. É isso que a doutrina nos ensina:

“Esse laudo (sic. – o Auto de Corpo de Delito) pode ser produzido de maneira direta – pela verificação pessoal dos peritos – ou de modo indireto – quando os profissionais se servem de outros meios de prova. Note-se que, de regra, a infração que deixa vestígios precisa de ter o exame de corpo de delito direto ou indireto (que vai constituir o corpo de delito direto, isto é, a prova da existência do crime atestada por peritos). Somente quando não é possível, aceita-se a prova da existência do crime de maneira indireta, isto é, sem o exame e apenas por testemunhas.

(...)

Se o Código de Processo Penal considerasse exame de corpo de delito também os depoimentos testemunhais, não teria colocado no art. 167, que, não sendo possível realizá-lo, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta. Na ótica que sustentamos, estão os ensinamentos de Helio Tornaghi, para quem o ‘exame indireto não se confunde com o mero depoimento de testemunhas o qual pode suprir o exame do corpo de delito (art. 167)’, (...).

Leciona Tourinho Filho que não havendo exame diretoou indireto, a ‘nulidade é tão grande que fumina todo o processo, nos termos do art. 564, III, b, do CPP’ (op. cit., p. 361)”(Nucci, 2010, p. 401).

Assim, vemos que quando impossível se fizer a prova da materialidade pelo auto de corpo de delito, em qualquer de suas espécies, poder-se-á se provar a materialidade do evento pela prova testemunhal, que, como visto, não é prova pericial, mas substitui esta.

E o problema reside exatamente quando não é possível realizar o exame de corpo de delito, nem de maneira direita nem indireta. Necessária a análise do termo legal impossível e, ainda, se somente a prova testemunhal poderá suprimir a prova pericial. Para isso, novamente, recorremos à doutrina:

“Se, porém, os vestígios desapareceram por motivo de inércia, inclusive a burocrática, dos órgãos policiais ou judiciais, a menor segurança da prova testemunhal não pode ser carreada ao acusado. Assim, se a vítima de um furto com arrombamento, cansada de esperar a vista dos peritos, mandar consertar a janela arrombada e, por ocasião do exame, não se constata mais vestígios, a prova testemunhal não pode substituir a falta da perícia. O art. 167 do Código de Processo Penal, como uma exceção a garantia do acusado quanto à constatação dos vestígios por exame pericial, deve ser interpretado estritamente, impondo que se aplique, exclusivamente, à hipótese de desaparecimento natural, ou por ação do próprio acusado, e não por inércia dos órgãos de persecução penal que atuam contra o eventual réu” (Greco Filho, 2010, p. 212).

“Da conjugação destes três dispositivos (art. 158, 564, III, b, e 167 do CPP), o que se infere é que o auto ou exame de auto de corpo de delito deve ser realizado em todo o delito que deixa vestígio, sob pena de nulidade. Por outra parte, não pode a confissão supri-lo; e, ante a impossibilidade de exame dos vestígios do crime, a prova testemunhal é a única que o pode suprir” (Marques, 1965, p. 365).

Como se vê nas lições, claros os ensinamentos que demonstram a excepcionalidade de a prova testemunhal ser capaz de comprovar a materialidade de crimes que deixam vestígio. Ou seja, para os crimes que deixam vestígios, a prova indispensável para a existência do delito é o Auto de Corpo de Delito, em sua forma direta ou indireta, conforme dizeres do art. 158 do CPP, sendo causa, inclusive, de nulidade sua inexistência (art. 564, III, b, do CPP).  Somente pelo fato de ser nulidade a ausência de tal prova, já se demonstra a imprescindibilidade desta em crimes que deixam vestígios.

E José Frederico Marques é ainda mais incisivo dizendo que somente a prova testemunhal será capaz de suprir o auto de corpo de delito. Ou seja, nada além da prova testemunhal poderá ser considerado para comprovar a materialidade do crime.

Para nós, a interpretação da referida norma deve ser feita de maneira teleológica, para que se evitem julgamentos injustos. Ora, onde o art. 167 do CPP diz impossível, entendemos que o exame pericial e o auto não podem ser realizados de forma alguma, sendo certo que se a causa da impossibilidade se der por desídia do Estado, claro que não estamos falando em impossibilidade, e sim em negligência estatal, que nunca poderá ser considerada contra o réu. 

Assim, o suprimento da prova técnica pela testemunhal somente será admitido se, e somente se, desde o início das investigações, foi impossível ao Estado a realização do exame técnico, como, por exemplo, ser o corpo desintegrado em ácido sulfúrico ou jogado em alto-mar junto a um cardume de tubarões.

Por isso, caso não tenha sido realizada a prova pericial por qualquer motivo que não a impossibilidade efetiva, impossível será comprovar a materialidade do delito. Assim, se as lesões provocadas em alguém desapareceram em virtude do longo tempo entre a prática das lesões e o exame policial, não se admitirá a prova testemunhal como prova da existência de tais lesões.

Ademais, tomando por base o crime de homicídio, vemos que este é crime material e que deixa vestígio.  E assim, por imposição legal, deve ser feito o ACD, em sua forma direta ou indireta, para que se tenha como provada a materialidade. E somente no caso de ser impossível ao Estado a realização do exame pericial é que será admissível a prova testemunhal para demonstração da existência do crime, sendo a prova testemunhal, pois, substitutiva à prova pericial e não complementar.

Assevere-se, ainda, que a lei foi categórica ao afirmar que somente a prova testemunhal será capaz de substituir a pericial, não sendo admitida nenhuma outra espécie de prova para comprovação da materialidade. Se assim não fosse, temos certeza de que o legislador teria colocado qualquer tipo de prova e não apenas o testemunhal. E ainda há de ser lembrado que nem mesmo a confissão do acusado pode ser utilizada como prova da materialidade do delito, demonstrando, ainda mais, que somente a prova testemunhal é capaz de substituir o Auto de Corpo de Delito.

A jurisprudência, em caminho diametralmente oposto ao que tem entendido a doutrina, tem considerado como possível a prova da materialidade do delito pela prova testemunhal em qualquer caso, ainda quando haja inércia do Estado e, ainda, outras provas que não a testemunhal para prova do evento. Pinçamos ementa do TJMG:

“Pronúncia – Falta de auto de corpo de delito – Nulidade do processo – Inexistência – Pedido de desclassificação para lesões corporais – Impossibilidade – Existência de elementos a indicar a presença do ‘animus necandi’ – Recurso não provido. Se a prova testemunhal é convincente, se há prova de que a vítima foi levada ao hospital em razão da agressão sofrida e se o próprio réu confessa que a agrediu, não constitui nulidade processual a falta de auto de corpo de delito. Para que se possa proceder à desclassificação da conduta imputada ao acusado de tentativa de homicídio para o delito de lesão corporal, é indispensável que se tenha certeza que o réu não agiu com animus necandi” (TJMG –  RSE 1.0567.05.086094-7/001).

Como se vê, para a jurisprudência, a ausência de Auto de Corpo de Delito pode ser suprida pela prova testemunhal em qualquer caso, até mesmo quando da inércia do Estado. Na ementa citada, vemos que a vítima foi levada ao hospital e várias eram as testemunhas que a viram. Ora, por que não foi feito o Auto de Corpo de Delito ao menos em sua forma indireta?

Na verdade, ao se aceitar a prova da materialidade pela prova testemunhal, e até mesmo com base no depoimento do acusado, o que a lei veda no art. 158 do CPP, a jurisprudência vulgarizou o termo impossível previsto na Lei.

Ao se admitir que em qualquer caso pode ser utilizada a prova testemunhal para a prova do alegado, está-se, na verdade, falando que o Auto de Corpo de Delito não é indispensável como previsto no artigo acima citado.  O que se tem visto, pois, é que a jurisprudência tem relativizado mandamento legal em total prejuízo ao réu, dando interpretação à norma processual contrária ao réu, mesmo, a nosso sentir, não havendo dúvida de interpretação, jogando por terra o princípio processual do favor rei.

Aceitando-se que situações como as acima colocadas perdurem, na verdade, estamos dando ao Judiciário o poder de mudar as leis, ferindo não só o princípio da divisão dos poderes, como, principalmente, o direito dos acusados de terem um processo justo e legal, como determina nossa Carta Magna.

Assim sendo, o que se conclui é que quando possível a realização do ACD no objeto do delito, ainda que em sua forma indireta, esta é a única prova possível para comprovar a existência do delito. E somente quando impossível a realização de tal auto é que poder-se-á utilizar a prova testemunhal em substituição, para a prova da materialidade, já que o art. 167 do CPP é claro em dizer que somente a prova testemunhal substituirá a prova técnica na impossibilidade de esta se realizar, não se admitindo outra prova que não essa para prova da materialidade do delito. Assevere-se, ainda, que a impossibilidade de realização do exame pericial não pode ser confundida com o atraso ou a desídia do Estado em realizar os exames necessários, conforme muito bem dito por Greco Filho no texto acima citado.

Bibliografia

Greco Filho, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2010.

Marques, Jose Frederico. Elementos de direito processual penal.Rio de Janeiro-São Paulo: Forense, 1965. v. 2.

Nucci, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. São Paulo: RT, 2010.

Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

Távora, Nestor; Alencar, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. Salvador: JurisPodium, 2009.

Gian Miller Brandão
Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho.
Professor de Processo e Direito Penal no IPTAN.
Advogado.

O que acontece se eu não for fazer o corpo de delito?

A falta de comprovação da materialidade da infração, quando indispensável o exame do corpo de delito (direto ou indireto), leva à nulidade do processo ou, ainda, à absolvição, em razão da presunção de inocência. Ora, se não há provas suficientes para a condenação, a absolvição é medida que se impõe, com fulcro no art.

É indispensável o exame de corpo de delito?

Dispõe o art. 158 do Código de Processo Penal: “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.

Qual o prazo para realizar o exame de corpo de delito?

Os peritos elaboram o laudo pericial no prazo máximo de 10 dias, com possibilidade de prorrogação. Em caso de morte, a autópsia é feita pelo menos seis horas depois do óbito, salvo se os peritos, pela evidência dos sinais de morte, julgarem que possa ser feita antes do prazo.

Quais os efeitos da ausência do exame de corpo de delito na inflações que deixam vestígios?

- A falta de exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígio configura nulidade absoluta, nos termos do artigo 564 , III , b , c/c artigo 572 , ambos do Código de Processo Penal , o que torna imperativa a anulação do feito.