Qual foi a estratégia usada pelo exército vencedor?

A passagem do século XX para o XXI testemunhou a consolidação de uma historiografia indigenista que vem se esforçando cada vez mais por retornar aos indígenas o papel de agentes não só de sua própria história, mas da história do Brasil como um todo. Apesar disso, muitos episódios históricos que foram palcos privilegiados da atuação indígena ainda permanecem encobertos em brumas, inclusive alguns que influíram de forma definitiva nos rumos da colonização da América portuguesa. E, dentre esses, talvez poucos tenham sido mais definidores e sejam menos conhecidos do que a chamada “guerra dos bárbaros”: uma devastadora confrontação entre colonização e sociedades indígenas dos interiores continentais do Estado do Brasil, cujo desenrolar determinou a forma como os territórios para além da linha costeira das capitanias do norte foram colonizados entre os séculos XVII e XVIII. Uma guerra composta por várias guerras e dominada pela atuação indígena, não apenas do lado adversário, mas também, e de forma preponderante, nas próprias forças militares coloniais. E, no entanto, pouco dessa ação é realmente conhecido .

A própria construção da imagem de uma única guerra contra os “bárbaros”, os então chamados tapuias – ou seja, um número indefinido de grupos indígenas independentes que habitavam o Recôncavo Baiano e o semiárido das capitanias do norte – com a conjugação dos diferentes conflitos em um só, contribuiu para a simplificação do papel que a agência indígena exerceu na cultura militar seiscentista. Isso apesar de que, se existia alguma homogeneidade, ela estava apenas nas políticas expansionistas dos centros administrativos responsáveis pela montagem das expedições de conquista, principalmente o governo geral e o governo de Pernambuco. De fato, a própria divisão em guerra do Recôncavo e guerra do Açu é uma convenção artificial baseada mais no centro responsável pela resposta aos levantes sertanejos do que em qualquer unidade possuída pelos mesmos: a guerra do Recôncavo, uma série de conflitos ocorridos nas capitanias da Bahia e Ilhéus entre 1651 e 1679 contra grupos como os Paiaiá e os Aimoré , teve seu comando centralizado no próprio governo geral, enquanto a chamada guerra do Açu se espalhou pelo semiárido a norte do rio São Francisco, sendo mais intensa na capitania do Rio Grande do Norte entre 1687 e 1704 e, apesar de também cair oficialmente sob jurisdição do governo geral, terminou mesmo por ter seu comando no governo de Pernambuco, que considerava a área em disputa como integrante das chamadas capitanias anexas.

A partir desses centros foi levada a guerra aos grupos indígenas sertanejos através de uma série de expedições militares que empregavam estratégias de conquista idealizadas por aqueles que foram os principais comandantes militares coloniais, os governadores: no caso dos conflitos baianos, o governo geral começou por declarar guerra justa, em 1611, aos grupos que atacavam o Recôncavo, mas, por causa das guerras holandesas, só transformou essa declaração em prática após 1650, com as expedições conhecidas como jornadas do sertão, dentre as quais as principais foram a de 1653, contra os Aimoré, e a de 1654, contra os Paiaiá. Por sua vez, a guerra do Açu, iniciada em 1687, teve seu comando repartido entre o capitão-mor do Rio Grande do Norte, o governador de Pernambuco e o governador geral, e foi combatida através de expedições originadas em Pernambuco, montadas com base na estrutura militar herdada das guerras holandesas e que incluíam também os sertanistas paulistas então estacionados em Palmares ( , p. 91, 128-129, 135).

Tanto a sul quanto ao norte do rio São Francisco, os conflitos contra os ‘bárbaros’ ocorreram na esteira daqueles contra a WIC : por um lado, vários dos grupos indígenas levantados, principalmente na jurisdição de Pernambuco, aproveitaram o contato com os holandeses para fortalecer sua estrutura militar, inclusive comprando armas de fogo dos invasores. Por outro, o próprio fato de que as forças coloniais estavam ocupadas contra o exército da WIC na década de 1650 tornou muitos dos levantes possíveis, principalmente no Recôncavo. Além disso, uma vez finda a guerra de restauração, os governadores aproveitaram a estrutura deixada por ela, sobretudo em Pernambuco, para montar suas expedições para o sertão, mobilizando, por exemplo, o recém-criado terço dos índios e a inchada tropa regular dos núcleos urbanos daquela capitania . Por fim, as guerras de resistência e restauração travadas nas décadas de 1630 e 1650 haviam ensinado aos comandantes coloniais a eficácia do emprego de táticas indígenas contra tropas que seguiam uma tradição europeia de combate; um ensinamento que seria posto em prática na construção das estratégias empregadas nos conflitos sertanejos.

Assim, a segunda metade dos seiscentos viu a consolidação de uma estrutura militar centrada nos núcleos urbanos açucareiros; estrutura que, apesar de se basear no exército regular português, aprendera a empregar táticas criadas a partir da própria experiência colonial, com forte influência da guerra indígena, que valorizava a guerra irregular liderada por um tipo específico de comandantes, os práticos do sertão – homens com experiência militar nos espaços para além da colonização –, e que se adaptava os saberes dos comandantes indígenas: os requisitados cabos indígenas dos aldeamentos do Recôncavo e os capitães do terço de índio da jurisdição de Pernambuco ( ).

Esses cabos e capitães exemplificam muito da agência indígena em ação nas guerras sertanejas, a despeito de que a maior parte dos numerosos atores indígenas que agiram nesses episódios permanecem anônimos nas fontes: eram principalmente os flecheiros, os guerreiros indígenas onipresentes em todas as expedições da guerra dos bárbaros. De fato, talvez a única constante nas variadas campanhas sertanejas tenha sido a massiva presença dos contingentes de flecheiros, estivessem eles agregados às forças coloniais ou contra elas.

Tal mão de obra bélica aparece de forma indelével nas fontes hoje espalhadas nos acervos de diferentes institutos históricos, marcadamente o Instituto Histórico e Arqueológico do Rio Grande do Norte, assim como no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa e na Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro. Mas, apesar de seu volume considerável, tais fontes são pouco diversas em termos de forma e conteúdo, restringindo-se quase que em sua totalidade ao gênero da correspondência administrativa e escritas por ou para altos representantes da administração colonial no Estado do Brasil, o que faz com as imagens da guerra e seus atores traçadas por elas sejam bastante uniformes.

Essas fontes, entretanto, apesar dessas limitações, não deixam de sugerir o quanto os campos da guerra dos bárbaros foram dominados pelos flecheiros indígenas que, mais do que desempenhar o papel dos ditos bárbaros que ameaçavam a expansão colonial no semiárido, também atuavam como os braços armados dessa mesma expansão. A importância dessa atuação, todavia – que estava longe de ser apenas numérica, marcante também na definição de armamentos e estratégias –, não modificou o discurso colonial, que raras vezes se preocupou em nomear seus agentes indígenas. Um discurso que foi absorvido pela historiografia que, a partir de Varnhagen e Capistrano de Abreu, foi sempre bastante apática em suas descrições da guerra dos bárbaros, culpando a ausência de crônicas por seu desinteresse. Segundo Pedro Puntoni, poucos autores do século XX contrariaram essa apatia, sendo exceções apenas aqueles que, como Olavo de Medeiros Filho e Carlos Stuart Filho, buscaram construir histórias regionais para seus estados, respectivamente o Rio Grande do Norte e o Ceará, que haviam sido palcos principais da guerra ( , p. 14-15). Mas, no geral, a grande lacuna que terminou por ocupar o lugar que deveria ter sido da guerra dos bárbaros na História do Brasil apenas reproduziu a situação da historiografia brasileira como um todo que costumeiramente imputava a uma alegada escassez de fontes o constante menosprezo para com a história indígena ( ).

A resposta a tal situação veio com a renovação da historiografia colonial na passagem do século XX para o XXI, quando autores como Ronaldo Vainfas, John Manuel Monteiro e Ronald Raminelli, bastante influenciados pela Antropologia, começaram a repensar os papéis desempenhados pelos indígenas na colonização ( ). E a “nova história indígena” que nasceu dessa renovação atualmente deixa cada vez mais a descoberto a intensa relação entre a agência indígena e a estrutura militar colonial. Entre os temas que vêm sendo estudados sob essa perspectiva estão questões como a nobilitação de lideranças indígenas por serviços militares, as estratégias políticas dos chefes indígenas perante as autoridades coloniais e o papel das mediações culturais na reconfiguração da guerra indígena durante os séculos XVI e XVII ( ; ; ; ; ).

A maioria desses trabalhos observam os atores sociais indígenas como protagonistas dos processos históricos que os envolviam, com interesses e agendas próprios, e responsáveis por ações que resultavam tanto de suas escolhas quanto dos contextos nos quais estavam inseridos ( , p. 471). Essa é a perspectiva do crescente número de autores, influenciados por Maria Celestino de Almeida, que privilegiam uma abordagem do protagonismo indígena na história – a despeito das controvérsias em torno da utilização do conceito para o período colonial ( ) – preocupada com a influência exercida por diferentes povos e indivíduos indígenas nos “rumos dos processos” ( , p. 7). É o caso, por exemplo, de trabalhos que abordam a atuação dos principais em aldeamentos do Grão-Pará nas décadas de 1820 e 1830, a interpretação indígena das normas de conduta jesuíticas setecentistas, a reação de Botocudos e Kaingang às políticas imperiais oitocentistas, e mesmo a formação de milícias entre os Guarani ( , p. 113-142; , p. 87-112; ; , p. 153-178).

Por sua vez, no que diz respeito especificamente à guerra dos bárbaros, a renovação da historiografia indigenista também trouxe mudanças, principalmente a partir do trabalho de Pedro Puntoni, apresentado enquanto tese de doutorado em 1998 e publicado em 2002. E apesar de Puntoni dar a primazia nessa renovação à obra de Maria Idalina Pires, publicada na década de 1990, a qual considera “a primeira a ultrapassar o universo restrito da documentação da Biblioteca Nacional” e inserir a guerra dos bárbaros em uma história da resistência indígena à colonização ( , p. 16), foi mesmo seu estudo o responsável por influenciar toda uma geração de pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação em História de diferentes estados brasileiros nas primeiras décadas do século XXI ( ; ; ; ; ; ): sua visão da guerra como duas guerras diferentes, unificadas apenas pela perspectiva colonial, tornou-se predominante na maioria dos trabalhos desde então produzidos sobre a temática.

Apesar disso, muito ainda há a ser dito sobre a relação entre indígenas e estrutura militar colonial, e muito sobre essa relação e a guerra dos bárbaros de forma específica. E apesar das limitadas informações fornecidas pelas fontes sobre a guerra no que diz respeito aos indígenas participantes – oferecendo apenas dados vagos quanto a números de contingentes, etnias, nomes de indivíduos, por exemplo – essas são praticamente unânimes quanto a afirmar a onipresença de tropas indígenas nos conflitos no sertão. Assim, se por um lado a guerra dos bárbaros exemplifica bem o cultivo do anonimato indígena pelos redatores das fontes coloniais, por outro ela também funciona como um lugar privilegiado para a observação da preponderante presença indígena nos campos de batalha coloniais. Por causa disso, a própria estrutura militar colonial serve de luneta para a observação da agência indígena e da influência que esta desempenhou não apenas nessa estrutura, mas na própria configuração da sociedade que se construía no sertão.

Guerra Indígena como guerra colonial: estratégias indígenas e atuação contra a colonização na ‘guerra dos bárbaros’

Se é possível identificar um conjunto de estratégias empregadas pelos comandantes coloniais nos diversos conflitos que constituíram a guerra dos bárbaros – conjunto oriundo da própria cultura militar da sociedade açucareira construída ao longo do processo de conquista do litoral, no século XVI, e durante as guerras holandesas, na primeira metade do século XVII –, do ponto de vista indígena certamente não houve unidade alguma entre o Recôncavo e o Açu, ou mesmo entre os vários levantes em uma mesma região: o que as fontes retratam são diferentes e independentes levantes produzidos pela reação das nações continentais ao avanço da pecuária e da escravidão nas rotas sertanejas originadas de Salvador e Olinda ( , p. 60). As identidades dessas nações são confusas na correspondência administrativa, mas não totalmente ausentes: dos Paiaiá e Aimoré no Recôncavo, passando pelos Cariri na ribeira do São Francisco até os Tarairiú no Açu, vários grupos indígenas são repetidamente mencionados pelas fontes seiscentistas de forma a serem interpretados como protagonistas da ‘guerra dos bárbaros’. Essas mesmas fontes também fornecem indícios acerca de suas estratégias contra o avanço colonial, que associavam o emprego de um arsenal composto por armas tradicionais e adaptações europeias a um conjunto de táticas que explorava seu detalhado conhecimento geográfico das regiões em disputa. Conjunto estratégico esse que pode ser entrevisto nos escritos de capitães coloniais contra quem tais táticas foram empregadas:

eles [vão] nus, e descalços, ligeiros como o vento, só com arco e flechas, entre matos, e arvoredos fechados, os nossos soldados embaraçados com espadas, carregados com mosquetes, espingardas e mochilas com seu sustento, ainda que assistem ao inimigo não o podem seguir, nem prosseguir a guerra: eles a cometem de noite por assaltos nossas povoações, casas, igrejas, lançando fogo aos ingovernos, matando gente e roubando os bens móveis que podem carregar, e conduzindo os gados e criações e quando acudimos o dano está feito. E eles [andam] escondidos entre os matos onde os nossos soldados não podem seguir com a mesma segurança, instância e diuturnidade por [estarem] carregados de ferro e mochilas, em que carregam o seu sustento que não pode ser mais que para quatro ou seis dias [enquanto] os bárbaros [têm seu sustento] nas mesmas frutas agrestes das árvores, como pássaros, nas raízes que conhecem e nas mesmas imundices de cactos, cobras e caças de quaisquer animais e aves. (“Sobre os tapuias que os paulistas aprisionaram na guerra e mandaram vender aos moradores do Porto do Mar, e sobre as razões que há para se fazer a guerra aos ditos tapuias (1691)”). (MANUSCRITOS, 1961, 54 XIII 16, 0. 162. apud , p. 72).

Essa descrição anônima, datada de 1691, sintetiza a principal estratégia indígena utilizada nos conflitos sertanejos: a chamada guerra de emboscada, composta de ataques relâmpagos, quase sempre noturnos, nos quais os atacantes faziam uso de armas leves e de seu conhecimento da geografia local. Em outros relatos encontramos variações dessa fórmula, que se beneficiava principalmente do domínio do território pelos flecheiros, não só do conhecimento do relevo e das rotas, mas também da vegetação que poderia sustentar uma tropa: no papel de um certo Joseph Lopes de Ulhoa, escrito em 1688, a extrema mobilidade desse tipo de guerra é ressaltada quando o autor descreve o quanto os Janduí – uma das nações Tarairiú – eram inalcançáveis devido à “ligeireza com que este gentio marcha e pouco peso das armas que levam sem lhes ser necessário carregar os mantimentos com que se hão de sustentar…” ( , p. 92); e no memorial do comandante paulista Pedro Carrilho sobre as nações no Açu, que afirma que “a guerra daqueles bárbaros é toda de ciladas e assaltos como um raio que passa” ( , p. 345). Rapidez, agilidade e surpresa eram elementos, assim, associados pelos militares coloniais às vitórias indígenas, e que foram, por sua vez, tentativamente adaptados também pelas estratégias das tropas institucionais.

Esses mesmos elementos podem ser vistos também na descrição do capitão Gregório de Berredo Pereira, escrita na década de 1690, na qual a guerra tapuia aparece como uma guerra sem quartel onde os combatentes “nem apresentam batalha à cara descoberta, senão com súbitas avançadas e depois por detrás das árvores fazem os seus tiros; usam muito de gritarias para meterem terror” ( apud , p. 42-43). Para Berredo Pereira, tal conjunto de táticas era na verdade uma ausência de táticas, pois

[…] se este inimigo fizera forma de batalha, depressa fora desbaratado, mas são nações estas fora de todo o uso militar, porque as suas avançadas são de súbito, dando urros que fazem tremer a terra para meterem terror e espanto e logo se espalham e se metem detrás das árvores, fazendo momos como bugios, que sucede as vezes meterem-lhe duas e três armas e rara vez se acerta o tiro pelo jeito que fazem com o corpo ( apud , p. 42-43).

Que Berredo Pereira considerasse a guerra indígena como escassa de táticas não é surpresa, já que o seu era um discurso bem consistente com a representação colonial das sociedades indígenas como sociedades ‘sem fé, lei ou rei’; aquilo que Pierre Clastres mais tarde chamaria de critério da falta ( ). Apesar disso sua descrição deixa entrever as táticas usadas pelos grupos que enfrentavam as tropas da Coroa no Açu: ataques surpresa, apoiados por todo um gestuário desenhado para inspirar medo – parcialmente responsável pela fama de ferozes dos guerreiros indígenas do sertão – e que emoldurava o fogo de flecharia e mosquetes feito com velocidade e destreza, tudo culminando com a retirada relâmpago dos atacantes.

Os relatos de comandantes como Ulhoa, Carrilho e Pereira reproduzem um discurso colonial que associava a rapidez e agilidade na mobilização bélica das nações sertanejas ao emprego que as mesmas faziam de armas leves como arcos, flechas e propulsores de dardos, assim como mosquetes e mesmo cavalos, e que atribuía a esse conjunto tático as vitórias indígenas contra as tropas mobilizadas pelas autoridades coloniais . E, no entanto, é importante ressaltar que as tropas coloniais usavam praticamente as mesmas armas, se contarmos os contingentes de flecheiros agregados às expedições sertanejas, o que anula a variável armamento da equação que constantemente favorecia as tropas indígenas insurrectas. Se havia um elemento diferencial que pode explicar tais vitórias nessas e outras descrições é mesmo a agilidade nos movimentos dos flecheiros rebelados, que aproveitavam seu extenso conhecimento do território para criar táticas que visavam cansar e confundir potenciais perseguidores, facilitando o processo da montagem de emboscadas. O comandante paulista Morais Navarro relata um episódio que exemplifica bem isso: em um confronto entre os Janduí e uma força paulista apoiada por flecheiros aldeados do Apodi, os primeiros teriam abandonado a batalha, que estavam perdendo, apenas para serem perseguidos pelos adversários por uma serra árida onde, após seis dias, teriam armado uma emboscada. Bem-sucedidos nesse ataque, os Janduí teriam então fugido novamente, dessa vez sem serem perseguidos, já que, segundo Navarro, a área para onde haviam se retirado era muito árida para sustentar os soldados da colonização ( , p. 97).

Ao contrário da noção europeia de honra, então em voga no século XVII e que exigia confrontos diretos, nações como os Tarairiú no Açu e os Paiaiá no Recôncavo cultivavam táticas indiretas de combate, incluindo armadilhas e falsas retiradas. Uma agilidade no deslocamento de homens de guerra que certamente derivava da própria mobilidade inerente às sociedades seminômades, com o costume de mover toda uma população também tendo sido usado como recurso contra os ataques das forças coloniais: caso, por exemplo, dos Aimoré moradores da serra do Aporá que, ao verem sua aldeia como alvo de um cerco promovido pela expedição organizada pelo governo geral em 1651, rapidamente se organizaram para mudá-la de lugar, abandonando a serra e adentrando ainda mais no sertão. Uma estratégia também utilizada pelos habitantes da serra do Orobó, chamados na documentação de Tauaçú, em 1671, que não apenas abandonaram suas aldeias, mas as incendiaram antes da tomada pelas tropas coloniais ( , p. 51, 64).

Esses deslocamentos aparentemente simples poderiam gerar armadilhas mais complexas. Os Paiaiá, por exemplo, cujas aldeias haviam sido reduzidas no Recôncavo na década de 1650, usaram de um artificio original para induzirem o governo geral a enviá-los de volta a sua região de origem, a serra do Orobó: empreenderam vários ataques a esta, fazendo-se passar por um grupo desconhecido de ‘tapuias’ e esperando provocar as autoridades coloniais a pôr em prática sua estratégia de ‘muros do sertão’, que consistia em usar aldeias aliadas como barreiras contra ataques inimigos. Estratégia que, de fato, o governo geral utilizou, ordenando o envio das 15 aldeias paiaiá para o Orobó, além de duas expedições institucionais e uma tropa de paulistas, e somente descobrindo o logro em 1659.

Nesse episódio, os Paiaiá, mais do que surpresa, facilidade de deslocamentos e agilidade na mobilização, fizeram uso da própria experiência adquirida em negociações com as autoridades coloniais, da ignorância dessas em relação aos grupos indígenas do Recôncavo, e do fato de que tais autoridades não tinham ferramentas para identificar e diferenciar corretamente as nações da região; e usaram todos esses elementos para construir uma estratégia que, para além de aspectos típicos de sua estrutura militar, empregava um plano original e consciente, cujo objetivo último era tirar o melhor proveito das práticas militares e políticas das autoridades coloniais.

De forma geral, os indícios percebidos nas descrições desses episódios sugerem a existência de um complexo estratégico, comum às culturas bélicas de nações como os Tarairiú, os Paiaiá e os Aimoré, construído sobre velocidade e surpresa, e que se chocava com os princípios militares da Europa seiscentista, então fundamentados em disciplina e peso numérico. Apesar disso, a cultura bélica das nações do Recôncavo e do seminário não pode ser tomada como uma estrutura de guerra indígena única e em seu estado ‘puro’, pois qualquer que tenha sido a cultura militar de tais sociedades antes da colonização, a mesma já estava indelevelmente alterada pela própria condição colonial: de fato, entre as táticas favoritas usadas pelos grupos levantados estava o constante emprego de armas de fogo ( , p. 26). Nesse sentido, o que as fontes coloniais nos mostram são recortes das estruturas bélicas indígenas em um momento de crise gerada pelo contato com a colonização e pela própria ‘guerra dos bárbaros’.

O caso dos elementos reconhecíveis da cultura militar tarairiú mostrados pela correspondência administrativa seiscentista é exemplar de uma estrutura social indígena que só foi registrada em um momento de guerra: grupo que aparece na documentação em diferentes posições, mas indubitavelmente assumindo um papel principal na guerra do Açu, os Tarairiú podem ser classificados como uma nação de língua independente que aparentemente se subdividia em grupos menores – dos quais a documentação menciona os Janduí, os Pega, os Ariú, os Canindé, os Genipapo, os Paiacú, os Panati, os Caratiú e os Corema – cada um desses constituído por inúmeras aldeias e possivelmente comandado por um chefe (maioral ou principal, como denominado pela documentação) escolhido por suas proezas militares e cujo poder se basearia tanto no prestígio militar quanto no carisma ( ; ). Registros da Coroa datados de 1692 atribuem especificamente aos Janduí vinte e duas aldeias espalhadas pelos sertões das capitanias de Pernambuco, Paraíba, Itamaracá e Rio Grande, todas com seus próprios maiorais, parentes do chefe Canindé e obedientes a ele, contando então com uma população total de aproximadamente 14 mil pessoas, dentre os quais 5 mil flecheiros (CÓPIAS das Capitulações Realizadas entre o Governador Geral do Brasil Antônio Luís Gonçalves da Câmara e Canindé Rei dos Janduins, em 10 de abril de 1692 (apud , p. 422-426).

No geral, essas fontes atribuem aos líderes tarairiú um ativo papel militar, mas limitam sua autoridade ao momento dos conflitos ( ). Ou seja, o quanto a autoridade de maiorais como Canindé se devia ao próprio estado de guerra no qual sua sociedade se encontrava naquele momento, ou o quanto essa liderança era constante mesmo em períodos de paz, é praticamente impossível saber, pois se as fontes descrevem Canindé como um grande líder militar com milhares de flecheiros a sua disposição elas refletem uma situação de guerra aberta e a função de líder militar naquele momento crítico, e não seu significado para a sociedade tarairiú pré-‘guerra dos bárbaros’.

Como a documentação sobre os Tarairiú é em si um registro de guerra obviamente o que vemos nessas fontes são informações militares sobre o inimigo. Informações que sugerem, inclusive, que as mudanças sociais pelas quais essa sociedade passava estavam intrinsecamente conectadas às transformações em sua estrutura militar e à adaptação extremamente bemsucedida que fez de elementos bélicos de origem europeia, como armas de fogo e cavalos. Já desde o período holandês que grupos tarairiú reconfiguravam sua estrutura militar a partir de trocas realizadas com as tropas holandesas estacionadas no Rio Grande do Norte, transformando suas fileiras de flecheiros a pé em uma artilharia montada, e usando armas cuja venda o governo português tentava, sem sucesso, controlar ( ; , p. 97-98, 99).

Sobre essa questão autores como John Manuel Monteiro e Carlos Fausto já ressaltaram o quanto o envolvimento indígena nas guerras coloniais foi um fenômeno importante na reconfiguração identitária desses grupos pós-colonização ( ; ). O que significa que a própria classificação dos Tarairiú em subgrupos como os Janduí e os Paiacú, e a associação entre esses grupos e seus chefes – informações recolhidas dos registros luso-americanos –, tanto equivalem a uma percepção eurocêntrica do que seria sua realidade social, quanto podem equivaler a elementos estruturais dessa sociedade que surgiram ou se reorganizaram apenas no contexto do confronto colonial. Por outro lado, a incorporação de cavalos e armas de fogo, produto do contato com os europeus, certamente impulsionou a criação de táticas específicas pelos grupos do semiárido, ilustrando o quanto a cultura militar desses povos já vinha se reconfigurando pelo contato com os europeus mesmo antes do início da ‘guerra dos bárbaros’.

Guerra Colonial como Guerra Indígena: Tropas de Flecheiros como Agentes Coloniais na ‘guerra dos bárbaros’

Se a estrutura bélica das nações indígenas do semiárido vivenciou um processo de reconfiguração durante os conflitos no Açu e Recôncavo, as tropas coloniais, cuja estrutura organizacional deveria reproduzir o modelo português, também se adaptavam às situações impostas pelo confronto com Tarairiú, Paiaiá e Cariri. Uma adaptação que incluía a construção e adoção de táticas e estratégias indígenas, mas que começava pelo próprio emprego de flecheiros aldeados em suas expedições. Na verdade, para além da ‘guerra dos bárbaros’, os vestígios documentais sugerem que as tropas indígenas foram uma constante em variados empreendimentos de conquista e expansão territorial no Estado do Brasil dos séculos XVI e XVII : as forças coloniais contra o Quilombo de Palmares, por exemplo, foram massivamente compostas por flecheiros de aldeias próximas, enquanto as expedições saídas de Pernambuco para a conquista do Maranhão eram constituídas por companhias de entre 30 e 40 soldados regulares e até 800 flecheiros aliados, algumas das quais empregando mais de 40 canoas indígenas ( ; ).

Como prática usual, o recrutamento dos indígenas pelas forças da colonização era feito de forma coletiva: ou seja, as autoridades coloniais não alistavam indivíduos, mas arregimentavam grupos de flecheiros retirados de aldeamentos específicos, agregando-os às tropas institucionais sem nem mesmo registrar o número total de homens que recebiam. Essa forma de mobilização parece ter sido o método mais comum de emprego da mão-obra bélica indígena nas capitanias açucareiras, provavelmente originada da prática de alianças travadas com as nações indígenas, iniciada no século XVI ( ). Dessa forma, estrategicamente, os contingentes de flecheiros eram usados como auxiliares das tropas burocráticas e das forças particulares dos sesmeiros – esses agindo baixo títulos do oficialato das ordenanças –, na milícia de índios e nas tropas dos sertanistas paulistas. Por sua vez, a partir da multiplicação dos aldeamentos no século XVII, os governadores responsáveis pelas ações de conquista passaram a encarregar as lideranças desses – fossem padres, capitães de índios ou maiorias – da organização dos flecheiros para os empreendimentos da Coroa, com a jurisdição de Pernambuco contando também com o governador de índios na gestão desses espaços.

Assim, é possível identificar uma prática colonial relativa ao emprego de mão-de-obra bélica indígena que foi tecida, desde o século XVI, na cultura política das autoridades militares das capitanias do norte do Estado do Brasil e que consistia basicamente no posicionamento massivo de tropas de flecheiros aliados para compensar os parcos números de soldados regulares e mesmo de milícias e ordenanças normalmente a sua disposição. Por outro lado, a contratação dos sertanistas paulistas também se tornou uma prática comum nessas capitanias, e seu emprego foi aumentando gradativamente ao longo do século XVII até culminar na transformação de suas forças irregulares em uma tropa institucional, o terço dos paulistas, durante a guerra do Açu ( ). Essa contratação, enquanto estratégia militar, foi, para além do emprego de flecheiros, a principal resposta seiscentista das autoridades açucareiras às resistências encontradas na expansão territorial, não apenas contra grupos indígenas, mas também contra os quilombos. E de tal forma essa estratégia foi interpretada como bem-sucedida pelos governadores que a esses sertanistas foi atribuída, por colonização e historiografia, o papel principal na vitória contra grupos resistentes na conquista do sertão ( , p. 168-175). Importante ressaltar, entretanto, que talvez poucas forças coloniais tenham explorado tanto a mão de obra militar dos flecheiros aldeados quanto os sertanistas, o que inclusive gerou muitos choques entre as lideranças indígenas, como os governadores de índios, e os comandantes paulistas. Seja como for, esses não eram os primeiros a serem empregados quando as autoridades coloniais julgavam ser necessário empreender ‘guerra justa’, com tal papel cabendo mesmo às tropas institucionais.

Nos conflitos que constituíram a guerra do Recôncavo os governadores gerais montaram várias campanhas que chamaram de jornadas do sertão, compostas por forças institucionais saídas de Salvador e das vilas e propriedades privadas do Recôncavo, sempre acrescidas de contingentes de flecheiros postos sob o comando de capitães de índios ou ‘práticos do sertão’, e contando com o apoio financeiro das câmaras do Recôncavo, que inclusive deveriam pagar os ‘resgates’ prometidos aos flecheiros mobilizados ( , p. 146, 151). Foram duas as principais jornadas organizadas dessa forma: a de 1651 contra os Aimoré e a de 1654 contra os Paiaiá. Nessa última, o governador geral ordenou que o sargento-mor da Bahia recrutasse 600 flecheiros que deveriam dar suporte aos 280 soldados de infantaria que estavam sendo enviados ( ), ao mesmo tempo em que passou ordens diretas para os capitães de índios de várias aldeias do Recôncavo, como a do Jaguaribe, para que estes fornecessem todos os homens “capazes de marcharem, de flecharem e os tenha todos prontos para a jornada que mando fazer brevemente ao sertão” (CARTA para o Capitão da Aldeia de Jaguaribe, Documentos Históricos, p. 217-218).

No caso dos conflitos que compuseram a dita guerra do Açu – espalhados pelos interiores das capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Ceará, e intensificados nas várzeas de rios como o Açu e o Jaguaribe ( ; ) –, estes, de forma geral, foram todos combatidos pelas autoridades coloniais através de um conjunto de estratégias bastante homogêneo derivado das ordens do governo de Pernambuco. De fato, foram os governadores dessa capitania que mobilizaram os recursos coloniais contra as nações levantadas, fossem as tropas burocráticas estacionadas nos núcleos urbanos açucareiros, fossem milícias como os Henriques ou o terço dos índios, fossem as tropas particulares dos sertanistas. Todas essas sempre associadas a contingentes de flecheiros: a expedição que saiu de Pernambuco em 1688, por exemplo, contou com 200 soldados regulares, 100 soldados Henriques e 400 do terço dos índios, além de uma ordem para retirar ‘todos os arcos que quiser’ das aldeias da Paraíba, sem falar nos paulistas deslocados de Palmares para o Açu e cujo terço era pelo menos 50% composto por flecheiros ( ; , p. 136).

Esses terços de São Vicente não apenas agregavam massivos contingentes indígenas, mas também faziam principalmente de forma coletiva, inclusive diferenciando soldados indígenas pagos – e logo nomeados perante a administração colonial – dos flecheiros anônimos. Essa diferenciação foi feita, por exemplo, pelo terço de Morais Navarro, a mais importante força paulista nos conflitos do Açu, que em 1698 contabilizou em seu livro de assentamento 10 companhias de 193 soldados cada, dos quais apenas 12 foram alistados como ‘índios’, apesar do terço contar com vários contingentes de flecheiros cariri, tarairiú e paiacú retirados dos aldeamentos da Paraíba, além daqueles definidos como caboclos de língua geral, oriundos da missão de Guaraíras e das aldeias de Mipibu e Guajiru no Rio Grande ( ).

Além desse, são múltiplos os exemplos de arregimentação anônima de flecheiros pelas companhias paulistas de ambos os lados do São Francisco: em 1700, o autor de uma carta não assinada descreveu o alistamento de aldeados nesse terço, informando que, enquanto os soldados brancos eram matriculados “na forma do Regimento”, os indígenas eram “só pelos nomes e nações de que forem; que como essa gente não tem fé de oficiais pode-se com ela dispensar nos sinais que manda o Regimento declarar nas matriculas” (CARTA (minuta) ao rei [D Pedro II] sobre os índios agregados ao Terço dos Paulistas, Açu. AHU, Rio Grande do Norte, Cx. 10, D 55. AHU_ACL_CU_018, cx 10, D 55); em 1703 o sargento-mor paulista Cristóvão de Mendonça solicitou ao governo de Pernambuco permissão para recrutar indígenas como ‘soldados meia praça’ ( , p. 118); e na mesma década, o então governador dos índios, Antônio Domingos Camarão, reclamou à Coroa da depredação nos números dos aldeados sob sua jurisdição causada pela incorporação forçada a esse mesmo terço ( , p. 6).

Já o recrutamento de flecheiros como auxiliares das tropas regulares aparece durante toda a guerra: das expedições do Recôncavo, que contavam com 300 soldados de infantaria e pelo menos 600 ‘índios’ ( , p. 199), às expedições no Açu, com 150 soldados regulares e 400 do terço dos índios ( , p. 159). E não menos importante, as forças privadas dos sesmeiros costumavam empregar massivamente esses contingentes: Francisco Dias d’Ávila organizou em 1692, por requisição da própria Coroa, uma campanha contra os Acroá do sertão de Rodelas e, portando o título de Mestre de Campo dos Auxiliares da Torre, comandou 900 homens de seu regimento – ou seja, moradores agregados das terras da Casa da Torre –, além de 200 indígenas, 100 mamelucos e 150 escravos. Sua missão oficial, da forma como foi posta pela Coroa, era abrir um caminho para o Maranhão, apesar da campanha ter resultado, basicamente, na ampliação das sesmarias da Casa da Torre ( ). Seguindo a mesma linha, Oliveira Ledo, sesmeiro da Paraíba, ordenou a construção de um arraial que deveria servir de base para a conquista do sertão de Piranhas, guarnecendo-o com forças dos Ariú e dos Cariri (CARTA do conselho Ultramarino, AHU, PE, cód. 265, fl. 135, v. 136).

Esses diferentes episódios expõem a dependência militar que as forças coloniais mantinham para com a guerra indígena; mas se precisavam desses braços, também dependiam consideravelmente de suas armas e táticas, como ilustram as ordens do governo geral para que os aldeamentos do Recôncavo fornecessem não apenas flecheiros, mas também armas e mesmo comando tático. Esse foi o caso da mobilização dos aldeados de Camamú, no Recôncavo, em 1654, sobre a qual escreveu o governador geral ao padre encarregado, ordenando que este enviasse, para se juntar à expedição, 40 dos melhores homens, armados “de toda flecharia que puderem trazer” e sob as ordens de um cabo escolhido entre os principais “de mais satisfação” (CARTA para o Superior da Aldeia do Camamú. Documentos Históricos, vol III, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, s\d, p. 228-229).

Mas as fontes que registram esses episódios deixam transparecer também o discurso dos comandantes coloniais que tirava dos combatentes indígenas qualquer agência, ao tratá-los coletiva e anonimamente. Nessas cartas as mobilizações e deslocamentos de contingentes de flecheiros aparecem como feitas praticamente à revelia desses, como um assunto a ser resolvido apenas entre os comandantes e as autoridades coloniais. Nelas, os combatentes indígenas são apenas braços contabilizados coletivamente, sem iniciativa ou voz. É um discurso que recusa a esses atores um papel ativo ao mesmo tempo que afirma seu extremo valor enquanto recurso para a colonização.

E no entanto, pelos poucos personagens indígenas que conseguiram se fazer ouvir na correspondência administrativa, podemos perceber que sua atuação não se limitava a obedecer as ordens dos comandantes coloniais: enquanto maiorais de aldeamentos contestavam as sucessivas requisições de flecheiros, que depredavam suas comunidades ( ; , p. 102), em 1703, o próprio governador de índios, D. Sebastião Pinheiro Camarão, enfrentou a excessiva arregimentação feita pelos paulistas, inclusive se recusando a enviar gente para esse terço e apontando a escravização disfarçada em recrutamento que os sertanistas estavam promovendo ( , p. 199).

De fato, os governadores dos índios, talvez os personagens indígenas que mais pegadas tenham deixado nas fontes seiscentistas justamente pela natureza institucional de seu cargo, ilustram bem o quanto os interesses e atitudes dos atores sociais indígenas na guerra dos bárbaros poderiam se chocar com os das forças coloniais. Na década de 1660, por exemplo, quando o cargo era ocupado por Diogo Pinheiro Camarão, este se viu repreendido pelo Conselho Ultramarino por deslocar, à despeito das ordens régias, aldeados do Rio Grande do Norte e da Paraíba ( , p. 202); já em 1701, D. Sebastião Pinheiro Camarão foi censurado por enviar 50 casais aldeados na Paraíba para as minas de salitre do sertão, contrariando uma ordem régia que exigia que essa mão de obra fosse retirada apenas das aldeias de Pernambuco ( ; , p. 102; , p. 205). De maneira geral, o governador de índios tinha autoridade sobre o emprego da mão de obra das populações aldeadas em serviços variados em Pernambuco, assim como sobre todos os capitães de índio e maiorais dos aldeamentos nessa capitania, e logo, sobre seus contingentes de flecheiros, ( ), inclusive com competência para ordenar ou vetar arregimentações e deslocamentos desses, o que o tornava um poder a ser considerado durante as conturbadas décadas da segunda metade do século XVII.

Esses personagens, apesar de comandarem praticamente todos os aldeamentos de Pernambuco e capitanias anexas, mantinham uma sólida conexão com a única tropa institucional indígena das capitanias açucareiras, o terço de índios de Pernambuco. Com efeito, apesar da mobilização generalizada de flecheiros nessas capitanias, a única tropa indígena oficializada pela administração colonial, e com uma estrutura de comando inserida na hierarquia militar luso-americana, era mesmo o terço de índios, também chamado de terço de Camarão: uma tropa basicamente potiguar e tabajara, ou seja, tupi, composta por homens oriundos de aldeamentos de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande, sob o comando do governador de índios que, entre fins do XVII e início do XVIII, tinha jurisdição sobre todos os capitães e oficiais indígenas dos aldeamentos nas ‘capitanias anexas’ menos o São Francisco, que possuía um governador autônomo ( ; ; ). Um terço que seguia o modelo das milícias coloniais, com hierarquia composta por capitães-mores e oficiais, e cujo corpo principal foi deslocado para o Açu em 1687 ( , p. 68).

Entretanto, para além dos governadores de índios e outros poucos personagens nobilitados, as fontes seiscentistas negam aos homens que combateram como flecheiros a favor da colonização não apenas um papel principal, mas mesmo um papel atuante e consciente nesses conflitos. Apesar disso, a observação das próprias táticas usadas nos episódios que compuseram a guerra dos bárbaros sugere que esses homens, aqueles experientes na geografia local, na localização das aldeias adversárias, no uso de armas indígenas e táticas de guerrilha, devem ter interferido constantemente nos planos táticos das expedições sertanejas. É importante notar que os comandantes paulistas, ainda que possuíssem ampla experiência em entradas continentais, eram estranhos às regiões em disputa, enquanto os militares institucionais eram, em sua grande maioria, oriundos dos núcleos urbanos açucareiros, uns e outros desconhecendo o semiárido, as ribeiras e serras nas quais as lutas eram travadas . Assim, até mesmo para simplesmente alcançar os adversários e suas aldeias, esses comandantes necessariamente precisavam utilizar guias locais, raramente mencionados na documentação, o que nos leva à presunção de que eram mesmo os flecheiros aldeados que conduziam as expedições coloniais.

Apesar disso, as autoridades se recusaram sempre a atribuir qualquer importância aos combatentes e comandantes indígenas aliados que não aquela de mão de obra bélica. É interessante ver o quanto as estratégias coloniais foram moldadas pelo conjunto de representações compartilhado por capitães e governadores que, ao mesmo tempo em que consideravam os flecheiros imprescindíveis, esforçavam-se por esquecê-los. Efetivamente, o discurso colonial seiscentista, representado pelas falas dos governadores gerais e governadores de Pernambuco, defendia que a guerra irregular indígena deveria ser combatida principalmente por indígenas, mas também por paulistas e negros, visto que “essa casta de gente” estava mais preparada para a guerra no sertão por ser “mais ligeira” e “capaz de seguir o gentio pelo centro dos sertões” ( , p. 75). Um enunciado que se baseava mais na imagem de selvageria associada a esses personagens do que em qualquer experiência ou habilidade militar que eles porventura tivessem. Tanto que, atuando com base nessa crença, os governadores enviaram para o sertão o perfeitamente urbano terço dos Henriques, ao lado do terço dos índios e das forças paulistas ( ), reconhecendo, dentre eles, apenas os paulistas como agentes com poder de decisão na construção de estratégias nos conflitos sertanejos. E foi aos paulistas que, por fim, as vitórias terminaram por serem atribuídas pelo discurso colonial, a despeito não apenas das várias derrotas que sofreram, mas também do fato de que não atuavam de forma independente, estando sempre acompanhados por forças institucionais e pelos comandantes e contingentes indígenas. Apesar disso tudo, as autoridades coloniais – e logo a historiografia – assimilaram e reproduziram a fala de sertanistas como Morais Navarro e Domingos Jorge Velho de que foram eles e seu domínio da guerra irregular os responsáveis pela derrota dos grupos levantados no semiárido .

Considerações finais

Do ponto de vista da colonização, os conflitos sertanejos que constituíram a ‘guerra dos bárbaros’ – se pensados em conjunto e em associação com o objetivo inicial e principal de colonos e autoridades, que era o estabelecimento de fazendas de gado nos interiores continentais das capitanias do norte – foram finalmente superados na segunda década do século XVIII. Nessa perspectiva, a colonização saiu vencedora, graças, segundo o discurso colonial, principalmente aos sertanistas paulistas. No entanto, se observados como conflitos independentes, a partir de uma perspectiva que considere cada episódio em si, temos um panorama bem diferente, no qual os grupos indígenas levantados obtiveram vitórias sucessivas ao longo do século XVII, em muitos casos só sendo detidos pelas alianças e acordos de paz firmados com as autoridades coloniais. Logo, segundo esse ponto de vista, não houve uma vitória militar das forças institucionais (essas, inclusive, não raras vezes, empregavam os antigos inimigos como braços armados logo após a assinatura de um acordo de paz), e os Tarairiú, os Paiaiá, os Aimoré e os Cariri só cessaram as hostilidades após se renderem às alianças movidas pela política colonial e por seus próprios interesses.

Em termos socioculturais, a guerra dos bárbaros teve um impacto indelével na configuração de uma cultura bélica colonial caraterizada por estratégias indígenas baseadas em agilidade e surpresa. Uma guerra, tomada como um todo ou como conflitos separados, na qual atores sociais nativos desempenharam um papel principal, negociando e definindo o desenho das batalhas, ainda que esse mesmo processo tenha visto também a massiva escravização dos grupos envolvidos nos conflitos. De fato, os atores sociais indígenas, enquanto agentes da colonização ou como seus adversários, agiam no contexto de relações de poder assimétricas e desiguais ( , p. 58), mas agiam: a participação anônima dos flecheiros, as negociações dos governadores de índios, maiorais e capitães de índios, são exemplares de sua atuação perante as complexidades que envolviam as mudanças estruturais pelas quais as sociedades indígenas passavam no século XVII, e na configuração das próprias estruturas sociais coloniais.

Na verdade, durante o desenrolar das campanhas sertanejas, as estratégias dos levantados e das forças estatais foram se assemelhando cada vez mais; tornando-se mais e mais definidas por uma cultura bélica indígena que, por sua vez, já usava táticas e armas construídas a partir do próprio contato com a colonização. Além disso, as lideranças nativas também foram se reconfigurando, assumindo o caráter de elites locais dentro dos aldeamentos – depois transformados em vilas de índios, depois simplesmente em vilas – e dando novos significados a função do chefe nas nações aldeadas.

Do ponto de vista da história militar, a transformação da guerra colonial a partir de estratégias indígenas é bem conhecida no que diz respeito ao confronto com outros exércitos europeus, como na guerra holandesa: a guerra de emboscadas, sem quartel ao inimigo, venceu a guerra europeia seiscentista baseada em manobras disciplinadas e grandes movimentos de tropas. O que o estudo das estratégias e táticas da guerra dos bárbaros mostra, por sua vez, é que a guerra colonial contra povos nativos americanos também se construiu a partir das próprias estratégias indígenas. As vitórias coloniais no Recôncavo e no Açu foram conseguidas, por fim, não graças à superioridade das forças coloniais, ou a uma maior habilidade dos sertanistas paulistas, mas à escravização generalizada promovida pelos paulistas e às alianças e política de aldeamentos. Em termos militares, a guerra indígena foi, no entanto, vencedora, já que terminou por ser empregada de ambos os lados do conflito.

Qual foi a estratégia utilizada pelo exército vencedor da Batalha de Isso?

Resposta: o conquistador macedônio fez um cuidadoso reconhecimento prévio do terreno onde ocorreria a batalha e soube usar com máxima eficácia a capacidade ofensiva de suas unidades.as tropas persas de Dario 3º teriam cerca de 100 mil soldados, contra só 50 mil homens de Alexandre.

Qual foi a estratégia utilizada pelo Exército da Macedônia?

Na chamada Batalha de Isso, a estratégia de mudança de posições foi utilizada por Alexandre Magno, Rei da Macedônia, para vencer o exército Persa de Dario III. A Batalha de Isso ocorreu no ano 333 a.C, próxima à cidade de Isso, na Ásia menor.

Qual a estratégia utilizada pelos persas em relação aos povos conquistados?

Ficaram conhecidos por conceder grande liberdade para que os povos dominados pudessem manter suas tradições e religião, desde que pagassem os impostos devidos.

Qual foi a estratégia de Alexandre o Grande?

A esclarecida estratégia de Alexandre para aquisições e fusões significava que esses novos territórios poderiam manter aquilo que lhes era mais caro: - sua cultura e sua identidade separadas. As fusões de culturas organizacionais tão diferentes é tão importante hoje em dia quanto era há 2000 anos.